18/05/2024 - Edição 540

Poder

Lula recua e diz que prisão de Putin no Brasil seria ‘decisão da Justiça’

Presidente violaria Haia e a Constituição se atuasse contra a prisão do russo

Publicado em 11/09/2023 9:13 - DW, Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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Depois de dizer que o líder russo Vladimir Putin não corria o risco preso caso viajasse ao Brasil, o presidente Lula recuou em novas declarações nesta segunda-feira (11). Em entrevista coletiva na Índia, o mandatário brasileiro disse que “se Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão de prendê-lo ou não é a Justiça”.

O chefe do governo russo é alvo de um mandado de prisão expedido em março deste ano pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), do qual o Brasil é membro.

Lula está na Índia para a cúpula do G20. No fim de semana, ele assumiu a presidência rotativa do grupo e terá o compromisso de ser o anfitrião da próxima reunião do grupo, em 2024. No sábado, Lula havia dito em entrevista ao site indiano Firstnews que Putin poderia “ir facilmente” ao Brasil para participar da cúpula do G20. “Se eu for presidente do Brasil, e se ele [Putin] vier para o Brasil, não tem como ele ser preso. Ninguém vai desrespeitar o Brasil”, disse Lula na ocasião.

O mandado de prisão do TPI já levou Putin a evitar o encontro de líderes do Brics deste ano em Joanesburgo, já que a África do Sul também é signatária do Estatuto de Roma – tratado de 1998 que sustenta o TPI. Tanto na cúpula do Brics quanto na do G20, a Rússia foi representada pelo ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov.

Nesta segunda-feira, em coletiva de imprensa antes de deixar a Índia, Lula voltou a ser questionado sobre o tema, mas desta vez evitou garantir a presença de Putin no Brasil. “Se o Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão de prendê-lo ou não é a Justiça, não o governo nem o Congresso Nacional”, afirmou.

Por outro lado, Lula também questionou a presença do Brasil no TPI, embora tenha negado que avalie retirar o país do tratado. “Eu inclusive quero muito estudar essa questão desse Tribunal Penal [Internacional] porque os Estados Unidos não são signatários dele, a Rússia não é signatária dele também. Então, eu quero saber por que o Brasil é signatário de um tribunal que os EUA não aceitam. Por que somos inferiores e temos que aceitar uma coisa?”

“Não estou dizendo que vou sair de um tribunal. Eu só quero saber por que Estados Unidos não é signatário, por que a Índia não é signatária, por que a China e a Rússia não são signatárias e por que o Brasil é signatário”, declarou. “Qual é a grandeza que fez o Brasil tomar essa decisão de ser signatário?”, indagou Lula. “Os países do Conselho de Segurança da ONU não são signatários, só os bagrinhos assinam.”

Mandado expedido em março

No dia 17 de março deste ano, o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, emitiu um mandado de prisão contra Putin por crimes de guerra, acusando-o de ser responsável pela deportação ilegal de crianças da Ucrânia.

Por meio de um comunicado, o tribunal acusa Putin de ser “alegadamente responsável pelo crime de guerra de deportação ilegal de população (crianças) e transferência ilegal de população (crianças) de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa”.

O tribunal imputa a Putin crimes de guerra cometidos “em território ucraniano ocupado pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022”, alegando existirem “motivos razoáveis para acreditar” que o presidente russo falhou “em exercer o controle adequado sobre os subordinados civis ou militares que cometeram esses atos”.

O mandado expedido pelo TPI obriga seus Estados-membros a prender Putin se ele pisar em seus territórios, mas a corte não tem uma força policial própria ou outras maneiras para executar os mandados.

Kremlin ignora processo

Moscou nega as acusações de que suas forças tenham cometido atrocidades durante a invasão à Ucrânia. Mas não esconde que tem um programa por meio do qual levou milhares de crianças ucranianas à Rússia, apresentando-o como uma campanha humanitária para proteger órfãos e crianças abandonadas nas zonas de conflito.

