18/05/2024 - Edição 540

Poder

Ex-comandante do Exército teria ameaçado Bolsonaro de prisão, diz Cid em delação

‘Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”, teria dito o general Freire Gomes

Publicado em 22/09/2023 10:47 - Plinio Teodoro (Fórum), Yurick Luz (DCM), Josias de Souza (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Bolsonaro e Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército. Estevam Costa/PR

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Principal alvo da pressão de bolsonaristas radicais, o general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército, teria ameaçado dar voz de prisão a Jair Bolsonaro (PL) na reunião em que o ex-presidente buscou apoio da cúpula das Forças Armadas para dar um golpe de Estado e prender opositores e o atual presidente, Lula, vencedor nas urnas.

A informação teria sido revelada na delação premiada do tenente coronel Mauro Cid, que afirma que o almirante Almir Garnier, da Marinha, teria sido o único entre os comandantes das três Forças a colocar as tropas à disposição do golpe de Bolsonaro – o brigadeiro Carlos Batista, da Aeronáutica, teria ficado calado.

A reação de Freire Gomes teria ocorrido no dia 24 de novembro quando, em reunião fora da agenda no Palácio do Planalto, Bolsonaro perguntou aos comandantes das três forças se estariam fechados com ele para contestar o resultado das urnas.

Garnier teria aderido prontamente. Já Freire Gomes afirmou que não compactuava com o plano e foi além: “Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”.

Segundo reportagem de Maria Cristina Fernandes, no Valor, o general tinha conhecimento de que não havia condições para o golpe dentro do Exército. Ele sabia que os comandantes do Sul (Fernando Soares), do Sudeste (Thomaz Paiva), do Leste (André Novaes) e do Nordeste (Richard Nunes) não apoiariam quaisquer aventuras golpistas de Bolsonaro.

Além disso, Freire Gomes estaria ciente de que um golpe dado por Bolsonaro não teria apoio dos Estados Unidos de Joe Biden, tanto de militares, quando de civis. Seis comitivas estadunidenses já teriam vindo ao Brasil em 2022 para dar esse recado a Bolsonaro e às Forças Armadas.

Favores a Bolsonaro

Na delação, Cid ainda teria revelado que Garnier aderiu ao golpe por dever favores a Bolsonaro. Ele foi alçado ao comando da Marinha pelo ex-presidente sem ter comandado nenhuma das esquadras da força – uma pré-condição para se chegar ao topo da carreira.

Garnier também teve a esposa Selma Foligne Crespio de Pinho contratada pelo governo de Jair Bolsonaro na Secretaria-Geral da Presidência poucos meses depois de se aposentar da Marinha, em abril de 2019.

Filho do casal, o advogado Almir Garnier Santos Junior foi contratado pela Engepron em 29 de julho de 2019, no segundo semestre do governo de Jair Bolsonaro, seis meses depois do pai ser alçado ao segundo posto de comando do Ministério da Defesa.

Segundo a reportagem do Valor, um mês após a reunião, um amigo encontrou Garnier numa sala da Marinha “à paisana, com a barba por fazer, indisposto a participar da cerimônia de transmissão do cargo”.

De fato, o então comandante da Aeronáutica foi o único a não passar o bastão para seu sucessor, o almirante Marcos Olsen, no governo Lula.

Caso seja confirmada a delação de Cid, Garnier – que estaria com problemas de saúde – pode responder por ao menos dois crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado.

Na Justiça militar, o almirante pode perder a patente. E mesmo que venha a ser deposto do quadro de oficiais, seu salário será pago na conta da esposa.

Pressão sobre Freire Gomes

Sócio de Eduardo Bolsonaro (PL-SP) na Braz Global Holding, empresa criada em maio do ano passado em Arlington, no Texas, Paulo Generoso antecipou pela rede X (antigo Twitter) o encontro entre Bolsonaro e a cúpula das Forças Armadas, revelado em delação premiada pelo tenente coronel Mauro Cid.

Em sequência de tuites publicado no dia 20 de dezembro de 2022, Generoso confirma que “em reunião esta semana com o alto comando das Forças Armadas, Bolsonaro pediu apoio para barrar o avanço do judiciário sobre os outros poderes e pediu para que a posse de Lula fosse adiada por 6 meses, até que equipe de juristas fizesse uma investigação sobre favorecimento à (SIC) Lula”.

