Judiciário
STF analisa constitucionalidade da criação do juiz de garantias, um magistrado que se envolve apenas na fase de investigação e que garante que direitos dos investigados não sejam feridos
Publicado em 24/08/2023 10:20 - Bruno Lupion e Alexandre Schossler – DW
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O Supremo Tribunal Federal (STF) deve definir nesta semana se a criação do juiz de garantias é constitucional e, se for, definir um prazo para a implementação da medida pelo Judiciário de todo o país.
A criação do juiz de garantias estava prevista para entrar em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, conforme o chamado pacote anticrime aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado em dezembro de 2019 pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro.
No entanto, a medida foi suspensa por uma liminar do ministro do STF Luiz Fux já em janeiro do ano seguinte. Agora, o Supremo julga o caso definitivamente. Após nove sessões, a Corte formou placar de 6 votos a 1 a favor da criação. A retomada do julgamento foi programada para esta quarta-feira (23/08).
Ainda não foi formado consenso sobre o prazo para implementação. Os ministros avaliam determinar um prazo entre dois e três anos.
O que é um juiz de garantias?
A lei brasileira determina que um juiz deve se declarar suspeito se tiver aconselhado qualquer das partes ou se for amigo ou inimigo de qualquer delas. Se não o fizer, o processo é nulo. O objetivo é garantir que o juiz que analisará as provas e argumentos da acusação e da defesa seja imparcial na hora de decidir.
Mas, segundo professores de direito ouvidos pela DW Brasil, o sistema processual penal brasileiro tem uma falha estrutural que afeta a imparcialidade de um juiz por aproximá-lo da acusação: o magistrado que atua na fase de investigação, analisando pedidos de produção de provas como interceptação telefônica, busca e apreensão e prisão preventiva, é o mesmo que, na fase de julgamento, decidirá se o réu é culpado ou inocente.
Em países europeus, a regra nos casos criminais é ter dois juízes diferentes, um para cada momento do processo, para evitar que o magistrado que se envolveu na fase de investigação tome decisão enviesada na etapa de julgamento.
O juiz da primeira fase é conhecido como juiz de garantias, pois coloca limites aos pedidos do Ministério Público para obter provas, com o objetivo de não ferir direitos dos investigados. O outro é o juiz da instrução e julgamento.
OAB é a favor
O juiz de garantias é defendido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelas defensorias públicas. Para essas entidades, o juiz de garantias contribui para a imparcialidade nos vereditos.
O professor de direito penal da Universidade de São Paulo (USP) Alamiro Velludo Neto afirma que o atual modelo brasileiro favorece a parcialidade do magistrado na hora do julgamento.
“Investigar é criar hipóteses, possibilidades. O próprio juiz vai se comprometendo na investigação, formando uma versão, às vezes de modo inconsciente, de tal modo que depois não dá para voltar atrás, seria contraintuitivo”, diz.
Para ele, esse comportamento é natural no ser humano. “Se o juiz toma medidas drásticas na investigação, como a condução coercitiva do réu, e depois julga de forma contrária, pela sua absolvição, ele estaria admitindo um grau de erro”, considera.
Custos e falta de magistrados
Quem é contra o juiz de garantias argumenta sobretudo com os custos da criação, com a carência de magistrados no país e com as diferenças de necessidades entre as comarcas.
A discussão chegou ao STF por meio de quatro ações de inconstitucionalidade (ADI) protocoladas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Membros do Ministério Público (Conamp) e os partidos Podemos e União Brasil.
O relator das ADIs, ministro Luiz Fux, entende que a medida deveria ser de implementação opcional pelos tribunais. Ele argumentou que a existência de estudos científicos comprovando que seres humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios “não autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à acusação”.
Fux, ao suspender a criação do juiz de garantias, argumentou que “a norma geraria verdadeiro caos nas unidades judiciárias de todo o país, pois exigiria a interrupção automática de todas as ações penais em andamento, obrigando as localidades a providenciarem a substituição dos juízes nos processos de natureza criminal”.
Para ele, é inconstitucional obrigar os estados e o Distrito Federal a instalarem varas judiciais onde atuará o juiz de garantias porque a União – no caso, o Congresso – não pode definir normas de funcionamento da Justiça criminal dos estados, que devem decidir eles mesmos como são a estrutura e o funcionamento do Judiciário local.
De acordo com Fux, a obrigatoriedade da existência de duas varas criminais em cada comarca elimina a possibilidade de que cada estado distribua juízes e varas de acordo com as reais necessidades locais.
Fux ainda argumentou que uma alteração dessa magnitude somente poderia ser proposta pelo próprio Judiciário.
O ministro salientou ainda que a lei foi aprovada sem estudos do seu impacto financeiro. Segundo ele, tribunais estaduais e federais sustentam que a implementação do juiz de garantias elevará custos em R$ 12 milhões por ano.
Essas cortes acrescentaram que as novas regras violam o princípio da razoável duração do processo e da reserva do possível, aumentando o tempo de tramitação e gerando prescrição.
Debate posterior à Constituição de 1988
O Código de Processo Penal brasileiro é de 1941, quando o país estava no regime autoritário do Estado Novo, com Getúlio Vargas na Presidência da República. Segundo o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Davi Tangerino, nessa época não havia, nem no Brasil nem no contexto internacional, preocupação em montar um sistema de dois juízes para garantir direitos do réu e fortalecer a imparcialidade do julgamento.
“No Brasil, o debate sobre um juiz só para controlar a fase de investigação é posterior à Constituição de 1988”, diz Tangerino.
Ao longo do século 20, países europeus reformaram seus sistemas processuais penais. Na Alemanha, o modelo de dois magistrados vigora desde 1974. Na América Latina, Chile e México têm sistemas semelhantes.
“Qualquer ser humano que se envolva no processo de investigação vai se aproximando mentalmente da hipótese acusatória. Por isso, é necessário que outro juiz, sem contato íntimo com a acusação, julgue o caso”, diz Tangerino.
Propostas para adotar o modelo de dois juízes no Brasil não foram para frente. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) lançou uma campanha em 2017 com 16 propostas para reformar o sistema penal brasileiro, e uma delas é a criação do juiz de garantias.
No Congresso, uma proposta de reforma do Código de Processo Penal que implanta o sistema foi aprovada pelo Senado em 2010, mas parou na Câmara. À época, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) foi contra a adoção do juiz de garantias, sob o argumento de que a Justiça não teria estrutura para isso.
Vaza Jato
Foi o escândalo conhecido como Vaza Jato – a revelação dos diálogos do ex-juiz da Operação Lava Jato Sergio Moro com o então coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol – que reacendeu o debate sobre a necessidade de um juiz de garantias.
“Os criminalistas reclamam disso há décadas, mas, no caso da Lava Jato, o problema ficou mais nítido. Se já tivéssemos o juiz de garantias, haveria um procedimento que funciona como obstáculo à parcialidade do juiz que se envolveu na investigação na fase do julgamento”, afirma Velludo Neto.
Segundo o especialista, professores de países europeus costumam reagir com espanto ao ouvirem dele que, no Brasil, o mesmo juiz que autoriza interceptações telefônicas é o que julga o processo.
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