17/05/2024 - Edição 540

Re-existir na diferença

Manifestim Psicotropicalista

Dez anos depois, um Psicotropicalismo cada vez mais necessário

Publicado em 06/09/2022 11:15 - Ricardo Moebus

Divulgação Midjourney by Victor Barone

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Foi em 2012, por ocasião da Rio+20, momento significativo de balanço dos avanços e retrocessos de tantos compromissos assumidos na Eco92 Rio–Brasil, que lançamos o Manifestim Psicotropicalista:

 

Manifestim Psicotropicalista

Um sonoro sim às culturas tradicionais e suas verdades tropicais

Um sonoro sim aos povos originais com suas tecnologias ancestrais

Afirmando o valor da diferença e a pobreza da indiferença

Afinado com suas sintonias e seus rituais mais que atuais

Para fora deste cerco de grades diagnósticas   

Para além do controle farmacomercadológico

Reconhecendo psicoativadores de vida mais plena

Com suas planta-ações e infinidades de conexões

Alimentando pertencimento e diversidade

Legitimando outros modos de vida e sociabilidade

Trincheiras biopolíticas à flor da pele d’alma

De volta às Raízes, aos Caules, às Folhas,

Tomando de assalto o futuro de si mesmos

 

Desde então, nestes últimos dez anos, os saberes, as culturas, os pensamentos dos povos originários vieram cada vez mais para a cena, com um reconhecendo gradual – ainda que tardio e muito aquém do necessário – da imensa e indispensável contribuição dos povos originários para sairmos de uma absoluta crise global conceitual, epistêmica, civilizatória, política, ambiental, climática, econômica, cultural, ética, existencial.

Quais eram as questões que o manifestim Psicotropicalista tentava apontar em 2012 e continua apontando ainda hoje?

Em primeiro lugar, reconhecer um campo de trabalho e produção psicossocial a partir das experiências, saberes, tecnologias, estratégias, produções e modos de vida dos povos originários ao sul da esfera.

Reconhecendo assim uma possibilidade de originalidade de formação e trabalho psicossocial que, ao mesmo tempo, leve em consideração toda a produção global, mas de forma antropofágica, por isso mesmo o festim, o manifestim antropofágico, mas que também considere as produções e originalidades locais, tentando reduzir a assimetria sustentada pelo pensamento colonialista de invalidação e apagamento do que seja produção local.

A partir daí, reconhecer e dar visibilidade às práticas, aos saberes e recursos terapêuticos desenvolvidos pelos povos originários, reinvestindo e positivando a clássica desconsideração da “terapia selvagem”, “interpretação selvagem”, “psicanálise selvagem”,  que era apontado sempre que houvesse uma intervenção despropositada, ou sem a devida fundamentação.

Retomar a multiplicidade e a sociobiodiversidade do pensamento selvagem, da vida selvagem, das possibilidades de ancoramento em modos de vida próximos disto.

Significa trazer para a cena terapêutica:

Primeiro, que os modos coletivos de ser, viver, conviver e portanto também tratar, são válidos e possíveis, porque a vida é necessariamente plural e no plural, necessariamente em rede.

Segundo, que a própria oportunidade de vida em comunidade, gerando pertencimento e reconhecimento cultural e existencial é terapêutico, reinventando absolutamente a concepção do que seja “comunidade terapêutica”, apontando para: a vida comunitária é terapêutica, a vida em coletividade, em comum, pode ser terapêutica, o isolamento não, o individualismo não, porque a vida é necessariamente solidária.

Terceiro, que o terapêutico é sempre integral e sistêmica, considera sempre o continuum da vida, não fragmenta, não separa, reconhece a vida em sua integralidade e continuidade, inclusive temporal e espacial, desfazendo fronteiras, superando limites e separações, sejam conceituais, sejam profissionais, sejam epistemológicos, sejam políticas e sociais, porque a vida é necessariamente sistêmica, abrangente, aberta para a complexidade.

Quarto, que o terapêutico recupera e retoma a ritualização e a sacralização da vida e do mundo, construindo o que Byung-Chul Han considerou como uma habitabilidade do tempo, uma arquitetura da temporalidade. Rompendo assim com a intensificação da fragmentação do tempo-espaço, que constrange e agride o continuum da vida, porque a vida é necessariamente contínua.

Quinto, que o terapêutico considera o território não apenas como espaço, não apenas como “setting”, não apenas como contexto, não apenas como componente dos “determinantes de saúde”, não apenas como um fator do multifatorial, mas a própria experiência e conexão existencial com os mundos, no plural, porque a vida é necessariamente interconectada e ancorada territorialmente.

Sexto, que o terapêutico reconhece a criatividade incessante e pulsante da vida, que nada está pronto e acabado, que nada está imutável, que tudo que é sólido e estrutural desmancha no ar, porque a vida é necessariamente criativa e autopoiética.

Sétimo, que o terapêutico reconhece as potencialidades e capacidades terapêuticas próprias e intrínsecas de cada um e de cada coletivo, sua potência de se restaurar e de se recuperar, porque a vida é necessariamente regenerativa.

Oitavo, que o terapêutico pode lançar mão muitas vezes de aliados e alianças com componentes, entidades vegetais e outras que tais, mas não como algo para remediar, ou como uma substância, muito menos uma mercadoria, mas como um enlace, um encontro, uma interação de convivência e respeito mútuo, porque a vida é necessariamente interdependente e multiconectada.

Nono, que o terapêutico pode trazer para a cena, entre estes aliados vegetais, aqueles reconhecidos como dialogantes, embaixadores vegetais, que estabelecem um diálogo muito mais intensivo com seus interlocutores humanos, plantas milenarmente utilizadas para fins de reconexão com si mesmo e com os mundos, no plural, porque a vida é necessariamente comunicativa, dialógica, multicognitiva.

Nove linhas que se entrelaçam na costura ou tecelagem do que possa ser uma abordagem Psicotropicalista.

Leia outros artigos da coluna: Re-existir na diferença

Emerson Merhy, Túlio Franco, Ricardo Moebus e Cléo Lima


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Uma resposta para “Manifestim Psicotropicalista”

  1. Vera Fróes disse:

    Excelente abordagem em favor
    das inumeras possibilidades de tratamentos de saúde mental através da medicina amerindia, nossa cultura ancestral. Precisamos disso para curar as feridas psicossomáticas da humanidade. Parabens belíssimo manifesto!

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