17/05/2024 - Edição 540

Re-existir na diferença

A voz dos povos indígenas nas lutas pelo protagonismo nos espaços de decisão política

A importância de uma representação originariamente indígena

Publicado em 15/02/2023 1:04 - Herbert Tadeu Pereira de Matos Junior

Divulgação Marcelo Camargo - Agência Brasil

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Eu creio, que pelo Brasil inteiro. Vai levantar ou já levantou. Índios esclarecidos como eu que, levantará sua voz em prol da sua raça. (…) (Marçal Souza, Terra dos Índios, 1979).

 

Marçal de Souza – Tupã-Y é uma histórica liderança indígena Guarani Ñandeva, assassinado em 1983, segundo consta, por um latifundiário que não aceitava a mobilização dos indígenas na reivindicação de seus direitos. Marçal é tido como um mártir dos direitos indígenas no Brasil, justificado por sua luta pela demarcação de terras na região de Dourados, denúncias de exploração ilegal de madeira, escravização de seu povo e o tráfico de meninas indígenas. Além disso, ele é visto como um dos responsáveis pela articulação de lideranças que resultou no que se chamou depois de movimento indígena brasileiro, e por isto, foi perseguido por latifundiários, madeireiros e pela própria FUNAI.

Como contou Ailton Krenak, no Brasil uma representação indígena a nível nacional só foi possível a partir do final dos anos de 1970, quando as lideranças de diferentes povos indígenas começaram a se encontrar e perceber que tinham problemas em comum, e que podiam encaminhar soluções conjuntas. Neste período surgiu a proposta de criação da União das Nações Indígenas (UNI), a primeira forma de representação própria institucional dos povos indígenas brasileiros, que reuniu diferentes nações indígenas, como estratégia de organização para defender seus interesses e necessidades político-institucionais por meio de uma organização jurídica formal de representação própria.

“No primeiro momento de articulação, as pessoas que mais se esforçaram foram Marçal Guarani, assassinado em 1982, Angelo Pankararé, Angelo Kretã, Domingos Terena, que lutou desde sempre, e outros dos povos Tikuna, Tukano, Miranha. Essas lideranças pertencem a uma geração anterior à minha; eles estão com 50 ou 60 anos de idade. A eles veio aliar-se uma geração bem mais jovem, na casa dos 20 ou 30 anos, que eram índios que tinham frequentado a escola, feito curso técnico ou superior, como eu mesmo, que tinha estudado jornalismo, e Paulo Bororo, Paulo Tikuna, Lino Miranha, Álvaro Tukano. Foram essas lideranças que prepararam um primeiro encontro no Mato Grosso, em 1979, reunindo representantes dos Xavante, Terena e Kadiwéu.” (KRENAK, Encontros, 2015, p. 27)[1]. A história de organização do movimento indígena brasileiro esteve então ligada, fundamentalmente, ao processo de construção desta agenda de protagonismo das próprias lideranças indígenas para representação institucional e política de seus povos nos espaços de poder e de decisão política dos rumos da sociedade brasileira, e nos diálogos com parceiros e mecanismos internacionais.

Durante os anos de 1980, foram muitas lideranças do movimento indígena que ganharam notoriedade pelas frentes de defesa dos direitos dos povos indígenas, como por exemplo, o Cacique Kayapó Raoni Metuktire, a liderança Yanomami Davi Kopenawa, e outras, como o Deputado Estadual Mário Juruna, do Povo Xavante.

O período da Ditadura de 1964 – 1988[2] proibia o voto direto para presidente da república, governador, prefeito e senador no Brasil, entretanto, ainda assim, era possível o voto direto para eleição de deputados federais, estaduais e vereadores. Corria então o ano de 1982, quando pela primeira vez na história foi eleito um deputado federal indígena de nome Mário Juruna, que exerceu seu mandato parlamentar entre os anos de 1983 – 1987.  Nascido em 1942 na aldeia Xavante Namakura, no estado de Mato Grosso, Mario Juruna foi uma importante liderança indígena. Segundo contou, viveu sem contato com os não-indígenas até os dezessete anos, quando iniciou seu trabalho como liderança na comunidade, atuando fortemente para demarcação da Terra Indígena Xavante – MT. Logo no seu primeiro ano de mandato, em 1983 chamou atenção da opinião pública e de lideranças políticas com um discurso contundente sobre a importância de mais indígenas na Câmara dos Deputados.

(…) “Eu acho esse já é fruto está nascendo aqui dentro do Brasil, esse já é sinal está nascendo aqui dentro do plenário. Único índio que tá falando hoje, único deputado que tá falando hoje: não é terceiro, não é quinto deputado, não é cinquenta deputado. Se tiver ao menos mais cinquenta Juruna, o Juruna já tinha mudado o Brasil” (Discurso do deputado federal Mário Juruna no Plenário da Câmara dos Deputados, em 1983).

Somente em 2018 foi eleita a primeira mulher indígena deputada federal, Joênia Batista de Carvalho, indígena do povo Wapichana, advogada e mestre em direito internacional pela Universidade do Arizona, ela é considerada a primeira mulher indígena a exercer a profissão de advogada e a primeira deputada indígena pós-constituinte no Brasil, que teve seu mandato entre os anos de 2018 e 2022, e atualmente preside a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). Hoje, o Brasil conta com cinco deputados federais indígenas, sendo o maior número já registrado no país, após 40 anos do assassinato de Marçal e do primeiro deputado indígena.

Ainda como resultado das lutas pelo protagonismo dos povos indígenas, reivindicação histórica do movimento indígena brasileiro, foi criado em 2023 o Ministério dos Povos Indígenas, parte do Poder Executivo do Brasil, atualmente presidido pela Deputada Federal Sônia Guajajara, mulher indígena do Povo Guajajara do Estado do Maranhão. A estruturação de suas atribuições, está associada ao trabalho do Grupo Temático dos Povos Indígenas, grupo criado durante a transição governamental de 2022, que tem como principais características a composição por uma maioria de técnicos indígenas e o diálogo permanente com as organizações do movimento indígena brasileiro. Além disso, é previsto também que, a atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) faça parte do Ministério dos Povos Indígenas.

“Hoje, vocês todos estão presenciando um momento de transição histórica, tal qual foi a singular colaboração indígena, na Assembleia Nacional Constituinte. Naquela ocasião, um passo muito importante foi dado com o fim do paradigma integracionista e da tutela. Hoje, vocês presenciam um passo ainda maior com este Ministério dos Povos Indígenas e esperamos, com isso, fazer respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo.” (…). (Discurso de posse Ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara, 2023).

 

 

Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 2023

 

[1] KRENAK, Ailton. A União das Nações Indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros: Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015. p. 22-29. (Coleção Encontros).

[2] O relatório da Comissão da Verdade, publicado em 2014, indica que ao menos 8.350 indígenas foram mortos entre 1964 e 1985 em massacres, expulsões de terra, remoções forçadas, contágio por doenças e vítimas de torturas e maus-tratos em campos de concentração criados pelos militares.

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Emerson Merhy, Túlio Franco, Ricardo Moebus e Cléo Lima


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