17/05/2024 - Edição 540

Re-existir na diferença

Medicinas Tradicionais 2014-2023

A Organização Mundial de Saúde e o apagão etnocultural no Brasil

Publicado em 05/04/2023 2:01 - Ricardo Moebus

Divulgação Pixabay

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

 

No ano de 2013 a Organização Mundial de Saúde lançou em documento uma ampla estratégia para fortalecimento das Medicinas Tradicionais e Complementares em todos os Estados membros. Constituindo um grande plano para os dez anos vindouros, iniciando em 2014 e finalizando em 2023, ano em que ora nos encontramos, a “Estratégias da OMS para Medicina Tradicional 2014 – 2023”

Este documento histórico dava continuidade ao plano de estratégias estabelecido anteriormente, “Estratégias da OMS para Medicina Tradicional 2002 a 2005”, e várias outras resoluções entre 2006 e 2012, como a “Estratégia Farmacêutica da OMS 2008 – 2013”, que apontava os componentes das Medicinas Tradicionais e a “Declaração de Beijing 2008” (Congresso da OMS sobre Medicina Tradicional).

Na Estratégia 2002-2005, a OMS já se detinha em algumas definições importantes, reafirmando a importância do reconhecimento da validade e legitimidade das Medicinas Tradicionais largamente estabelecidas por povos originários em todas as partes do mundo.

Abordava também no documento 2002-2005, a questão de tais Medicinas serem consideradas “complementares” ou “alternativas” nos países nos quais não são originárias:

“Os termos “complementar” e “alternativa” (e às vezes também “não convencional” ou “paralela”) se utilizam para referir-se a um amplo grupo de práticas sanitárias que não formam parte da tradição daquele próprio país, ou não estão integradas em seu sistema sanitário prevalente.”

“Falar de medicina “alternativa” é… como falar de estrangeiros – ambos termos são vagamente pejorativos e fazem referência a amplas e heterogêneas categorias definidas pelo que não são, em lugar de definir-se pelo que são.”

Já no planejamento 2014-2023, fica mais evidente a opção por uma condensação, uma fusão em um único termo que possa englobar as Medicinas Tradicionais em seus contextos originários mas também fora deles, como “Medicinas Tradicionais e Complementares – MTC”.

Ainda assim, restava a distinção neste documento de 2013:

“A medicina tradicional tem uma longa história, é a soma total dos conhecimentos, capacidades e práticas baseados nas teorias, crenças e experiências próprias de diferentes culturas, bem sejam explicáveis ou não, utilizadas para manter a saúde e prevenir, diagnosticar, melhorar ou tratar enfermidades físicas e mentais.”

“Os termos “medicina complementar” ou “medicina alternativa” aludem a um amplo conjunto de práticas de atenção em saúde que não formam parte da tradição, nem da medicina convencional de um país dado, nem estão totalmente integradas no sistema de saúde predominante. Em alguns países, estes termos são utilizados indistintamente para referir-se à medicina tradicional.”

“Medicina tradicional e complementar funde os termos “medicina tradicional” e “medicina complementar”, e abarca produtos, práticas e profissionais.”

Mas como veremos mais adiante esta distinção entre Medicinas próprias da tradição sociocultural de dado país e outras chamadas complementares,  pode nos permitir apontar também diferentes apostas políticas em diferentes países.

Neste planejamento 2014-2023 a OMS pretendia:

“Aproveitar as possíveis contribuições das Medicinas Tradicionais Complementares para a saúde, o bem estar e a atenção em saúde centrada nas pessoas; e

Promover a utilização segura e eficaz das Medicinas Tradicionais e Complementares mediante sua regulamentação, avaliação e integração de produtos, práticas e profissionais de Medicina Tradicional Complementar – MTC nos sistemas de saúde, segundo seja pertinente.”

A OMS apontava em 2013 a preocupação em todo o mundo, diante da crescente expansão do uso disseminado das Medicinas Tradicionais e Complementares, em garantir a qualidade, a segurança, a eficácia, a disponibilidade, a preservação e a regulamentação destas Medicinas Tradicionais e Complementares. E o documento procurava dar algumas propostas para a construção progressiva de respostas por parte dos países membros.

Este documento também apontava uma distinção do uso difundido das MTC nos países “desenvolvidos” e nos “em desenvolvimento”:

“Agora bem, em muitos países em desenvolvimento, os conhecimentos e destrezas da medicina tradicional foram transmitidos oralmente de geração em geração, o que dificulta a identificação de práticos qualificados. Cada Estado Membro deveria considerar sua própria situação e determinar suas necessidades específicas. Isto poderia incluir a atualização de sua base de conhecimentos, o fomento à colaboração entre práticos de medicina tradicional e dispensadores de atenção sanitária convencional e, se necessário, o exame da possibilidade de regulamentar ou registrar as práticas.”

Neste mesmo sentido o documento aponta:

“Os Estados Membros deverão definir e compreender melhor a MTC no marco de sua própria situação nacional, para o qual deverão identificar as formas de MTC utilizadas e seus usuários, examinar os motivos de sua utilização e determinar as necessidades presentes e futuras. Basicamente, os países deverão elaborar seus próprios perfis nacionais em relação com a MTC.”

“Em função de seus perfis nacionais, os Estados Membros deverão desenvolver políticas, regulamentos e diretrizes concernentes às formas de MTC que satisfaçam as necessidades e preferências de saúde de suas populações. Se bem podem existir temas e prioridades comuns a alguns Estados Membros, se deverão elaborar enfoques nacionais para satisfazer as necessidades individuais dos países. Evidentemente, estes enfoques estarão sujeitos aos marcos jurídicos, às crenças culturais sobre a MTC e às estruturas de supervisão dos produtos, das práticas e dos profissionais.”

