03/05/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro e Malafaia: um teatro aberto de fundamentalismo religioso e extremismo de direita

Sim, eles estão comprometidos em acreditar nas próprias mentiras e jogar para os defensores da democracia o peso de provar a verdade

Publicado em 22/04/2024 10:18 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) - Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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Se em São Paulo, em fevereiro, Bolsonaro focou em discurso que girava basicamente em torno de construir uma narrativa sobre a minuta do golpe, ontem (21), no ato em Copacabana, novamente organizado pelo pastor Silas Malafaia, ele assumiu a estratégia direta de uma defesa inegociável da democracia e da liberdade de expressão.

É irrelevante a esquerda e a mídia mainstream diminuírem a relevância do ato ou focarem única e exclusivamente na quantidade de pessoas (menos de 34 mil pessoas). Já passou da hora de a ideia de uma adesão e uma fratura na democracia ser medida pela quantidade de quadras ocupadas por um ato. Há muito mais a se considerar.

A extrema direita não aprendeu a se organizar. Ela sempre foi organizada e estratégica. Mas a extrema direita brasileira aprendeu muito com sua interação transnacional. Aprendeu muito e ganhou muito. E uma coisa que ela aprendeu foi normalizar os processos de ruptura democrática e disputar o próprio sentido de democracia

Olhem bem para o discurso de Bolsonaro. Olhem bem para toda a proposta de organização e convocação do próprio ato. Estão cada vez mais seguros da narrativa de que estão em uma luta pela liberdade e a defesa da democracia no país. A “rede de solidariedade” da extrema direita global está incumbida de projetar ao mundo um roteiro de perseguição e silenciamento.

Sim, eles estão comprometidos em acreditar nas próprias mentiras e jogar para os defensores da democracia o peso de provar a verdade. Não é mais apenas sobre “como as democracias morrem”. Isso é sobre como a democracia deixa de ser o que é.

De repente, um ato, que é nitidamente para fortalecer Bolsonaro e postergar sua prisão, tornou-se um ato em “defesa da democracia e da liberdade de expressão”.

O nacionalismo cristão segue sendo a narrativa capaz de agregar e comunicar com multidões.

Enquanto qualquer ato ou discurso situado no campo progressista procura, minimamente, destacar ou considerar a diversidade do país, incluindo sua diversidade religiosa e de gênero. A extrema direita joga isso para o espaço.

É nacionalismo cristão héteromachista puro e simples. Não tem a ver com o universo evangélico, não tem Bíblia, não importa o que os Evangelhos possam dizer. É supremacia e força, a religião como política.

Não importa o quão diverso pode ser o número de apoiadores de Bolsonaro. O regime é heteronormativo, moralista, cristão e masculino. É a razão pela qual Nikolas Ferreira se sente confortável em dizer que o país precisa é de “homens com testosterona”.

Não importa o quão diverso o público seja. O regime é cristão e fundamentalista. É a razão pela qual Michelle se sente confortável em dizer que “o Brasil é do Senhor Jesus”.

O nacionalismo cristão há de ser a desgraça da democracia brasileira em pouquíssimo tempo, a exemplo dos Estados Unidos. Uma ideologia extremista que vai alcançando níveis de fascismo diante dos nossos olhos.

Indefeso, Bolsonaro prioriza a demonização do algoz Moraes

Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, o capitão recorre à empulhação de atos como o deste domingo, em Copacabana.

Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias que Bolsonaro adota: a declarada e a real. A concentração de poderes nas mãos de Alexandre de Moraes fornece material para a confusão.

No gogó, Bolsonaro mantém Moraes na alça de mira porque o Brasil está “perto de uma ditadura” e “o mundo toma conhecimento do quanto está ameaçada a nossa liberdade de expressão”. No mundo real, o personagem assemelha-se a um náufrago criminal que agarra o jacaré imaginando que é um tronco.

Tridente e chifres

Na composição da fábula do afogado, Bolsonaro e seus operadores escoram-se numa regra importada da propaganda. Baseia-se na personalização. Com um rótulo bem definido, qualquer coisa pode ser vendida.

Mestre da maledicência, Bolsonaro aprendeu em três décadas de vivência política que o mal, como abstração, é difícil de ser enxergado. Mas basta dar ao mal um tridente e um par de chifres e o sujeito passa a ter um inimigo para o qual transferir suas culpas. O demônio do bolsonarismo é Moraes.

A estratégia de Bolsonaro está crivada de ironia. Em 2018, conquistou o Planalto surfando a Lava Jato. Ao acomodar Sergio Moro na sua equipe ministerial, ajudou a arruinar a operação, pavimentando a trilha de suspeição que levaria à anulação das sentenças e à ressurreição de Lula. Agora, tenta grudar em Moraes a logomarca do lavajatismo.

Xerife-Geral da República

O bolsonarismo se esfalfa para colar em Moraes rótulos que o Supremo atribuiu a Moro: um juiz superpoderoso, autoconvertido em Xerife-Geral da República, que concentra em seu gabinete processos de grande repercussão e instrumentaliza o Direito em busca de resultados.

