Brasil
Publicado em 06/12/2018 12:00 -
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A demora na realização de uma reforma da Previdência tem mais do que um custo fiscal para o Brasil. Ela acentua a desigualdade, um dos dados mais perversos da economia. Estudo sobre os principais desafios do país divulgado nesta quarta-feira pelo Ministério da Fazenda mostra que o sistema previdenciário do Brasil paga 12 vezes mais para os mais ricos do que para os mais pobres. O levantamento considera os benefícios do INSS e os dos servidores públicos.
“Isso ocorre porque o regime do INSS tem um teto, e o dos servidores é muito mais alto. Existe extrema desigualdade na aposentadoria. É um sistema desumano”, afirma o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas.
Segundo o relatório, de todos os benefícios previdenciários, só 3,3% vão para a parcela mais pobre da população, como antecipou a colunista do GLOBO Míriam Leitão. Isso equivale a R$ 17,8 bilhões. Enquanto isso, os mais ricos ficam com 40,6% do bolo – ou seja, 12 vezes mais -, o que representa R$ 243,1 bilhões.
Isso é o inverso do que ocorre no Bolsa Família, em que mais de 44% do total de benefícios vão para a parcela mais pobre da população.
Com a conta, a equipe econômica busca frisar para o futuro governo a importância da reforma da Previdência, considerada a medida mais importante de uma série de recomendações listadas no documento de quase 40 páginas.
Para especialistas, a chave para atacar a desigualdade é focar em uma reforma que acabe com as diferentes regras de acesso, principalmente entre servidores públicos e aposentados da iniciativa privada.
Luís Eduardo Afonso, professor da USP, destaca que as diferenças se multiplicam no sistema previdenciário: servidores recebem mais que aposentados do setor privado; benefícios por tempo de contribuição são maiores que os por idade; aposentadorias urbanas são maiores que rurais. “A convergência de regimes é fundamental”, diz ele.
Uma das ideias em análise pelo novo governo é que servidores que ingressaram na carreira antes de 2003 só possam se aposentar com integralidade (recebendo o último salário) e paridade (tendo direito ao mesmo reajuste que os ativos) ao atingirem idade mínima de 65 anos. Essa medida tornaria mais igualitários os regimes previdenciários.
No estudo da Fazenda, os técnicos afirmam que a proposta de emenda constitucional (PEC) que tramita na Câmara dos Deputados é um bom “ponto de partida”. Logo após a eleição, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, buscou apoio para aprová-la, mas a ideia não foi à frente.
Reforma fatiada
Nesta quarta-feira, Bolsonaro disse que pretende colocar em votação um projeto de reforma nos primeiros seis meses. Como já tinha dito na terça-feira, ele afirmou que a reforma poderá chegar ao Congresso fatiada, com pontos agregados em diferentes projetos, para facilitar sua aprovação.
“O que mais interessa, num primeiro momento, é a idade mínima. Então vamos começar com essa. É a ideia, mas pode mudar, e isso não quer dizer que houve recuo, é sinal de que houve mais negociação. Mas a ideia é começarmos pela idade e depois apresentarmos outras propostas”.
A intenção de Bolsonaro é dialogar com o Congresso antes de enviar as propostas, para que sofram poucas alterações:
“Antes de mandar qualquer proposta, vamos convidar os líderes e discutir com suas respectivas assessorias técnicas para, quando chegar à Câmara, pouca coisa seja alterada pela votação”.
Rafael Cortez, analista político da consultoria Tendências, acha que a aprovação em partes é uma estratégia insatisfatória para as expectativas do mercado. E não incorporar o funcionalismo nos primeiros passos da reforma é negativo, diz ele, pois sinaliza que o governo vai manter privilégios.
“Uma postura mais conservadora no enfrentamento da agenda fiscal pode gerar uma crise de confiança e um ajuste das expectativas do mercado para um patamar de percepção de risco maior. Vai romper com a ideia de que o novo governo seria mais ambicioso, utilizando seu capital político inicial”.
O economista Sergio Vale, da MB Associados, também avalia como ruim um eventual fatiamento. Mas entende que se trata de uma postura coerente diante da dificuldade política que o futuro governo enfrentará ao tratar do assunto:
“No caso da Previdência, será necessário um esforço de convencimento por parte do Executivo. Ao decidir por esse caminho (fatiar a reforma), além de correr o risco de não ter a reforma aprovada, perde-se tempo e capital político”.
Na avaliação de Pedro Herculano de Souza, técnico de planejamento do Ipea, uma proposta que reduza distorções pode melhorar índices de desigualdade, apesar do efeito ser limitado:
“É difícil melhorar a desigualdade só mexendo na Previdência. O que faria diferença é gastar bem os recursos economizados com a reforma, por exemplo, em programas para crianças em situação de pobreza”.
Fim do abono
Além da reforma da Previdência, o documento da Fazenda sugere uma ampla revisão das políticas sociais como uma segunda etapa da Previdência. Segundo o estudo, esse segundo passo deve abranger uma reforma da Previdência dos militares; uma nova política de reajuste do salário-mínimo condizente com os níveis de remuneração do setor privado; e uma nova formatação da aposentadoria rural como programa assistencial.
Outra sugestão é a reforma do FGTS. Segundo o relatório, o Fundo hoje acaba trazendo prejuízos aos trabalhadores, porque as contas são sub-remuneradas. A ideia seria permitir que os recursos sejam aplicados de forma livre e torná-lo um instrumento complementar de financiamento do seguro-desemprego.
A Fazenda defende ainda a extinção do abono salarial, “por representar um programa que beneficia população distante da pobreza extrema”. Isso porque o abono é destinado a trabalhadores que estão formalizados.
Em outro trecho, o relatório elenca nove riscos ao equilíbrio das contas públicas para os próximos anos. Uma delas é a revisão da Lei Kandir, que prevê repasses de R$ 39 bilhões da União a estados só no primeiro ano. A legislação, de 1996, foi criada para incentivar exportações, reduzindo a cobrança de ICMS. Os estados argumentam que a medida provocou perda de receita.
As regras para a política fiscal também podem estar ameaçadas, avalia o relatório da Fazenda. Segundo o estudo, há pelo menos 20 projetos de lei que preveem mais vinculações no Orçamento, que já é considerado engessado, com mais de 90% dos gastos ligados a despesas obrigatórias.
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