03/05/2024 - Edição 540

Poder

Comitê dos EUA defende até grupo neonazista para atacar Alexandre de Moraes e o Brasil

Comitê de maioria trumpista divulga decisões sigilosas da Justiça do Brasil, manipula informações e defende extremistas de direita

Publicado em 19/04/2024 10:37 - Paulo Motoryn (Intercept_Brasil), Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

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“Os ataques à liberdade de expressão no exterior servem de alerta para a América”. Essa é uma das frases que melhor sintetiza o relatório do Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, que divulgou decisões sigilosas do Supremo Tribunal Federal do Brasil relacionadas ao X, antigo Twitter, e outras redes sociais.

A frase, que está no próprio relatório, é curta, mas resume até onde a extrema direita global pode ir para retomar o poder. A divulgação espetacularizada do material, além de demonstrar desprezo pelo sistema judicial brasileiro, também mostra que vale até mesmo defender grupo neonazista para voltar ao poder. É o caso do Era Fascista, um dos canais no Telegram suspensos pelo ministro Alexandre de Moraes, e que bolsonaristas e deputados norte-americanos estão saindo radicalmente em defesa.

Mas, antes de aprofundar nas críticas a decisões judiciais, é preciso ser claro: o conteúdo do material é um exemplo gritante de manipulação da opinião pública. Publicado por um comitê de maioria republicana, o relatório tem um texto introdutório de oito páginas que são, na prática, um panfleto: pintam um cenário de censura no Brasil para atacar Joe Biden, oponente de Donald Trump nas eleições deste ano.

O título do relatório, fruto da entrega de documentos pela rede social X, de Elon Musk, é sintomático: “O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”. Outro trecho ajuda a explicar os objetivos dos deputados trumpistas: voltar ao poder. “O Congresso deve levar a sério os alertas do Brasil e de outros países que buscam suprimir a liberdade de expressão online. Nunca devemos pensar que isso não pode acontecer aqui”.

O comitê tem como presidente o republicano Jim Jordan, considerado um dos maiores expoentes da extrema direita nos EUA. Em 2022, a CNN revelou que Trump falou ao telefone, diretamente da Casa Branca, com Jordan por 10 minutos na manhã de 6 de janeiro — pouco antes dos ataques ao Capitólio. Naquela tarde, Jordan foi ao plenário da Câmara para se opor à certificação de Biden.

O problema é que o texto de Jordan sobre o Brasil não apenas carece de uma metodologia para embasar as graves conclusões, como distorce os documentos vazados por Elon Musk. Os deputados norte-americanos ignoram as bases legais e constitucionais brasileiras que norteiam as medidas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal, o STF, e pelo Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, para combater a desinformação e proteger a democracia — diante da iminência de um golpe após a eleição de Lula.

A tônica do texto é a generalização simplista de 88 decisões da Justiça brasileira como uma suposta ameaça à liberdade de expressão. O relatório retrata todas essas medidas como se fossem de Alexandre de Moraes e como censura injustificada, sem levar em conta os contextos específicos de cada caso. Muitos deles, envolvendo incitação deliberada a um golpe de estado.

Relatório minimiza tentativa de golpe – ou admite com naturalidade o 8 de Janeiro

Uma das decisões, por exemplo, do influenciador Ed Raposo, é ilustrativa da gravidade das publicações rechaçadas no Brasil. Aqui estão algumas das frases dos tweets que constam no despacho de Moraes que determinou a suspensão de suas contas: “Se o TSE não aceitar, entra em ação o poder moderador”. “Moraes não vai acatar nada, é bom que todo mundo saiba disso. A solução será outra”. “Bolsonaro não teve 51% dos votos, ele teve PELO MENOS 51%”.

O fato é que o material subestima as ameaças à democracia brasileira — o que revela, no melhor dos casos, uma completa desconexão com a realidade política e jurídica do país. No pior, admite com naturalidade o que houve em 8 de Janeiro de 2023 aqui no Brasil.

Dessa forma, o comitê se alinha ao que há de mais radical da extrema direita brasileira. Vale lembrar que um dos mais próximos aliados de Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira, do PP do Piauí, tem uma visão oposta à que defendem os deputados norte-americanos. Em entrevista ao jornal The New York Times publicada em janeiro deste ano, defendeu o maior rigor com que o Brasil tem tratado as ameaças de golpe.

“Os Estados Unidos não viveram uma ditadura, uma época de período autoritário. A gente jamais quer que isso volte ao nosso país”, disse Nogueira. Na mesma reportagem, Steven Levitsky, professor na Universidade de Harvard e autor do livro “Como as Democracias Morrem”, ressaltou que Ciro Nogueira e outros líderes da direita brasileira “aceitaram publicamente os resultados das eleições”, o que seria “muito diferente da resposta dos Republicanos”.

Mas o ataque feito pelo relatório também desconsidera a gravidade de outras questões enfrentadas pelo STF, incluindo neonazismo. Um dos grupos que Moraes determinou o bloqueio, por exemplo, tem o seguinte nome: “Era Fascista”.

Por sinal, a jornalista Letícia Oliveira, que monitora grupos extremistas, publicou prints em que o administrador de outro grupo supostamente neonazista, que reunia mais de 900 pessoas, pedia aos membros para mandarem mensagem e ligar para o número de Alexandre de Moraes – prática conhecida como doxxing, ou assédio online, o que é crime.

