18/05/2024 - Edição 540

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‘Kids Pretos’: quem são os militares das Forças Especiais que podem ter atuado na tentativa de golpe

Governo Bolsonaro teria cooptado pelo menos 26 integrantes do grupo, como Mauro Cid, Eduardo Pazzuelo e Ridauto Lúcio Fernandes

Publicado em 05/10/2023 4:00 - Tulio Gonzaga e Plinio Teodoro (Fórum), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução/Agência Brasil

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Um grupo de militares do Exército Brasileiro chamado no jargão da caserna de “kids pretos” teria dado início às invasões às sedes dos Três Poderes da República, em 8 de janeiro de 2023. As técnicas militares empregadas pelo grupo, cujos integrantes são ou foram parte do Comando de Forças Especiais, teriam facilitado a tentativa de golpe durante a invasão dos edifícios públicos por milhares de terroristas de extrema direita. Vários desses “kids pretos” são ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um grupo com o qual o antigo chefe de Estado gostava de mostrar proximidade.

De acordo com o Exército, essas tropas das Forças Especiais (FE) existem desde 1957 e formam a elite de combate militar. Os “kids pretos” são cerca de 2,5 mil militares treinados para “operações de guerra irregular”, o que engloba ações de sabotagem, planos de fuga e resgate rápidos, ou ainda missões confidenciais de alto risco, além de monitoramento e infiltração em grupos de guerrilhas urbanas, insurgência e movimentos de resistência.

Eles recebem essa denominação em alusão à balaclava de cor preta vestida pelo grupo nas suas atividades. A suspeita de envolvimento dos “kids pretos” surgiu à partir da análise das imagens da invasão, que indicavam uma atuação profissional por pessoas com gorro preto que removeram e manusearam grades para benefício dos golpistas nas sedes do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF).

“O ponto de partida para isso foi o fato de terem sido encontradas, à época mesmo, as granadas ‘bailarinas’. Chegaram a ser veiculadas na imprensa algumas imagens desse tipo de artefato, das ‘bailarinas’, que são usadas pelas Forças Especiais em operações de entrada e ingresso em locais”, explica um servidor da Polícia Federal (PF).

O policial complementa a explicação sobre as táticas aplicadas: “O que também deu essa certeza sobre a participação das ‘FE’ foi a análise daquelas imagens que mostram como aqueles elementos da linha de frente utilizaram os gradis metálicos de proteção para abrir alas, digamos assim, para entrar nos prédios… Aquela também é uma técnica empregada pelos militares profissionais das Forças Especiais”.

Os supostos “kids pretos” no 8 de janeiro

De acordo com as investigações da 18ª fase da Operação Lesa Pátria da Polícia Federal, os “kids pretos” teriam se infiltrado no ato golpista de 8 de janeiro sob liderança do general Ridauto Lúcio Fernandes. O militar é ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde e ligado ao ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, além de ter sido comandante dos FE’s no Comando de Operações Especiais, sediado em Goiânia (GO).

Ridauto era diretor de Segurança e Defesa do Instituto Sagres, organização não governamental (ONG) de militares, que tem como principal articulador o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), a ONG do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O Instituto Sagres é ligada à ONG Instituto General Villas Bôas (IGVB), criada por Eduardo Villas Bôas, o militar golpista que foi assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República durante o governo Bolsonaro. Ele tornou-se célebre após ameaçar o STF durante julgamento de uma concessão de habeas corpus ao então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2018.

Cabe ao Comando Militar do Planalto (CMP) e ao GSI a segurança do Palácio do Planalto. Em 8 de janeiro, a segurança estava a cargo de dois “kids pretos”: o CMP era chefiado pelo general Gustavo Henrique Dutra de Menezes; e o GSI era liderado pelo general Gonçalves Dias – que pediu demissão após imagens exibirem sua inação na invasão.

Ligado ao ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos), Villas Bôas reuniu-se com Bolsonaro duas vezes para tratativas de golpe após a eleição de Lula, em 2022. Em dezembro, os militares pressionaram a cúpula das Forças Armadas a participarem do golpe, sobretudo o general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército.

Entre nomes conhecidos, estão os seguintes “kids pretos”:

– Luiz Eduardo Ramos, general e ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência;

Mauro Cid, general ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, investigado por envolvimento em um esquema de fraude no cartão de vacina e no escândalo das joias sauditas, e alvo de inquérito sobre a organização de atos golpistas;

– Eduardo Pazzuelo, general e ex-ministro da Saúde durante a pandemia e responsável pelo colapso do abastecimento de oxigênio no Amazonas, em janeiro de 2021;

– Elcio Franco Filho, coronel e auxiliar de Pazzuelo a pasta da Saúde, onde ignorou os e-mails da Pfizer oferecendo vacinas ao governo brasileiro, autorizou compra de vacinas superfaturadas e discutiu a mobilização de 1,5 mil soldados para dar golpe à favor de Bolsonaro.

General Ridauto traz Eduardo Villas Bôas para investigações sobre 8/1

O avanço das investigações da Polícia Federal pode tragar uma figura da caserna que vem há anos articulando movimentos para ascensão dos militares na política e nos bastidores do poder.

O Instituto Sagres, onde Ridauto atua, tem ligação estreita com outra ONG militar, o Instituto General Villas Bôas (IGVB), criado pelo ex-comandante do Exército que ameaçou o Supremo em 2018 durante julgamento do habeas corpus que daria a liberdade a Lula.