Nessa versão, Moraes mimetizaria os métodos de Moro. Obteve a delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid após mantê-lo preso por quatro meses. Como se desejasse produzir um novo delator, conserva atrás das grades desde agosto do ano passado, sem condenação, o ex-diretor bolsonarista da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques.

Na gênese da concentração de poderes nas mãos de Moraes está o inquérito sobre fake news. Foi aberto em 2019 pelo então presidente do Supremo, Dias Toffoli, à revelia da Procuradoria-Geral da República. Moraes foi escolhido relator sem sorteio.

Princípio do juiz natural

Sobrevieram outros inquéritos, como o que investiga os atos antidemocráticos e o que apura as perversões das milícias digitais. Em condições normais, seriam sorteados novos relatores. Mas considerou-se que os crimes sob apuração tinham conexão com o inquérito inaugural.

Desse modo, abriu-se uma brecha para que a defesa de Bolsonaro sustente a tese segundo a qual o Supremo subverte duplamente o princípio do juiz natural. Primeiro porque indeferiu recurso para que Bolsonaro, um ex-presidente sem foro privilegiado, fosse enviado à primeira instância.

Segundo porque o Supremo teria torturado suas próprias regras para manter nas mãos de Moraes todos os inquéritos que aproximam Bolsonaro da cadeia —da falsificação dos cartões de vacina à comercialização de joias da União, passando pelo mais grave: a tentativa de golpe que desaguou no 8 de janeiro.

Mistificação messiânica

Do ponto de vista jurídico, a tática do bolsonarismo é de uma ineficácia hedionda. Não há falatório capaz de eliminar as culpas do investigado. Afora a delação de Mauro Cid, a responsabilidade criminal de Bolsonaro está escorada em sólidas provas materiais e testemunhais.

Sob o prisma político, eventos como o da Avenida Paulista, em fevereiro, e o de Copacabana, neste domingo, fornecem a um investigado metaforicamente jurado de morte a possibilidade de se comportar como se estivesse cheio de vida. Faltando-lhe uma defesa crível, Bolsonaro apela à mistificação messiânica que hipnotiza os seus devotos.

A presença da evangélica Michelle Bolsonaro e do pastor Silas Malafaia nos palanques não é casual. Servindo-se da oratória da dupla, o capitão como que transforma as suas ovelhas em adeptas de uma religião.

Devoção renitente

Potencializa-se uma devoção dogmática que estimula os fiéis do mito a aceitar todas as presunções da divindade presumida a seu próprio respeito. Em matéria criminal, isso inclui concordar com o dogma segundo o qual Bolsonaro tem uma missão na Terra de inspiração divina e, portanto, indiscutível.

Um pedaço do bolsonarismo percebeu em 2022 que era possível fazer quase tudo por Jair Messias, exceto papel de bobo. Desvinculando-se da seita, esse naco do eleitorado preferiu preservar a democracia.

Os devotos renitentes são mais assustadores, porque não estão sendo cínicos. Eles acreditam mesmo que a autocanonização de Bolsonaro dá a ele o direito de desafiar não só a Justiça, mas o próprio bom senso.

Brincando de corda

Escorado na credulidade alheia, Bolsonaro joga com o tempo. Aposta que a evolução do calendário converterá a proteção da democracia, que dá à toga de Alexandre Moraes uma aparência de capa do super-homem, num assunto tão secundário quanto o combate à corrupção, que fez a fama pretérita de Sergio Moro.

Questionando a legitimidade de Moraes, Bolsonaro imagina que poderá livrar-se da inelegibilidade e da cadeia para a qual as provas o empurram esgrimindo questões processuais. Brinca de corda, esticando-a, sem se dar conta da natureza do nó que lhe roça o pescoço.

Proferidas na primeira instância, as sentenças de Moro foram tisnadas pela Vaza Jato e anuladas pela mesma Suprema Corte que julgará as ações penais que o procurador-geral Paulo Gonet se equipa para formular. Para salvar Bolsonaro, o Supremo precisaria anular a si mesmo.

Malafaia diz por Bolsonaro o que Bolsonaro não tem coragem de dizer

Era para ter sido assim: Bolsonaro no papel principal de mais da encenada pela Companhia Nacional da Mentira, cuja turnê pelo país teve início da Avenida Paulista, no final de fevereiro; o pastor Silas Malafaia como coadjuvante; e os bolsonaristas de Copacabana na condição de barulhentos figurantes do espetáculo.

Mas não foi. Bolsonaro delegou a Malafaia, sua boca de aluguel, o que não teve coragem de dizer sobre o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e os militares. Louco para ser preso temporariamente, Malafaia disse. E apenas uma fatia minúscula de bolsonaristas apareceu para ouvi-los.

