17/05/2024 - Edição 540

Re-existir na diferença

Futuro Ancestral

O desafio urgente de nos reinventarmos

Publicado em 20/01/2023 11:05 - Ricardo Moebus

Divulgação

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O novo livro de Ailton Krenak, lançado recentemente, “Futuro Ancestral” (Ed. Companhia das Letras) segue avançando no projeto lançado por seus títulos anteriores, desde “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, passando por “A Vida não é Útil” e “O Amanhã Não Está à Venda”.

O autor avança em seu esforço gigantesco de revisitar e interrogar as bases que sustentam nosso modo de vida voracidade ocidental.

Os ensaios do livro atual, cujo nome já claramente aponta para uma circularidade do tempo, já que no futuro encontra-se a ancestralidade, giram em torno de nossa relação com a temporalidade, insistindo na necessidade de superar a ideia de linearidade do tempo.

Já no primeiro ensaio, “Saudações aos Rios”, Krenak correlaciona nossa relação com a temporalidade como determinante da nossa relação com a espacialidade, determinante da nossa relação com a alteridade, da nossa relação com tudo que nos cerca, da nossa relação com a própria vida enfim.

Logo de início dispara:

“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”

Temos aqui, de partida, um paralelo precioso entre nossa relação com o tempo e nossa relação com as águas.

Sim, as águas correm ininterruptamente, talvez infinitamente, e, ainda que, de um ponto de vista restrito e limitado, possa parecer que corram de modo linear, na verdade sabemos que, as mesmas águas circulam pelo planeta há alguns bilhões de anos, de modo circular e repassando inumeráveis vezes pelo mesmo ponto.

De fato, águas passadas movem todos os moinhos, porque todas as águas presentes são águas passadas e águas futuras.

Ainda assim, os modos ocidentais de viver se relacionam com as águas numa lógica linear, sujamos as águas, transformamos rios em esgotos, com a certeza e tranquilidade de que não retornarão sobre nossas próprias cabeças.

Cotidianamente, diariamente, usamos as águas, como se fossem um mero utensílio, um produto, um “recurso natural” a serviço da humanidade, e não a própria seiva viva pulsante de gaia.

Krenak correlaciona isso com nossa relação com o próprio tempo. Também o tempo, substância de que a vida em si é feita e se faz, também o tempo aparentemente escorrendo entre os dedos, também o tempo aparentemente linear, linearidade garantidora de que o passado não retornará, também o tempo em si mesmo circular, fingimos ignorar.

Essa relação ocidental com uma suposta linearidade temporal parece estar ligada com o absoluto descompromisso ocidental com a ancestralidade, relacionada com a sanha futurista ocidental, com o fetiche do progresso, com o descaso pelo eterno retorno Nietzschiano.

Nossa cegueira diante da circularidade da água e do tempo aparecem de modo similar, e, o ensaio de Krenak parece sugerir que, quem sabe percebendo a circularidade da água, quem sabe refazendo nossa relação com o sensível, ou com a partilha do sensível, como aponta Rancière, com a água que não só nos cerca de todos os modos imagináveis, inclusive quando respiramos, mas que também nos constitui interna e inteiramente de modo predominante, quem sabe possamos por esta via refazer nossa própria relação com a temporalidade. Ou, ao contrário, quem sabe somente quando então pudermos romper nossa linearidade temporal, só então poderemos despertar para uma relação amorosa, generosa e respeitosa com a água, quando então veremos que a vida mesma é feita daquilo que flui e reflui, água e tempo.

As águas também podem se acelerar em cascatas e cachoeiras, dependendo do cenário, do contexto, do enredo, assim como o tempo parece estar sendo acelerado neste nosso contexto, nesse cenário urbano, virtualizado, simultanealizado, cibernético e frenético.

As águas tendem a fluir em continuidade, mas empreendimentos de toda sorte, represam, fragmentam, sugam, drenam, armazenam, tentam reter, fragmentar, paralisar, tentam extrair das águas seu sumo energético hidroelétrico.

Também com o tempo fragmentado, contabilizado, utilitarizado, tentam extrair do próprio tempo seu sumo contábil.

O texto de Krenak segue fluindo como um riacho de águas claras na planície, em direção ao ensaio final “O Coração no Ritmo da Terra”.

O livro finaliza com uma aposta, a necessidade de uma transição para uma outra partilha do sensível. Uma transição para uma outra relação com o tempo e com o sensível. Uma transição que possa ir em direção a colocar o coração no ritmo da terra.

E, essa necessária e urgente transição pode acontecer sobretudo na infância, espaço-tempo-momento-acontecimento vital privilegiado para a aceitação e exercício de um novo sensível.

E as crianças em transe-transição-transcriação quem serão?

Seguindo na circularidade temporal, pode ser qualquer um de nós, desde que queiramos, já que a nossa infância, assim como a ancestralidade, está também no futuro, como no presente e no passado, a infância que ainda vamos viver nos acena com alegria, chegará o tempo de brincar com o tempo, nas suas águas, e brincar com as águas, no seu tempo, redescobrindo na nossa nova próxima infância, outros modos mais fluidos de ser e viver.

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Emerson Merhy, Túlio Franco, Ricardo Moebus e Cléo Lima


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