Em maio de 2022, as duas ONGs militares lançaram um documento de 93 páginas intitulado “Projeto de Nação”, um plano para perpetuar as aspirações da caserna golpista e do bolsonarismo ao menos até 2035.

De forma surreal, o “estudo” inicia com um “relatório de conjuntura”, mostrando a “evolução política-estratégica” datado de setembro de 2035, quando impera “o chamado globalismo — movimento internacionalista cujo objetivo é determinar, dirigir e controlar as relações entre as nações e entre os próprios cidadãos, por meio de posições, atitudes, intervenções e imposições de caráter autoritário, porém disfarçados como socialmente corretos e necessários”.

Entre as metas do plano estão o fim da obrigatoriedade do Sistema Único de Saúde (SUS) e a cobrança de mensalidades em universidades públicas até 2025.

O lançamento teve como estrelas Eduardo Villas Bôas e o então vice-presidente, general Hamilton Mourão. O ato foi realizado no auditório da Fundação Habitacional do Exército (FHE), entidade que gerencia a Associação de Poupança e Empréstimo (Poupex) dos militares, entidade que paga salários à esposa de Mourão e a uma filha e uma sobrinha de Villas Bôas.

Reunião com Bolsonaro

Um dos principais artífices do golpe de 2016, que tirou Dilma Rousseff (PT) da Presidência, Villas Bôas se reuniu pelo menos duas vezes com Bolsonaro enquanto a tentativa de golpe estava sendo tramada, após a vitória de Lula nas eleições de 2022.

O general esteve com o ex-presidente nos dias 7 e 20 de dezembro, quando militares golpistas pressionavam a cúpula das Forças Armadas, em especial o general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército, que era classificado como “general melancia” pelos bolsonaristas – verde por fora e vermelho por dentro.

No fim de novembro, antes de se reunir com Bolsonaro, Villas Bôas retomou o golpismo na rede X (antigo Twitter), endossando uma carta apócrifa de supostos militares da ativa que circulava entre a horda bolsonarista.

Na publicação na rede, Villas Bôas sai em defesa dos generais classificados como “melancias” pelos bolsonaristas, entre eles o atual comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, que substituiu Júlio Cesar Arruda após o 8 de janeiro.

Esposa do general, Maria Aparecida Villas Bôas esteve no acampamento em frente ao QG do Exército e tirou fotos com golpistas.

Ticiana Villas Bôas

Enquanto Villas Bôas se encontrava com Bolsonaro, a filha do general, Ticiana Villas Bôas, articulava com a esposa de Mauro Cid, Gabriela Cid, ações de apoio ao golpe.

Segundo Gabriela Cid, foi o próprio Bolsonaro quem queria que os seus apoiadores se dirigissem à capital do país em ação que buscava mantê-lo no poder ao contrário da vontade popular expressa nas eleições.

A dupla estava revoltada com o resultado das eleições e buscava narrativas e estratégias que pudessem viabilizar um golpe de estado. Era comum acordo que os manifestantes não deveriam reivindicar uma ‘intervenção federal’. Em troca, o correto seria exigir o impeachment de Alexandre de Moraes.

“Temos que pedir novas eleições com voto impresso, nada de intervenção federal. Temos que exigir novas eleições com voto impresso. Estamos diante de um momento tenso onde temos que pressionar o Congresso. Agora!”, escreveu Gabriela Cid. Ticiana Villas-Bôas respondeu: “Ou isso, ou a queda do Moraes”.

A seguir, ambas concordam que era preciso manter as hordas bolsonaristas mobilizadas nas ruas. É nesse contexto que Ticiana Villas-Bôas propõe que o próprio Exército oriente uma paralisação dos caminhoneiros. “Os caminhoneiros têm que parar sem obstruir [as rodovias]. E alguém precisa articular isso com eles e os manifestantes. Alguém tinha que falar com eles”, escreve.

“Pois é”, responde Gabriela Cid. E emenda nas mensagens seguintes aquilo que pode incriminar o ex-presidente. Ela diz com todas as letras que “o presidente pediu” que alguém orientasse os caminhoneiros e que seus apoiadores fossem para a capital.

“Foi o que pediu o presidente. E acho que todos que podem têm que vir a Brasília. Invadir Brasília como no 7 de setembro e dessa o presidente com toda essa força agirá”, escreveu.

Papel dos militares nada tem a ver com a arbitragem de conflitos

Tão logo Luíz Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, achar conveniente, a mais alta Corte de Justiça do país esclarecerá mais uma vez quais são as atribuições dos militares.

Elas estão definidas na Constituição, mas os militares as interpretam ao seu gosto. Uma ação do PDT levará o tribunal a debruçar-se de novo sobre o assunto. A primeira vez foi em 2020.

À época, em decisão provisória, o ministro Luiz Fux declarou que as Forças Armadas não exercem poder moderador em eventual conflito entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário

Foi nessa linha que se manifestou, ontem, a Advocacia-Geral da União (AGU):

“Deve-se afastar qualquer interpretação que confira atribuição moderadora às Forças Armadas, inexistindo entre suas funções a possibilidade de arbitramento de conflito entre os Poderes”.

A legislação determina que o presidente da República tem autoridade suprema em relação às Forças Armadas, mas isso só pode se dar “dentro da moldura constitucional”, diz a AGU.


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