Brasil
Publicado em 07/02/2019 12:00 -
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As mulheres brasileiras adultas que registraram episódios de violência nos serviços de saúde públicos têm chance 151,5 vezes maior de morrer por homicídio ou suicídio em comparação com a população feminina geral. Os homicídios e suicídios correspondem a 83% das mortes por causas externas em mulheres vítimas de agressões anteriores.
No caso de idosas e crianças que sofreram violência prévia, a mortalidade por causas violentas aumenta ainda mais: mulheres com mais de 60 anos têm chances 311,4 vezes maiores enquanto meninas com menos de 9 anos têm 256,1 vezes a mortalidade média de outras meninas na mesma faixa etária. Os dados foram compilados pelo Ministério da Saúde e serão publicados em março no livro Saúde Brasil 2018.
Considerando apenas as mulheres adultas, a taxa média anual de mortalidade por causas externas foi de 1.170 por 100 mil. Isso significa que, em média, uma em cada 100 mulheres adultas que deu entrada em hospitais ou postos de saúde públicos por conta de agressões morreu por ano no período.
A coordenadora do estudo, Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde (DANTPS), acredita que uma análise de dados mais recentes deve revelar uma situação ainda mais grave. “Desde 2018 estamos identificando um aumento significativo da violência contra mulher, incluindo meninas menores de 10 anos e adolescentes”, explica. “A situação está preocupante, parece que a violência de gênero e agressão sexual contra mulheres e crianças estão liberadas.”
O ministério ainda não possui uma comparação entre notificações de violência e óbitos de mulheres para os anos de 2017 e 2018. No entanto, dados preliminares de 2017 mostram que, naquele ano, as notificações aumentaram 30% em relação a 2016.
O aumento foi maior entre crianças de até 9 anos e adolescentes entre 10 e 19 anos. Entre crianças as notificações cresceram 32% e entre adolescentes, 37%, na comparação de 2017 com o ano anterior. Já os atos praticados contra mulheres adultas e idosas subiram 28% e 29%, respectivamente.
Em média foram registradas 630 notificações de violência contra mulheres por dia no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2017. As notificações englobam apenas violências intencionais praticadas por terceiros ou pela própria vítima, o que inclui tentativas de suicídio ou automutilação.
O objetivo da análise do Ministério da Saúde era comparar a taxa média anual de óbito por causas externas entre mulheres com e sem notificação de violência nos serviços de saúde brasileiros. Para isso, foram usados dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), onde são registradas todas as declarações de óbito, e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para notificar a condição de pacientes vítimas de violência de diversos tipos. O grupo de analistas fez um cruzamento desses dois sistemas para identificar as mulheres, em todas as faixas etárias, que tiveram notificação de violência prévia e foram a óbito por causas externas no período de 2011 a 2016.
Vale destacar que as notificações registradas no Sinan não pressupõem que a vítima fez denúncia da agressão às autoridades policiais. A notificação de violência é um registro feito por um médico ou funcionário da unidade de saúde no sistema e não corresponde a uma denúncia. Trata-se de um instrumento que também permite a apuração de dados confiáveis sobre as doenças e agravos registrados pelos serviços públicos.
A notificação no Sinan é obrigatória em todos os casos em que há suspeita ou confirmação de violência doméstica ou intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas praticadas contra mulheres e homens em todas as faixas etárias. No caso de violência extrafamiliar e comunitária, ou seja, aquela que ocorre fora do ambiente doméstico, apenas as praticadas contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoa com deficiência, indígenas e população LGBT são de notificação compulsória.
De acordo com as diretrizes do ministério, as unidades de atendimento de saúde não são obrigadas a encaminhar os pacientes alvo de notificações aos serviços de atenção psicossocial ou orientação para a vítima procurar a Delegacia de Mulheres de sua região.
O encaminhamento do caso ao Conselho Tutelar ou Ministério Público é obrigatório quando a violência é praticada contra crianças e adolescentes; no caso de agressões contra pessoas idosas, o encaminhamento ao Conselho Municipal do Idoso ou Ministério Público também é compulsório. Em agressões contra pessoas com deficiência, a lei determina que sejam comunicados o Conselho dos Direitos das Pessoas Deficientes e o Ministério Público e que a autoridade policial local seja acionada.