Depois de divulgado o pedido de prisão de Putin, o Kremlin não respondeu imediatamente às acusações. Na época, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Maria Zakharova, disse que os mandados de prisão do TPI “não têm significado para nosso país, inclusive do ponto de vista jurídico”.

Ela acrescentou que a Rússia – tal qual a Ucrânia – não integra o Estatuto de Roma, e Moscou, portanto, argumenta que desconhece sua jurisdição.

Atualmente, 123 países são membros do TPI, a exemplo da maioria dos países europeus e latino-americanos. Estados Unidos, China e Índia não são signatários.

O Brasil assinou o documento em 2000, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. O acordo foi ratificado pelo Congresso Nacional em 2002, levando-o, assim, a integrar a legislação brasileira e oficializando o ingresso do Brasil no TPI.

Lula violaria Haia se não prender Putin

Se cumprisse o que anunciou no sábado – que o Brasil não iria prender Vladimir Putin se ele viajasse ao país para a cúpula do G20 – Lula violaria o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional e a própria Constituição brasileira.

Mas, sem um braço policial ou qualquer tipo de sanção, pouco poderia ser feito contra o Brasil, além de uma declaração de descumprimento de obrigações internacionais e um mal-estar diplomático.

A entidade, em março deste ano, pediu a prisão do presidente da Rússia, após a divulgação das investigações que concluíram que o russo cometeu crimes de guerra durante a invasão da Ucrânia, em específico diante da deportação de crianças. O gesto, porém, foi denunciado como um ato político por parte da diplomacia internacional.

Putin não será preso na Rússia, já que o país não reconhece a jurisdição da Corte. Mas autoridades como a do Brasil e de qualquer outro país membro do tribunal teriam a obrigação de prendê-lo se ele pisar em território nacional, segundo um ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro consultado pelo UOL.

Além dos russos, os governos dos EUA e da China tampouco ratificaram o tratado que cria a corte e não reconhecem sua jurisdição. Quando o tribunal iniciou uma investigação sobre as ações de tropas americanas, o então presidente Donald Trump adotou sanções drásticas contra os procuradores e funcionários da corte.

O caso do brasileiro é diferente, por conta de o país ter optado por aderir ao tratado e coloca o Brasil em uma saia-justa.

“A obrigação de se submeter ao TPI é Constitucional”, afirmou ao UOL a ex-juíza do Tribunal Penal Internacional, Sylvia Steiner. Ou seja, trata-se de uma cláusula pétrea.

Se quiser ser um mediador da guerra e canal para uma negociação, não poderá prender Putin. Mas, pela lei, a questão da não conformidade do Brasil poderia ser levada, em última instância, até mesmo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, numa queixa formal com implicações diplomáticas e de reputação.

Para observadores, o brasileiro também ameaça minar qualquer cooperação futura em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro, caso eventualmente ele seja indiciado pela mesma corte. O ex-líder brasileiro foi denunciado por sua gestão da pandemia e por ações contra indígenas. A procuradoria em Haia ainda avalia o caso. Mas, caso opte por abrir investigações formais, pedirá a colaboração do estado brasileiro.

Assim, uma recusa em agir contra Putin, para pessoas próximas ao tribunal, criaria um mal-estar nos demais casos envolvendo o Brasil, entre eles o de Bolsonaro.

Prisão ampliaria tensão internacional

Ao mesmo tempo, diplomatas brasileiros do mais alto escalão consideram que uma prisão de Putin seria desastrosa para a estabilidade internacional e enterraria qualquer chance de paz. O mandado estipulado contra o russo foi considerado por chancelarias de países emergentes como um erro e politizado.

O problema, porém, é que o Brasil ratificou o tratado, o que significa que é obrigado a cumprir com as determinações da corte.

