20/05/2024 - Edição 540

Brasil

Maioria de deputados do Rio Grande do Sul apoia projetos que podem agravar crise climática

Leite mudou quase 500 normas ambientais em 2019; especialistas criticam gestão

Publicado em 09/05/2024 10:24 - Anna Beatriz Anjos (Agência Pública), Jorge Abreu (Folha de SP)

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Deputados federais do Rio Grande do Sul votaram maciçamente a favor de duas propostas legislativas que ameaçam o meio ambiente e o combate à crise climática. Segundo especialistas ouvidos pela Agência Pública, se aprovados, esses projetos podem contribuir para que ocorram novas tragédias como a vivida pelo estado neste momento, que já deixou um rastro de destruição sem precedentes, com mais de 90 mortos, 362 feridos e cerca de 1,4 milhão de pessoas afetadas pelas chuvas.

De acordo com o Observatório do Clima, rede formada por 107 organizações ambientais, eiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão”.

Entre eles, dois PLs se destacam como especialmente prejudiciais ao Rio Grande do Sul. Ambos estão em uma lista, lançada nesta terça-feira, 7 de maio, pela Frente Parlamentar Ambientalista. A relação reúne 23 projetos em análise no Congresso que deveriam ser arquivados por “impulsionarem a degradação ambiental e agravarem a crise climática e a ocorrência de catástrofes”.

O primeiro deles é a proposta que busca criar a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021). Ela é apontada como carro-chefe do “pacote da destruição” identificado pelo Observatório do Clima. A elaboração de uma lei federal sobre o tema era, a princípio, uma demanda dos ambientalistas, mas a versão atual do texto, oriunda da Câmara dos Deputados, é considerada por eles e por especialistas da área a mais grave possibilidade de “boiadas” em apreciação hoje no Congresso.

Se aprovada uma versão similar a essa, a lei deverá consolidar e até ampliar uma medida antecipada pelo governo e Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: a implementação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC) no estado. o concedidas por um sistema online sem que haja análise prévia pelo órgão ambiental estadual, o que, em tese, ocorre depois.

A criação da LAC integrava um projeto apresentado em 2019, primeiro ano do governo de Eduardo Leite (PSDB-RS), e aprovado pelo Parlamento estadual em 2020. A lei desconfigurou o antigo Código Ambiental do Rio Grande do Sul ao alterá-lo em cerca de 500 pontos. As mudanças foram realizadas para afrouxar a legislação.

O projeto em apreciação no Congresso dispensará de licenciamento ambiental também certas atividades agropecuárias se o imóvel onde ocorrerem estiver regularizado no Cadastro Ambiental Rural (CAR), em processo de regularização ou se houver firmado termo de compromisso para recompor vegetação desmatada ilegalmente. “Isso poderia afetar muito o Rio Grande do Sul por causa da sua economia”, destaca Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. O estado é, por exemplo, o maior produtor de arroz do país.

“O licenciamento ambiental é a principal ferramenta de prevenção de danos [ambientais] que o Brasil tem”, explica Araújo. “E o texto da Câmara é uma implosão do licenciamento ambiental no país”, acrescenta.

Em 13 de maio de 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro, o texto-base do projeto foi aprovado no plenário da Câmara por 300 votos a 122 (à época, era numerado como PL 3.179/2004). Da bancada de 31 deputados eleitos pelo Rio Grande do Sul, 29 se posicionaram. Destes, 22 – três a cada quatro do total – votaram a favor da matéria. Eles pertencem majoritariamente a partidos de direita e que formam o chamado “Centrão” – MDB, Novo, PP, PSD, PSDB e PTB.

Organizações ambientalistas pressionam para que haja mudanças durante a tramitação do PL no Senado, que ocorre desde junho de 2021. A matéria aguarda os pareceres dos relatores Confúcio Moura (MDB-RO), na Comissão de Meio Ambiente, e Tereza Cristina (PP-MS), na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. Além de ter sido ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Bolsonaro, ela é uma das lideranças da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a chamada bancada ruralista, que reúne oficialmente 19 deputados e dois dos três senadores gaúchos.