Em seguida, o sócio de Eduardo Bolsonaro faz menção a uma resistência do então comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes, que vinha sendo pressionado pela horda bolsonarista a apoiar a tentativa de golpe.

“Freire Gomes foi contra [o apoio ao golpe de Bolsonaro] e disse que não valia a pena ter 20 anos de problemas por 20 dias de glória e falou que não apoiaria ou atenderia o chamado do presidente para moderar a situação mesmo após Bolsonaro apresentar vários indícios de parcialidade em favor de Lula pelo TSE e STF”, escreveu Generoso.

Exército solta nota sobre “confiança” com dados de pesquisa marotos

Em meio à delação de Mauro Cid, e de uma crise de imagem por causa de sua vocação golpista, o Exército divulgou uma nota sobre a “confiança” dos brasileiros na instituição. A corporação torturou números do Datafolha, de uma semana atrás, e da Quaest, de um mês atras, até eles confessarem.

O Exército é considerado confiável para 34% dos brasileiros, 44% afirmam que os militares são pouco confiáveis, enquanto 21% não confiam; somando-se os consultados que fazem a avaliação negativa, chega-se ao total de 65% de desconfiança, diz o Datafolha.

A confiança nos militares atingiu seu menor patamar na série histórica, iniciada em 2017. Em 2019, 45% dos entrevistados avaliaram os militares como confiáveis.

Na época, 35% avaliaram como pouco confiáveis e 18% como não confiáveis; a imagem vem caindo desde então. Em 2021, 37% dos entrevistados confiavam nos militares, enquanto 39% consideravam os fardados pouco confiáveis e 22% afirmavam não confiar.

No título do comunicado do Exército, é destacado que a nova pesquisa “reafirma” a confiança dos brasileiros nas Forças Armadas, o que não é verdade.

A Força também aponta que o índice de confiança nos militares “vem se sustentando ao longo dos anos, como atestam pesquisas realizadas por diferentes institutos e metodologias”.  É mentira.

“Já a pesquisa da Consultoria e Pesquisa QUAEST apontou que as Forças Armadas continuam ocupando posição de destaque no ranking das instituições com nível de confiança de 74%. O levantamento foi realizado entre 10 e 14 agosto do corrente ano, destinando-se a medir o nível de confiança dos brasileiros nas instituições”, diz a nota do Exército.

No X, antigo Twitter, a foto escolhida para essa patacoada mostra um soldado ao alvorecer, segurando uma arma supermoderna, como se pronto a invadir a Venezuela, quando se sabe que o que essa turma faz é conspirar, mamar nas tetas do Estado e pintar meio-fio.

Na verdade, a pesquisa da Quaest revelou que a confiança nas Forças sofreu uma queda expressiva desde o fim do ano passado. Entre dezembro de 2022 e agosto, o número dos brasileiros que afirmavam “confiar muito” na instituição passou de 44% para 33%. De acordo com o levantamento, a queda de confiança mais significativa se deu entre eleitores de Bolsonaro no segundo turno da eleição.

O levantamento ainda mostra que a porcentagem de quem “confia pouco” nas Forças Armadas registrou um crescimento: foi de 36% em dezembro de 2022 para 41% em agosto. A parte de entrevistados que “não confia” na instituição foi de 18% para 23% no mesmo período de tempo. 2% disseram não souber responder.

Ainda tentando “driblar” os dados dos levantamentos, o Exército destaca no final da nota que “os índices de confiança, que se reforçam a cada ano, assumem valores ainda mais significativos”.

A cara de pau não tem fim. Confira AQUI.

Live de Bolsonaro vira indício em investigação da PF sobre golpe

O delator Mauro Cid contou que Bolsonaro submeteu à cúpula militar do seu governo minuta de decreto golpista prevendo a convocação de novas eleições e a prisão de adversários. Pessoa que acompanha as investigações de perto na Polícia Federal informou que as revelações do ex-ajudante de ordens transformaram em “prova indiciária” uma transmissão ao vivo feita por Bolsonaro em 30 de dezembro do ano passado, antevéspera da posse de Lula. Nessa live, Bolsonaro menciona a posse de Lula, que ocorreria dois dias depois e declara: “Eu busquei dentro das quatro linhas, dentro das leis, saída para isso aí.”