Consta no artigo 59 do Estatuto da corte que:

  1. Um Estado Parte que tenha recebido um pedido de prisão provisória ou de prisão e entrega deverá imediatamente tomar medidas para prender a pessoa em questão, de acordo com suas leis e com as disposições da Parte 9.
  2. A pessoa presa deverá ser levada prontamente à autoridade judicial competente do Estado de custódia que determinará, de acordo com a legislação desse Estado, que:

(a) O mandado se aplica a essa pessoa;
(b) a pessoa foi presa de acordo com o processo adequado; e
(c) os direitos da pessoa foram respeitados.

Numa entrevista à imprensa indiana e que foi ao ar no sábado pela noite, Lula afirmou que, se Putin viajar ao Brasil, não seria detido e que nenhum país teria o direito de dizer o que o governo deve fazer.

O que ocorre, porém, é que isso não se trata de uma decisão de um governo estrangeiro. E sim de um organismo criado também pelo Brasil.

Existem acusações e dúvidas sobre a intenção do TPI com o mandado de prisão contra a Putin. Mas ignora-lo seria violar as regras.

De acordo com as regras, uma decisão de não cumprir a ordem poderia ser levada ao Conselho de Segurança da ONU. Diz o artigo 87 do Estatuto de Roma:

Quando um Estado Parte deixar de atender a uma solicitação de cooperação do Tribunal contrária às disposições do presente Estatuto, impedindo assim que o Tribunal exerça suas funções e poderes nos termos do presente Estatuto, o Tribunal poderá fazer uma constatação nesse sentido e encaminhar a questão à Assembleia dos Estados Partes ou, quando o Conselho de Segurança encaminhar a questão ao Tribunal, ao Conselho de Segurança.

No caso específico de Putin, não seria uma ação direta ao Conselho da ONU. Antes, teria de passar pela Assembleia dos Estados Partes que, por sua vez, poderia tomar eventuais medidas de sanção.

O que ocorreria se Putin receber convite para ir ao Brasil?

Uma vez confirmada a ida de Putin, Haia entrará em contato com as autoridades brasileiras para solicitar a prisão. O único espaço que o governo teria seria de consultar o tribunal para determinar e organizar de que forma a detenção deveria ocorrer.

Haia já denunciou governo que não colaborou

De fato, o debate sobre a imunidade de chefes de estado foi intensa nos últimos anos, mesmo depois da criação da corte. Um dos casos mais polêmicos foi a viagem do sudanês Omar Al Bashir para a Jordânia. O presidente africano havia sido condenado pelo Tribunal que, então, pedia aos governos que o prendessem caso ele pisasse em seu território.

A Jordânia ignorou o pedido para permitir que Bashir participasse de uma cúpula, em 2017. O caso, porém, foi denunciado e Haia concluiu que o governo jordaniano violou as regras ao não agir contra o sudanês.

O que disse a decisão da corte?

Constatou-se que a Jordânia, um Estado Parte do Estatuto de Roma do TPI desde 2002, não cumpriu suas obrigações ao não prender o Sr. Omar Al-Bashir (em todos os momentos relevantes o Presidente da República do Sudão (“Sudão”)) e entregá-lo ao TPI enquanto ele estava em território jordaniano participando da Cúpula da Liga dos Estados Árabes em 29 de março de 2017.

A Câmara de Recursos considerou que o artigo 27(2) do Estatuto de Roma do TPI, que estipula que as imunidades não são um impedimento para o exercício da jurisdição, reflete o status do direito internacional.

Concluiu que não há imunidade de Chefe de Estado nos termos do direito internacional em relação a um tribunal internacional

Para observadores, a decisão sobre Bashir “pacificou” o debate e ficou estabelecido que não existe imunidade que permita ignorar os mandados de prisão.

Por esse motivo, Putin evitou viajar até a África do Sul para a cúpula do Brics. Os sul-africanos também fazem parte da corte em Haia e teriam a obrigação de deter o presidente russo.


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