Projeto de deputados gaúchos pode ajudar a destruir um terço dos Pampas

eputados federais gaúchos. O texto original foi proposto em fevereiro de 2019 por Alceu Moreira (MDB-RS), e a versão aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara no último 20 de março é um substitutivo de autoria do relator Lucas Redecker (PSDB-RS). Ambos são membros da bancada ruralista e também votaram a favor do PL do Licenciamento Ambiental em maio de 2021.

A matéria pretende alterar o Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica para flexibilizar a proteção a áreas de vegetação não florestal. Nota técnica da organização SOS Mata Atlântica a classifica como “extremamente grave” por, “numa só tacada, retirar a proteção adicional a toda a Mata Atlântica, bem como deixar completamente desprotegidos cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos em todo o país”.

A análise estima que, se virar lei, o projeto pode facilitar a destruição de 32% dos Pampas, bioma que se estende por 69% do território do Rio Grande do Sul. A lei tem ainda o potencial de afetar metade do Pantanal, 7% do Cerrado e quase 15 milhões de hectares na Amazônia, “sujeitando-os a uma conversão agrícola descontrolada e ilimitada”.

O PL passou na CCJ por 38 votos a 18. Os três deputados do Rio Grande do Sul presentes à sessão se manifestaram de forma favorável à proposta – um deles, o próprio Redecker. A aprovação se deu em caráter conclusivo, o que permite que o texto siga direto ao Senado. Em 17 de abril, deputados da federação PSOL-Rede, capitaneados por Erika Hilton (PSOL-SP), apresentaram um recurso para tentar reverter essa medida.

O projeto inicial de Moreira tinha como alvo os campos de altitude, ecossistema da Mata Atlântica característico da região Sul disputado por produtores rurais. Redecker, no entanto, alargou a abrangência da proposta, que agora atinge “imóveis rurais com formações de vegetação nativa predominantemente não florestais, tais como os campos gerais, os campos de altitude e os campos nativos”. Nestes, de acordo com o texto, “é considerada ocupação antrópica a atividade agrossilvipastoril preexistente a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, caracterizando-se tais locais, para todos os efeitos desta lei, como área rural consolidada”.

Suely Araújo pontua que o PL pode ampliar ainda mais as áreas desmatadas no estado, que elevam a vulnerabilidade a eventos climáticos extremos como as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul nos últimos dias. “No Rio Grande do Sul, há uma cultura de praticar a agricultura com muito desmatamento e pouca atenção para conservação ambiental, inclusive a conservação do solo”, diz. “Quando vêm esses eventos ligados às chuvas, a água escorre, ela não tem barreiras. A vegetação natural não vai impossibilitar as enchentes, mas diminui seus efeitos.”

Para a especialista, há uma forte contradição entre a postura dos parlamentares no momento pós-tragédia, em que há mobilização maciça para enviar auxílio aos atingidos e reconstruir as infraestruturas destruídas, e sua atuação em pautas que podem fortalecer salvaguardas ambientais e climáticas.

“Agora, temos que pensar na tragédia humana. Os parlamentares têm mesmo que correr atrás de recursos – e tomara que consigam reuni-los e mandá-los pra lá –, porque isso é necessário”, ressalta. “Mas eles não fazem relação entre as normas que estão admitindo o desmatamento e outras flexibilizações da legislação e o que ocorre em campo. Na verdade, há uma incompreensão, no meu ponto de vista. Eles não conseguem fazer essa conexão.”

Leite mudou quase 500 normas ambientais em 2019; especialistas criticam gestão

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), alterou em torno de 480 normas do Código Ambiental do estado em seu primeiro ano de mandato, em 2019. A medida, sancionada em 2020, acompanhou o afrouxamento da política ambiental brasileira incentivada, à época, pelo então ministro Ricardo Salles, do MMA (Ministério de Meio Ambiente), no governo Bolsonaro.

Agora, em meio às enchentes no estado, ambientalistas criticam a gestão de Eduardo Leite e apontam o governador como o articulador, junto à Assembleia Legislativa, do que chamam de desmonte das leis estaduais de proteção ambiental.

Em nota, o governo do RS diz que a mudança do código teve, como base, discussões que envolveram sociedade e instituições, como a Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). O Executivo afirma ainda que as catástrofes climáticas são uma tendência mundial, com ocorrências mais frequentes e intensas, sendo assim, não atribuíveis à atualização da lei.