Bolsonaristas esperneiam, mas manter ordens sob sigilo é cotidiano na justiça criminal

Por aqui, um dos pontos do relatório que tem causado revolta nos bolsonaristas é uma suposta ordem de Moraes para que as empresas escondam as decisões da justiça ao removerem os perfis. Em poucos minutos, o argumento foi refutado.

“Mandar uma empresa cumprir uma ordem, e manter essa ordem sob sigilo, é cotidiano na justiça criminal. Todos os dias centenas de juízes decidem igual. Querer transformar isso em fato relevante é ou má-fé ou ignorância. Não tem terceira via”, escreveu o advogado Marcelo Feller, ainda na noite de ontem, no próprio X.

Em resposta a um seguidor, teve que explicar algo que deveria ser óbvio: as decisões de Moraes são passíveis de críticas, mas elas devem ser consistentes. “Dá pra criticar o min. Alexandre por variados enfoques. Antes de o fazer, sugiro estudo. Para a crítica ser embasada. E há embasamento possível”, respondeu Feller.

A advogada Estela Aranha, ex-secretária de Direitos Digitais do governo Lula, foi na mesma linha. Ela argumentou que empresas dos EUA também admitem que a decisão não seja informada ao usuário que é alvo da justiça: “Os formulários de atendimento ao “law enforcement” de todas as redes sociais preveem um campo que a autoridade que está pedindo dados ou a exclusão de um conteúdo deve indicar se deve ser sigiloso ou não para o usuário”.

“Todos os dias, há solicitação de exclusão de material ou de informação de dados, por exemplo de conteúdo de abuso sexual infantil (conhecido como pedofilia). Não existe você informar o titular da conta que tal órgão está investigando porque ele apagaria todas as provas”, escreveu.

A lucidez de Aranha e Feller nos faz lembrar o quanto é grotesca a falta de consulta a especialistas brasileiros na elaboração do relatório. A ausência de vozes locais familiarizadas com o contexto jurídico e político do Brasil compromete qualquer possível intenção positiva que poderia ser interpretada.

O relatório, contrariando o preceito básico da honestidade com a informação, também peca ao privilegiar fontes e evidências que corroboram suas teses preconcebidas, ignorando aquelas que poderiam contradizê-las e comprometendo assim sua objetividade e imparcialidade. A fonte mais citada nas referências bibliográficas, por exemplo, são links do perfil no twitter de Jordan, chefe do comitê, referenciados em sete ocasiões.

Diante disso, há uma constatação e um alerta a serem feitos. A constatação: o documento do Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos não passa de uma tentativa descarada de manipulação política. O alerta: há uma estratégia internacional em curso para levar a extrema direita de volta ao poder.

Decisões de Moraes sobre redes sociais necessitam da luz do sol

Em reação ao escoamento de despachos sigilosos de Alexandre de Moraes em relatório levado à vitrine por uma comissão do Congresso dos Estados Unidos, o Supremo Tribunal Federal emitiu uma nota que oscila entre a inutilidade e a insignificância. O texto rebate as insinuações de que Moraes flerta com a censura ao excluir postagens e suspender perfis nas redes sociais com dois argumentos.

Num trecho, a nota da Suprema Corte sustenta que não há no material divulgado “decisões fundamentadas que determinaram a retirada de conteúdos ou perfis, mas sim dos ofícios enviados às plataformas para cumprimento da decisão”. Noutro, anota que “todas as decisões tomadas pelo STF são fundamentadas, como prevê a Constituição, e as partes, as pessoas afetadas, têm acesso à fundamentação”.

A manifestação é inútil porque não extingue a maledicência. É insignificante porque esquiva-se de abordar o essencial. Confrontada com os propósitos eleitorais do deputado Jim Jordan, o aliado de Donald Trump que preside o comitê do Congresso que promoveu o vazamento, com o oportunismo de Elon Musk, o bilionário da plataforma X que forneceu o material, a nota do Supremo não chega a lugar nenhum.

O propósito do relatório norte-americano vem denunciado no título do cartapácio de 541 páginas: “O ataque contra liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”. O objetivo é desgastar Joe Biden na disputa com Donald Trump pelo trono da Casa Branca. Lá, como cá, a mentira e a desinformação intoxicam a política.

A intenção de Elon Musk foi explicitada desde o dia em que defendeu o impeachment de Moraes e prometeu que publicaria em breve as ordens do magistrado que “violam as leis brasileiras” e atentam contra a “liberdade de expressão. Além de movimentar a sua rede, em declínio, Musk fornece munição para que Bolsonaro desfile pela conjuntura a sua pose de vítima. Algo que voltará a fazer em ato marcado para domingo, no Rio de Janeiro.

A melhor vacina à disposição do Supremo para se imunizar contra a politicagem e a mentira é a transparência. As decisões de Moraes necessitam da luz do sol. E a maior caridade que o Supremo poderia fazer a si mesmo e ao seu ministro é promoção de uma exibição ampla e irrestrita.

Questionado sobre o vazamento promovido pela parceria de Musk com os aliados de Trump, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso foi sintético. “É um problema de política interna dos Estados Unidos”, disse. Engano.

Louis Brandeis, um magistrado progressista que abrilhantou a Suprema Corte dos EUA entre 1916 e 1939, deixou como legado uma frase que ilustra magnificamente a serventia da transparência para o Poder Judiciário: “A luz do Sol é o melhor detergente”. O comentário se ajusta com hedionda perfeição à conjuntura atual.


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