17/05/2024 - Edição 540

Re-existir na diferença

Agenciamentos antirracistas e ancestrais

Construir o futuro, sem esquecer o passado

Publicado em 13/01/2023 11:05 - Túlio Batista Franco

Divulgação Reprodução

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“Eu num esquece. É 12 de abril de 1865. Os soldados ianques eles desce até o barco e come as amoras das árvores perto do barco, você m’entende. Então eles vê a gente no barco e eles diz: ‘Vocês não pode mai’ ficar aí. Vocês livre, vocês num pertence a ninguém mai. Ai, Senhô! Eu tão feliz. A gente pergunta os soldados onde a gente estava indo? Eles diz qu’eles num sabe. Eles fala pra gente ir pra onde a gente tem vontade de ir, a gente num é mai escravo”. (Olualê Kossola).

 

O texto em epígrafe é o relato do momento preciso em que Kossola fica sabendo que estaria livre. Um comunicado lacônico, como se fosse habitual, sem orientar o que fazer. Ele foi o último homem africano, escravizado, a chegar no território americano em 1860, onde trabalhou nas fazendas de plantação até 1865 quando foi abolida a escravidão nos EUA. Sua fala retratada acima foi feita à antropóloga e escritora negra Zora Neale Hurston, que registrou sua história em 1927 quando Kossola tinha 86 anos.

Huston fez um texto mantendo a linguagem tal como era falada por Kossola. E por este motivo seu livro ficou 90 anos inédito, por não ter sido aceito por nenhuma editora à época, que só publicavam a linguagem “culta”. Quando veio ao conhecimento público, se tornou um clássico da antropologia do povo negro, uma etnografia de referência para o entendimento da escravidão e de escravizados e escravizadas no cenário norte americano.

Lá como aqui no Brasil os séculos de escravidão estruturaram a formação do imaginário nacional, e a nação nasce e se desenvolve racista. A cor da pessoa, sua origem social, definem o lugar que a sociedade lhe reserva, o de submissão ao poder branco. Tudo isto torna urgente a ruptura com a racialização da subjetividade, e construção de um futuro diferente e melhor.

Este pensamento racista, supremacista e opressor é um dos fluxos de força que ativam a tentativa de golpe de estado, perpetrado no dia 8 de janeiro de 2022. Debelado naquele dia, requer uma vigilância permanente contra aqueles que permanecem ativos contra a democracia. Uma dos antídotos ao fascismo é justamente a memória que guardam os movimentos sociais, periféricos, dos quais indígenas e o povo negro teve e tem um protagonismo importante na construção histórica do Brasil.

Lembrando as 4,8 milhões de pessoas escravizadas desembarcadas no Brasil entre os séculos XVI e XIX, procedentes da África, e dos mais de 800 mil indígenas vivendo em condições de permanente perseguição e violência, no dia 11.1.2022, o ato de posse das Ministras dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial, Sônia Guajajara e Anielle Franco respectivamente, se tornou um acontecimento épico, que anuncia o futuro, como dizem as ministras: “O futuro é ancestral” diz Sônia, “fortalecer políticas de reparação da dívida histórica do país como povo negro”, fala Anielle.

A narrativa de Kossolo, nos aciona para a humanidade presente junto ao sofrimento que significa a escravidão. Ele foi o filho na sua tribo africana, o jovem, e relata a captura e o degredo. Tudo na sua voz era forte demais para nossos corpos. Os afetos nos transportam da vida do Kossolo, para as cenas do evento mágico de posse da Sônia e Anielle no Palácio do Planalto. Muita, muita esperança presente naquela sala, forças por vir.

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Emerson Merhy, Túlio Franco, Ricardo Moebus e Cléo Lima


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