Já no caso de mulheres adultas que estejam vivenciando situações de violência e que não sejam nem idosas nem deficientes, as equipes de saúde são orientadas a informar sobre a existência de serviços da rede de proteção social e sobre a importância da denúncia, mas não devem encaminhar o caso sem autorização explícita.
Como o número de mulheres que segue as orientações e formaliza a denúncia é muito inferior à quantidade de ocorrências, os dados das polícias resultam subnotificados. Assim, os números das notificações nos serviços de saúde são mais utilizados por pesquisadores para analisar o cenário de violência contra a mulher no Brasil. O número real de mulheres vítimas de agressão que depois morreram por causas violentas pode ser ainda maior já que as estatísticas do Sinan excluem as vítimas que não se dirigem aos serviços de saúde e também as que procuram atendimento médico na rede particular.
O Ministério da Saúde utiliza dados identificados, ou seja, que permitem ao pesquisador verificar o nome e outras informações pessoais das vítimas. Isso possibilita que sejam feitos cruzamentos de informações inéditas. Para preservar a privacidade das pacientes, esses dados não são fornecidos a outras entidades de pesquisa. Assim, somente o próprio ministério pode fazer comparações como essa – cruzando os dados de mulheres vítimas de agressões com os de mulheres que foram a óbito.
Os resultados obtidos nessa análise mostram que a notificação no setor de saúde deve ser entendida como um sinal de alerta para a ocorrência de óbitos que podem ser evitados. Uma das conclusões da análise é que são necessárias medidas e políticas públicas mais eficazes. “O enfrentamento da violência contra as mulheres impõe o fortalecimento de estratégias de vigilância, acolhimento e atenção pelos serviços de saúde, articuladas intersetorialmente dentro da rede de proteção e responsabilização”, atesta o documento do Ministério da Saúde.
Para Maria Fernanda Terra, professora de saúde coletiva na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o relatório demonstra que é necessário repensar o que é feito a partir das notificações de violência. “Trata-se de um dado importante porque ele ajuda as instituições a elaborar políticas públicas e identificar os problemas. Mas o que está sendo feito com esse dado? Como ele está sendo usado? Qual o processo de cuidado que está sendo oferecido a essas mulheres nas unidades de saúde?”, questiona Maria Fernanda. “As mulheres muitas vezes ainda não sabem que a unidade de saúde também é um local em que elas podem pedir ajuda.”
Segundo a professora da Santa Casa, os dados do Ministério da Saúde comprovam que a violência de gênero precisa ser combatida com ações multissetoriais. A raiz do problema está na desigualdade entre homens e mulheres, que, para a pesquisadora, precisa ser questionada não apenas com políticas de saúde pública, mas também no âmbito educacional e pelas autoridades policiais. “A gente vive em uma sociedade que culpa as mulheres por viver uma situação de violência. As mulheres, de todas as faixas etárias, são mais desacreditadas”, explica.
O estudo do Ministério da Saúde traz ainda detalhes sobre as agressões sofridas pelas mulheres que depois faleceram por causas externas. As informações são extraídas das fichas de notificação do Sinan, preenchidas pelos médicos que atenderam essas pacientes após o episódio de violência. A agressão física prevaleceu em todas as faixas etárias, com 62% do total. Já a negligência foi mais comum entre crianças (32% dos casos) e idosas (16% dos casos). A residência das vítimas foi o principal local de ocorrência da violência para todas as idades e corresponde a 71% dos registros.
Dentre os meios de agressão mais utilizados destacou-se a força corporal, presente em 19% das ocorrências, seguida pelo uso da arma de fogo, relatado em 16% dos casos. A arma de fogo foi mais utilizada contra mulheres mais novas, usada contra 21% das jovens (de 20 a 29 anos) e 25% das adolescentes (de 10 a 19 anos). O enforcamento (sufocação), terceiro meio de agressão mais comum, prevaleceu entre as mulheres idosas: 20% das mulheres com mais de 60 anos foram vítimas desse tipo de ataque.
As características dos prováveis agressores mostram ainda que 45% de todas as violências foram praticadas por pessoas conhecidas, entre familiares, parceiros íntimos ou amigos. Apenas 11% das agressões contra mulheres que depois morreram por causas violentas foram perpetradas por desconhecidos.
Em 39% dos casos a agressão partiu da própria vítima, ou seja, foi autoprovocada. A proporção é ainda maior entre mulheres adultas e idosas: corresponde a 47% dos casos na faixa entre 30 e 59 anos e 49% no grupo com mais de 60 anos. Para os pesquisadores, essa característica revela maior vulnerabilidade das mulheres desse grupo. Esse registro, no entanto, pode esconder agressões feitas por terceiros que são relatadas aos médicos como autoprovocadas.