“A atualização alinhou a lei estadual à legislação federal. A modernização acompanhou as transformações da sociedade, tornando a legislação aplicável, priorizando a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável”, diz, em nota.

O diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega que a sociedade civil e entidades ambientalistas tenham participado da construção do novo código. Biólogo e pós-graduado em análise de impacto ambiental, ele afirma que as mudanças foram tomadas de forma unilateral, encabeçadas pelo governador.

Milanez conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a aprovação da Assembleia Legislativa.

A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade civil.

“O atual governador destruiu esse Código Ambiental. Nós pedimos debate com a sociedade, mas ele fugiu. Leite tem maioria na Assembleia Legislativa. O código era a maior obra-prima do consenso de um estado”, critica o biólogo.

“No outro ano [2021], ele mudou a primeira lei de agrotóxicos do hemisfério sul do planeta [aprovada no começo dos anos 80]. Ele tirou o item mais importante dessa lei, que era o seguinte: nenhum agrotóxico pode ser licenciado no Rio Grande do Sul se não for licenciado no país de origem”, ressalta.

Milanez critica também a sanção do governador, neste ano, de lei que flexibiliza a construção de barragens e outros reservatórios de água dentro de áreas de proteção permanente. De acordo com o ambientalista, essa medida é preocupante por poder afetar o fluxo natural da água, o que pode gerar cheias de rios e chuvas mais concentradas.

“O Rio Grande do Sul foi pioneiro na legislação ambiental e na própria luta em prol do meio ambiente no Brasil. E agora está fazendo o pior papel possível. Nesses últimos anos, nós estamos pagando a conta da destruição ambiental e ela se dá por várias formas.”

Para Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de mais de cem organizações socioambientais, o desmonte vai além do governo estadual e da Assembleia Legislativa. Ele enfatiza a participação do Congresso Nacional no afrouxamento de políticas ambientais, com a contribuição de deputados federais e senadores eleitos pelo Rio Grande do Sul.

Astrini avalia que o Brasil vive duas ondas de prejuízos, uma delas na questão climática e a outra na mudança de legislação, que flexibiliza regras de proteção ambiental. Ele cita a liberação de construções em áreas que alagam e a eliminação de vegetação que poderia drenar a água e tornar o solo mais compacto.

“Temos autoridades no país que estão trabalhando no sentido contrário àquilo que deveria ser feito. São pessoas que fazem projetos de lei para incentivar o desmatamento, para diminuir a capacidade de fiscalização e investimento, para reduzir operações de campo, para liberar cada vez mais áreas que beneficiam a grilagem de terras”, afirma.

Astrini dá como exemplo o projeto de lei 3.729/2004, aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados, que flexibiliza normas e dispensa diversas atividades da obtenção do licenciamento ambiental, considerado um retrocesso por entidades ambientalistas. A proposta teve votação favorável de 22 parlamentares do Rio Grande do Sul, filiados aos partidos PL, PP, PDT, PSDB, MDB, Republicanos, Novo, MDB, Podemos e PSD.

“Existem projetos de lei de anistia para desmatadores e grileiros, projeto de lei que acaba com as demarcações de terras indígenas e coloca em revisão as já existentes no Brasil —lembrando que a terra indígena é a forma mais rápida de conter desmatamento. Existem PLs de liberação de mineração em unidades de conservação e para subverter o uso do Fundo Amazônia”, enumera.

Para Astrini, com base em outros episódios climáticos recentes devastadores no Rio Grande do Sul, Eduardo Leite poderia ter sido exemplo na preparação para situações extremas, mas, na sua visão, ignorou os alertas de desastres e protagonizou a diminuição de proteção ambiental de áreas sensíveis.

“Se o governador não acreditar agora nessa questão de clima, eu não sei qual vai ser o momento. Porque o estado que ele governa sofreu em 2021 e 2022 duas secas extremamente severas, que trouxeram prejuízos bilionários para a produção agrícola. E agora está sofrendo um período de chuva desde setembro do ano passado, quando já teve a primeira enchente muito grande”, afirma.


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