Perguntei ao investigador da PF o que seria uma prova indiciária. Ele recomendou a leitura do artigo 239 do Código de Processo Penal. Anota que “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.” Ou seja: para a PF, a última live de Bolsonaro, exibida horas antes de sua fuga para a Flórida, constitui um indício de que, derrotado por Lula, o capitão conduziu as tratativas golpistas que Mauro Cid diz ter testemunhado.

Duas semanas depois da transmissão ao vivo de Bolsonaro, em 12 de janeiro, a Polícia Federal apreendeu na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres a minuta de decreto presidencial para instaurar Estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral. O objetivo da intervenção seria reverter o resultado da eleição. No celular de Mauro Cid, a PF encontrou minuta de um decreto sobre Estado de Sítio e operação militar de Garantia da Lei e da Ordem. Os investigadores trabalham para ligar os pontos.

É nesse contexto que se insere a live presidencial. Pródigo no hábito de atirar contra o próprio pé, Bolsonaro forneceu o material que atribui veracidade a uma delação que seus advogados tentam desqualificar. Na semana passada, em entrevista a Mônica Bergamo, Bolsonaro se referiu a Cid como “uma pessoa decente”, um “bom caráter”. Disse que sempre o tratou “como um filho”. Revelou a intensão de “dar um abraço nele”. É possível que tenha mudado de ideia.

Operação entrega cabeças para lavar a imagem das Forças Armadas

Acredite quem quiser que os generais, os almirantes e os brigadeiros da época não souberam que Bolsonaro sondou os comandantes das Forças Armadas sobre o golpe que planejava para impedir a posse do presidente eleito Lula da Silva.

O comandante do Exército disse não, o da Aeronáutica também, mas o da Marinha, bolsonarista de quatro costados, disse sim com entusiasmo. É razoável supor que todos consultaram os demais colegas de alta patente e que a notícia tenha circulado em meio à família militar.

Não cabe, portanto, o ar de surpresa com o que contou sobre a tentativa frustrada de golpe o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordem de Bolsonaro. Os altos oficiais das Forças Armadas souberam do que estava em curso e simplesmente se calaram.

Há crime de homicídio e crime de tentativa de homicídio. Está na Constituição: é crime gravíssimo conspirar para derrubar a democracia e pôr em seu lugar uma ditadura. Era o que desejava Bolsonaro, e nunca escondeu. Foi o que ele fez, e os militares guardaram em segredo.

Bolsonaro diz que discutir qualquer assunto, até mesmo um golpe de Estado, não é crime. Seria crime dar o golpe. Só não deu porque faltou apoio. Mas teve essa intenção. Incorreu, portanto, em um crime. Poderia ter sido preso ou denunciado. O silêncio da farda o protegeu.

O silêncio torna a farda cúmplice da tentativa de golpe. Cúmplice de Bolsonaro ela foi antes de ele ser eleito e nos quatro anos de desgoverno. O primeiro ato de cumplicidade foi mensagem postada no Twitter pelo general Villas Boas Correia, que abortou um habeas corpus para Lula.

Vilas Boas, então comandante do Exército, ouviu seus pares e divulgou nota com endereço certo: o Supremo Tribunal Federal. Foi em abril de 2018. Lula havia sido condenado em segunda instância. O habeas corpus o livraria de ser preso.

Por um voto de diferença, o Supremo negou o habeas corpus. Lula foi preso e impedido de disputar a eleição que seria vencida por Bolsonaro. A farda tolerou quatro anos de desmandos do capitão afastado do Exército por conduta antiética.

Tolerou sua pregação para que os brasileiros se armassem “para nunca mais ser escravos de ninguém”. Tolerou um general da ativa como ministro da Saúde; tolerou o desrespeito à regra que proíbe um militar da ativa de participar de atos políticos.

Não foi só Bolsonaro que se associou à Covid-19 para que ela matasse os que tivessem de morrer; a farda também se associou fabricando remédios comprovadamente ineficazes para combater a pandemia. E associou-se mais adiante para desacreditar o processo eleitoral.

Os militares estão empenhados em entregar algumas cabeças, inclusive a de Bolsonaro, para lavar a imagem das Forças Armadas enquanto instituição. Essa é uma tarefa que demandará muito, muito tempo para ser cumprida. Não basta individualizar as culpas. Tem que ajoelhar no milho.

Ou melhor: na brasa.


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