“É muito difícil para o profissional de saúde determinar exatamente a origem da violência. Muitas mulheres podem falar em lesão autoprovocada quando ela foi feita por uma pessoa próxima e querida”, explica Maria Fernanda Terra. “Nesses casos, por conta da vergonha, é mais difícil para a vítima falar quem foi o responsável, então ela se culpabiliza pela própria violência por conta do medo e da proximidade.”
Segundo os autores do estudo, automutilações ou ferimentos decorrentes de tentativa de suicídio também podem ser consequência de exposição anterior à situações de violência, especialmente a sexual. “Cabe destacar que a violência crônica tem sido considerada um fator de risco para lesão autoprovocada, que por sua vez é considerada fator de risco para suicídio. Esses eventos também podem ser consequência da exposição a situações de violências, especialmente a sexual”, atesta o relatório. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pesquisas recentes feitas na América Latina e Caribe constataram que um grande percentual de mulheres vítimas do parceiro íntimo foi diagnosticado com ansiedade ou depressão e teve maior probabilidade de cogitar ou tentar suicídio.
No caso das crianças, 73% dos agressores eram pessoas que pertencem ao círculo familiar. O dado preocupa porque em muitos casos os próprios agressores são as pessoas responsáveis pelo cuidado e proteção das crianças. Entre 2011 e 2016, 295 crianças morreram por causas violentas depois de já terem passado por unidades de saúde por conta de episódios de agressão ou negligência. Essa situação dificulta a visibilidade do problema, o acesso aos serviços de saúde e, principalmente, o fim das agressões.
“Crianças são sempre o grupo mais vulnerável porque elas muitas vezes não têm a percepção clara do que é certo e errado”, explica Maria Fernanda. “Vivemos em uma sociedade que desacredita a criança, então a tendência é ela esconder e sofrer com aquilo.”
A raça e a escolaridade das vítimas também são características que apontam para a existência de outros grupos de maior vulnerabilidade. Mais de 50% das adolescentes e jovens com notificação prévia de violência e óbito por causas externas eram mulheres negras ou pardas. O relatório destaca que nesse grupo pode haver um acúmulo de desigualdades relacionadas à estrutura socioeconômica, que limita o acesso a condições de proteção social adequadas. Com relação à escolaridade, 38% de todas as mulheres vítimas de violência e que morreram por causas externas possuem apenas o ensino fundamental completo.
Outro indicador de vulnerabilidade verificado na pesquisa foi o tamanho do município da vítima. Mais de um terço dos municípios de residência das mulheres adolescentes, jovens, adultas e idosas que sofreram violência possuía até 50 mil habitantes. “Nos municípios menores é provável que o medo, a vergonha e a falta de serviços de atendimento adequados façam com que o risco da mulher seja muito maior”, avalia Maria Fernanda.
Segundo ela, em municípios maiores, a mulher pode optar por procurar ajuda longe de sua residência e escapar dos olhares de conhecidos ou familiares, o que a faz sentir-se menos fragilizada. “Esses marcadores, somados a uma rede fragilizada de apoio à mulher, aumentam a vulnerabilidade das habitantes dessas cidades”, explica a pesquisadora.
Além dos dados que cruzam os registros de violência e os óbitos de mulheres, o Ministério da Saúde compila todas as notificações de violência contra a mulher registradas pelo Sinan. Os dados preliminares de 2017 mostram que a quantidade de registros cresceu 30% em relação a 2016, com incremento maior entre crianças e adolescentes. Foram mais de 230 mil notificações no Sinan apenas em 2017, o que equivale a mais de 630 casos por dia.
“A tendência da curva muda em 2017, quando o aumento em relação ao ano anterior fica mais acentuado”, destaca Maria de Fátima Marinho, responsável pelo DANTPS no Ministério da Saúde. “O dado de 2018 deve confirmar essa mudança de patamar.”
O perfil das agressões registradas em 2017 é muito similar ao das agressões perpetradas entre 2011 e 2016 contra mulheres que depois morreram por causas violentas. A maior parte (63%) também ocorreu no ambiente doméstico e o principal meio utilizado também foi a força corporal, registrada em 47% dos casos.
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