Segundo pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo, o ato convocado por Bolsonaro, sob o pretexto de que o Brasil está à beira de uma ditadura, reuniu cerca de 32.750 pessoas. O número foi levantado a partir de imagens áreas analisadas por programas de computador.

A estreia da farsa na Avenida Paulista reuniu 185 mil. Em Copacabana, moram 146 mil pessoas, em boa parte aposentadas. Três delas foram vistas fantasiadas de foguete em homenagem a Elon Musk, o segundo homem mais rico do mundo, dono do X, ex-Twitter, e de uma fábrica de foguetes espaciais.

O comício foi coreografado nos mínimos detalhes. Uma cubana, ex-comentarista da rádio Jovem Pan, perguntou se a plateia lembrava a primeira vez que usou papel higiênico. Ninguém respondeu. Então, ela disse que sua primeira vez foi aos 12 anos, quando chegou ao Brasil depois de fugir da ditadura em Cuba. Sim, e daí?

Gustavo Gayer, deputado federal (PL-GO), discursou chamando Bolsonaro de “guerreiro da liberdade mundial”; ora vejam só, logo Bolsonaro que sempre defendeu a ditadura de 64. E em inglês, mandou um recado para Musk: “Olhe para o que está acontecendo no Brasil. Pedimos socorro em nome de nossa liberdade”. (Patético!)

O pastor e deputado Marco Feliciano, ex-PSC, ex-PSD, ex-PSC novamente, ex-PODE, ex-Republicanos, e hoje PL, apressou-se em pregar que os bolsonaristas são maioria no Brasil. Julgou dispensável explicar porque, sendo maioria, eles não reelegeram seu guia. Feliciano comparou Bolsonaro a Moisés, o profeta que libertou os hebreus.

Aí entrou Malafaia em cena e a multidão delirou. Sobre o golpe bolsonarista fracassado, ele disse com o maior cinismo: “Bolsonaro apresentou um documento sugestivo aos militares, isso não é minuta de golpe. É a maior fake news da história política do Brasil inventada pela Globo. Bolsonaro não propôs golpe de estado. Lula não foi impedido de governar, os ministros também não. O que eles chamam de golpe foi meia dúzia de baderneiros, não teve canhão, tiro. Isso é uma armação para atingir Bolsonaro”.

Minuta é o esboço de um documento. Foram encontradas três: uma com o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante-de-ordem de Bolsonaro; outra com Anderson Torres, ministro da Justiça de Bolsonaro; e a terceira no gabinete de Bolsonaro, na sede do PL, em Brasília. Para Malafaia, o golpe foi apenas uma sugestão. Taokey?

Coube a Malafaia atacar Alexandre de Moraes sem dó nem piedade. Ele citou o nome do ministro mais de dez vezes. Uma delas: “Alexandre de Moraes, quem te colocou como censor da democracia? Quem é você para dizer o que um brasileiro pode ou não falar? Todo ditador tem um modus operandi. Prende alguns para colocar medo nos outros. Alexandre de Moraes é uma ameaça à democracia.”

Malafaia provocou os militares que recusaram a sugestão de Bolsonaro de dar um golpe, e criticou Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado: “Se esses comandantes militares honram a farda que vestem, renunciem dos seus cargos e que nenhum outro comandante assuma até que haja uma investigação do Senado. E o senhor presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, frouxo, covarde e omisso, vai ser acusado de prevaricação”.

Antes no fundo do palanque, Bolsonaro aproximou-se de Malafaia no momento em que o pastor mirou nos comandantes militares e em Pacheco, pondo a mão direita no seu ombro em sinal de concordância. Abraçou-o longamente ao final da fala de Malafaia, e começou seu discurso disparando em Lula: “Eles [referindo-se ao STF] fizeram voltar à cena do crime o maior ladrão da história do Brasil. Um apoiador de ditaduras. O que eles querem é a ditadura com o controle social da mídia. Acusam agora o homem mais rico do mundo, que é dono de uma plataforma cujo objetivo é fazer com que o mundo todo seja livre.”

Bolsonaro vitimou-se, como de hábito: “O que o sistema quer não é só me jogar numa cadeia qualquer, quer terminar o que aconteceu em Juiz de Fora [a facada]. Somos a maioria da Nação, mas isso só será possível com liberdade de expressão”.

“Eu poderia ficar nos Estados Unidos, e estaria muito bem. Mas não poderia abandonar o meu Brasil que amo”.

(Não poderia ficar. Ninguém fica nos Estados Unidos o tempo que quiser, menos ainda com certificado falso de vacina contra a Covid.)

Por fim, e também como de costume, baixou a bola: “Não vamos falar de fraude, vamos considerar 2022 coisa passada”.

Bolsonaro falou de fraude durante quatro anos, empenhado em desacreditar o sistema eleitoral. Derrotado, insistiu com a fraude para convencer seus ministros e os comandantes militares a apoiar um golpe. Agora, nega o que vimos. É um mentiroso nato, que não se arrepende do que fez e deve ser condenado.


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