A partir deste quadro geral proposto pela OMS para a década de 2014-2023 podemos pensar como se posicionou o Brasil especificamente.

A partir das proposições do documento 2002-2005, vários países membros desenvolveram políticas nacionais para abordar esta temática das Medicinas Tradicionais, este foi o caso também do Brasil que em 2006 lançou pelo Ministério da Saúde a sua “Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde – PNPICS”.

Esta política nacional iniciou com cinco práticas integrativas e foi sucessivamente expandindo seu leque de ofertas e reconhecimento de práticas pelo Ministério da Saúde ao longo desta década 2014-2023, chegando a um amplo rol de práticas que inclui: Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura, Medicina Antroposófica, Homeopatia, Plantas Medicinais e Fitoterapia, Termalismo Social/Crenoterapia, Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa, Yoga, Apiterapia, Aromaterapia, Bioenergética, Constelação familiar, Cromoterapia, Geoterapia, Hipnoterapia, Imposição de mãos, Ozonioterapia e Terapia de Florais.

O que chama a atenção é, em primeiro lugar, que a abordagem brasileira não assimilou a nomenclatura da OMS que opta pelo termo “Medicinas Tradicionais Complementares – MTC” ou “Medicinas Tradicionais Complementares Integrativas”.

Não é irrelevante que o modelo brasileiro evite usar o termo Medicina Tradicional, certamente mais eloquente e representativo de um reconhecimento de saberes ancestrais, optando pelo termo “Práticas”.

Também é da maior relevância a escolha do modelo brasileiro em ignorar as medicinas tradicionais locais, quais sejam, as Medicinas Ancestrais Indígenas – MAIs e as Medicinas Ancestrais de Matriz Africana – MAMAs, estas últimas trazidas para o Brasil desde a década de 1530, e utilizadas amplamente por grande parte da população brasileira.

Como vimos acima, as recomendações da OMS eram que os países e seus governos pudessem escutar as necessidades e preferências de saúde de suas populações, os usos socioculturalmente consagrados e sagrados e estabelecidos por suas populações, respeitando as crenças, as particularidades, as especificidades das diferentes populações.

O que podemos constatar no final desta década destinada ao reconhecimento das Medicinas Tradicionais, 2104-2023, é que no caso brasileiro, a invisibilidade conferida às suas Medicinas Tradicionais de raízes indígenas e africanas é muito representativo de um racismo estrutural e estruturante. A opção, a trajetória, o modelo brasileiro na difusão das chamadas “Práticas Integrativas e Complementares em Saúde – PICS”, desde a PNPIC de 2006, sistematicamente estimula o uso de práticas forâneas, muitas vezes exóticas ou estranhas, ou que não constituem a referência sociocultural familiar de grande parte da população brasileira; práticas forâneas sejam orientais, como a Medicina Tradicional Chinesa, a Medicina Tradicional Ayurvédica, a Yoga, a Shantala, o Reiki; sejam práticas européias, como a Antroposofia, Hipnoterapia e outras.

Vale ressaltar que todas estas práticas, estas Medicinas Tradicionais estrangeiras são da maior relevância, merecem todo reconhecimento e incentivo, trazendo imensurável benefício para a saúde da população brasileira. Não é o seu uso que está sendo questionado aqui, pelo contrário, é importante deixar claro que todas estas Medicinas Tradicionais têm acrescentado, agregado imensamente o cuidado em saúde no Brasil, sobretudo na Atenção Primária ou Atenção Básica em Saúde.

O que parece importante questionar aqui é que, por exemplo, enquanto práticas corporais, como Lian Gong, oriunda da Medicina Tradicional Chinesa, foram implantadas com uma amplitude admirável, merecendo aplauso e reconhecimento; práticas corporais de producão de cuidado de matriz africana, muito mais familiares e socioculturalmente pertinentes à população brasileira, como a Capoeira Angola, seguem sendo ignoradas solenemente na saúde, como se não existissem, em um processo de fabricação da ausência, se considerarmos a “sociologia das ausências”, de Boaventura Sousa Santos.

Ou seja, se o modelo brasileiro de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde está baseado na matriz etno sociocultural e histórica de sua população, então não houveram 388 anos de escravidão neste país.

 

Referências

Ministério da Saúde – Brasil. n.d. “Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS.” Biblioteca Virtual em Saúde. Accessed April 5, 2023. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnpic.pdf.

“OMS.” 2000. Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2002–2005. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/67314/WHO_EDM_TRM_2002.1_spa.pdf;jsessionid=F35EBAA91EE92F5246AA5E4F4974D5EE?sequence=1.

OMS – WHO. n.d. “Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2014-2023.” World Health Organization. Accessed April 5, 2023. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/95008/9789243506098_spa.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

PBH. n.d. “Lian Gong.” Prefeitura de Belo Horizonte. Accessed April 5, 2023. https://prefeitura.pbh.gov.br/saude/informacoes/atencao-a-saude/promocao-da-saude/lian-gong.

“WHO.” n.d. WHO. Accessed April 5, 2023. http://189.28.128.100/dab/docs/geral/anexo1_relgestao.pdf.

Leia outros artigos da coluna: Re-existir na diferença

Emerson Merhy, Túlio Franco, Ricardo Moebus e Cléo Lima


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *