18/05/2024 - Edição 540

Especial

Um país desigual

Publicado em 07/01/2022 12:00 -

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Com um ano eleitoral pela frente, os mais graves problemas brasileiros precisam ser colocados em debate. Especialistas apontaram a histórica desigualdade social, a volta ao mapa da fome e a educação precária como pilares fundamentais que precisam ser atacados com políticas públicas e propostas sérias.

"O maior problema do Brasil hoje é o aumento exponencial de pessoas passando fome e de pessoas em situação de insegurança alimentar", afirma a cientista política Camila Rocha, autora do livro Menos Marx, Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 55% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar.

"Isso ocorreu por uma combinação da retração econômica, permeada pelo aumento dos preços de alimentos básicos e gás de cozinha, com a inabilidade de combater a pandemia entre pessoas em situação de vulnerabilidade social", diz Rocha.

Ela defende que as soluções possíveis são a ampliação de programas de transferência de renda e aumento de benefícios. "Porém, isso necessariamente precisa ser acompanhado de uma retomada do crescimento econômico", enfatiza. "Do contrário, tais medidas podem ficar comprometidas a médio prazo.”

historiador Marco Antonio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de Um País Chamado Brasil, concorda com o ponto de que a fome "voltou a ser um gravíssimo problema nacional". "Milhões estão literalmente passando fome", diz.

"Sucintamente, é a péssima distribuição de renda que aprofunda a desigualdade social", contextualiza ele, que entende como "tarefa primeira, para ontem" a necessidade de que o próximo governante eleito "coloque o dedo na péssima distribuição de renda que gera essa terrível desigualdade social e, por consequência, a fome".

"Este foi o Natal da fome, tristemente. Parece a comemoração, entre aspas, dos três anos do governo [do presidente Jair] Bolsonaro", comenta Villa.

"Desigualdade imoral"

Para o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão, a desigualdade social brasileira sempre foi imoral "e se tornou mais imoral ainda em um ambiente de pandemia sob um governo de extrema direita". "[O problema] é a base de outras questões", explica.

"A pobreza é um componente de qualquer país capitalista. A questão são os níveis de pobreza minimamente aceitáveis", argumenta. "De que maneira governos que se sucedem assumem ou não compromissos mínimos no combate a essa desigualdade?"

Galves afirma que tal esforço depende de "políticas públicas permanentes" e estas foram "brutalmente interrompidas" pela atual gestão. Como a fome não espera, ele cobra uma "retomada imediata e a ampliação dessas políticas públicas de redistribuição de renda". "Sem malabarismos financeiros para turbinar orçamento em ano eleitoral. Precisamos de política social séria e permanente", enfatiza.

O jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), vê a "questão social de pobreza e crescimento da fome" dentro de um contexto de de "crise política e descrença nas instituições".

"Isso dá margem a uma série de violências e também a discursos populistas", comenta. "E 2022 vai ser decisivo porque veremos como vamos lidar com isso. A população vai votar com todos esses riscos institucionais que Bolsonaro representa. Vamos ver se a escolha será pela civilidade ou pela barbárie."

O sociólogo e cientista político Rodrigo Prando, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie contextualiza as mazelas brasileiras a partir da própria formação histórica do país. "Economicamente, [o país foi construído por] essa estrutura social de grandes propriedades de terra, escravidão e monocultura voltada para a exportação", enumera. "Em termos econômicos, isso fez com que o Brasil se tornasse um país pobre, extremamente desigual."

Além disso, por conta do passado colonial e pré-republicano, o país teve um capitalismo tardio, industrializando-se no século 20. "Assim, a sociedade brasileira se desenvolveu ao longo do século 20. E não houve distribuição de renda: a concentração continuou nas mão de uma elite", pontua.

"Resultado: o Brasil ainda apresenta extrema pobreza em algumas regiões e uma desigualdade enorme. Em uma pista de corrida, a esfera econômica avançou, mas a cultura e a educação não se desenvolveram na mesma velocidade", diz ele.

"Educação precária sustenta círculo vicioso"

Nesse sentido, a educação precária perpetua um sistema deficitário. "A pandemia não mostrou nada de novo, apenas agudizou a situação, os problemas que temos ao longo do tempo", comenta Prando. "As crianças pobres das escolas públicas foram mais prejudicadas do que as crianças ricas das particulares, as regiões Norte e Nordeste tiveram crescimento menor do que o Sudeste, os negros foram mais atingidos pela covid e morreram mais. Isso explicitou uma estrutura social bastante desigual."

Para o pesquisador David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e autor do livro Tecnologia do Oprimido: Desigualdade e o Mundano Digital nas Favelas do Brasil, os problemas do Brasil atual têm como base o acesso à educação.

"Infelizmente, temos uma educação, a pública e até mesmo a particular, muito precarizada", diz ele. "E hoje as soluções apresentadas pelo governo para resolver esse problema são péssimas. O governo [federal] pensa em militarizar a educação, o que é inconcebível. Outra agenda que os bolsonaristas e parte do Congresso tentam o tempo todo passar é a do homeschooling [ensino domiciliar]."

Nemer avalia que isso é uma maneira "de o governo retirar verba das escolas públicas", delegando às famílias a responsabilidade financeira do ensino. "E isso é obrigação do Estado, não adianta", acrescenta.

Um terceiro movimento que ele vê é o da "evangelização da educação" — nesse sentido, vale ressaltar que o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. "A educação tem de ser para pensamento livre, crítico o tempo todo, não imposto", defende Nemer. "Mas são essas as soluções que este governo pensa", diz o pesquisador.

E ao trazer a educação para o centro do debate, ele frisa que o acesso ao ensino é a ponta de um iceberg. "A maioria que estuda em escola pública não tem segurança alimentar, não tem segurança física, vive em área de risco e o Estado o tempo todo negligencia essas pessoas", afirma. "A educação precária sustenta o círculo vicioso da desigualdade social."

Corrupção sistêmica

O filósofo Luiz Felipe Pondé, diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor da Fundação Armando Álvares Penteado, prefere escolher a própria "política brasileira" como o maior problema do país — citando "as duas mais prováveis opções que teremos para 2022".

"Uma é Bolsonaro, que se revelou uma catástrofe. Outra é o retorno do PT [Partido dos Trabalhadores, do ex-presidente Lula da Silva], que é muito responsável pelo buraco em que a gente está, uma verdadeira gangue que provavelmente vai voltar ao poder porque a outra opção se revelou pior do que ela."

Pondé classifica essa situação como "um problema agudo” e diz que a corrupção "é sistêmica e envolve todos os Poderes". "Solução para isso? Talvez daqui a mil anos", afirma.

Salário mínimo de 2022 poderá comprar menos de duas cestas básicas

O valor de R$ 1.212 não chegará a ser suficiente para comprar duas cestas básicas por mês na cidade de São Paulo em janeiro, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). A projeção é que a cesta básica custará em torno de R$ 700 na capital paulista em janeiro.

A cesta básica – composta por 13 itens – tem valores que variam entre as regiões do país e, por isso, representa uma parcela diferente do salário mínimo em cada uma delas. Na maioria das 17 capitais pesquisadas, no entanto, o preço da cesta representa mais da metade do salário mínimo.

O preço mais baixo, de R$ 473,26 (46,5% do salário mínimo), foi encontrado em Aracaju. O mais alto, de R$ 710,53 (aproximadamente 70% do salário mínimo), foi registrado em Florianópolis. Os dados são referentes a novembro de 2021, com cálculo baseado no salário mínimo vigente no momento.

Uma família, é claro, não tem só a conta do mercado para pagar. Para o Dieese, o valor do salário mínimo deveria estar em quase R$ 6 mil, considerando o nível de preços no país (também em relação a novembro de 2021). Isso é quase cinco vezes o valor estabelecido para o ano novo.

Gasolina e dólar

A título de referência, o novo salário mínimo também pode ser comparado a outros itens cuja alta chamou atenção em 2021.

Um salário mínimo inteiro equivale a encher três vezes um tanque de carro de 60 litros, considerando o preço médio da gasolina comum (R$ 6,684) em dezembro de 2021.

Se for comparado à cotação do dólar no último dia de 2021, o novo salário mínimo corresponde a US$ 217.

Sem aumento real

O valor do salário mínimo de 2022, de R$ 1.212, está valendo desde o último dia 1º.

O aumento de R$ 112 em relação ao valor que vigorou durante o ano de 2021 (R$ 1.100) não representa aumento real, mas apenas a recomposição de perdas inflacionárias.

Para esse cálculo, é usada a taxa de inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) – que abrange as famílias com rendimentos de 1 a 5 salários mínimos e tem por objetivo a correção do poder de compra dos salários.

O Ministério da Economia diz que o cálculo do novo salário mínimo considerou uma alta de 10,02% como INPC previsto para todo o ano de 2021. "Neste percentual, foram considerados os valores realizados do INPC para os meses de janeiro a novembro e as projeções do governo para o mês de dezembro", diz a nota.

Além disso, o governo diz que o valor considera o chamado resíduo: a diferença entre a variação do INPC ocorrida em dezembro de 2020 e a estimativa dessa variação considerada quando foi feita a fixação do salário mínimo (de 2021) no fim de 2020.

A pasta diz que o novo valor atende ao estabelecido na Constituição Federal, que determina a preservação do poder aquisitivo do salário mínimo.

O governo estima que, para cada aumento de R$ 1 no salário mínimo, as despesas com benefícios da Previdência, abono e seguro desemprego, além de Benefícios de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social e da Renda Mensal Vitalícia, sobem aproximadamente R$ 364,8 milhões no ano de 2022.

O Dieese defende que deveria haver não apenas uma recomposição do salário mínimo, mas um aumento real, ao afirmar que os aumentos de preços – principalmente em alimentação e bebidas, transportes e habitação – afetou principalmente os trabalhadores com renda muito próxima ao salário mínimo.

"Aqueles trabalhadores com renda muito próxima ao salário mínimo foram os mais afetados com o rebaixamento drástico do poder de compra", diz a entidade.

Mais 56 milhões de pessoas têm rendimento referenciado no salário mínimo, entre beneficiários do INSS e trabalhadores privados e públicos, segundo o Dieese.

Sem Auxílio e Bolsa Família, crianças precisam de doações para comer no interior da Bahia

Era a última vez naquele dia que Marcos dos Anjos, de 26 anos, descia o barranco de terra com os blocos de sua futura casa nos ombros. Se já era difícil chegar lá embaixo escolhendo os passos lentamente, imagina com aquele peso nas costas. Mas ele e os tijolos chegaram inteiros na obra, embora Marcos estivesse exausto. "Não tem coisa melhor do que ter uma casa de bloco", afirma.

Erguer a própria moradia – com material doado – é uma ponta de esperança de dias melhores para ele, sua companheira, Jamile Carvalho, de 20 anos, e os dois filhos do casal, de quatro e dois anos – há um terceiro bebê a caminho.

Essa pequena família de Santo Antônio de Jesus, cidade a 187 km de Salvador e conhecida como "capital do Recôncavo Baiano", faz parte da massa de 19 milhões de brasileiros que hoje vivem em insegurança alimentar grave – linguagem técnica para a fome -, condição em crescimento no país governado por Jair Bolsonaro (PL).

Nos últimos meses, tudo piorou para eles: sem casa, sem emprego, sem dinheiro e sem auxílio financeiro do poder público, como os programas Bolsa Família, encerrado pelo governo Bolsonaro em novembro, e o Auxílio Brasil, que substituiu o primeiro e que, segundo o Ministério da Cidadania, atingiu 17 milhões de famílias em janeiro.

Apesar do aumento do programa, pelo menos 2,7 milhões de brasileiros vivem sem qualquer auxílio governamental mesmo sendo elegíveis para os benefícios, segundo estimativa da FGV-Social com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Na estimativa foram consideradas pessoas que não têm sequer registro de nascimento e, por causa disso, não podem se cadastrar em programas sociais. Outros problemas contribuem para essa "invisibilidade", como falta de documentos, de conta bancária e até de informação sobre os programas.

"Existe um grupo de pessoas em um estado mais profundo de pobreza, moradores de áreas remotas que têm dificuldade de acesso a serviços públicos e privados porque sequer têm documentos, por exemplo. Para colocá-las em políticas públicas, o Estado precisa primeiro enxergá-las, encontrá-las, e muitas vezes isso não acontece. Elas ficam invisíveis", diz Marcelo Neri, diretor da FGV-Social.

A combinação de abandono e desamparo faz com que, na maior parte dos dias, a família de Jamile e Marcos dependa da ajuda de um pastor evangélico para colocar a comida na mesa. "É até difícil de explicar… Pra quem tem filho é difícil ver o filho pedindo e a gente não ter nada pra dar", diz Jamile, ao lado dos tijolos da casa.

Marcos também conta como são esses momentos: "Eu chego a colocar a mão assim na cabeça, sem saber o que fazer. A gente não tinha nada para comer… Eu ia na casa da vizinha, pedia um fubá de milho pra uma fazer um cuscuz para os meninos, e sempre tem um filho de Deus que ajuda. O problema não é nem a gente, são os meninos", diz.

Quando compram comida, as refeições são simples: arroz com ovo ou ensopado feito com ossos que sobram dos açougues da região. "É comida de pobre", diz Jamile. "Só quando dá uma melhoradinha a gente come carne, mas é uma vez na semana."

Desempregados, Jamile e Marcos não conseguiram mais pagar o aluguel do local onde moravam. Então foram viver em um barraco de lona e madeira enquanto constroem uma casa nova no assentamento Moradia Digna, um terreno com cerca de 150 famílias às margens da rodovia BR-101, em Santo Antônio de Jesus.

"Trabalho com o que aparecer, mas está tudo parado. Quando consigo um dinheiro a gente compra ovo, que é mais barato. Mortadela…", diz Marcos. "Quando vai na feira, ele traz um sacolão de ossos…", interrompe Jamile. "A gente corta no facão, faço uma sopa pra dar um gostinho. Quando tem verdura eu coloco, mas quando não tem só boto tempero e misturo com arroz."

No final de novembro, a reportagem da BBC News Brasil encontrou essa e outras famílias nessa situação na ocupação e também em um assentamento menor na mesma cidade, o Nova Canaã, a 2 km de distância.

Boa parte dos moradores dos dois territórios não tem fonte de renda fixa nem auxílio do governo, consegue dinheiro apenas com bicos esporádicos, mora em casas ou barracos precários sem saneamento básico ou energia elétrica, além de depender de doações de igrejas e entidades de assistência para se alimentar.

Os dois locais são um retrato da crise social e econômica pela qual passa o Brasil: o país soma 13,7 milhões de desempregados, e a inflação de alimentos acumula alta de mais de 11,7% em 12 meses, segundo o IBGE. Um estudo da Universidade Livre de Berlim apontou que a fome atingia 15% dos domicílios em dezembro de 2020. Esse percentual chegava a 20,6% nos lares com crianças de 5 a 17 anos.

A vida com R$ 10 por dia

Marcos e Jamile, que não têm sequer conta bancária, nunca receberam qualquer valor do Bolsa Família ou Auxílio Brasil por falta de dinheiro até para buscar documentos necessários para a inscrição no programa. "Eles pedem minha certidão de nascimento, mas a única que tenho está no cartório em Vitória da Conquista (a 340 km de Santo Antônio de Jesus). Não tenho dinheiro para viajar até lá. Tudo o que a gente tem é pra comprar comida", explica.

Sem o auxílio, o casal só consegue dinheiro vendendo coentro e salsinha de uma pequena horta cultivada ao lado da casa que está construindo no assentamento Moradia Digna. "Tem dia que a gente vende 30 reais… Tem dia que faz 20 reais, 10, 9… Outros não vende nada, porque as pessoas guardam os temperos pra depois…", afirma Marcos.

Essa baixíssima e incerta renda coloca a família próxima da linha de pobreza extrema no Estado da Bahia, considerando um estudo dos pesquisadores Naercio Menezes Filho e Bruno Komatsu, do Insper. A pesquisa divide os cenários entre a extrema pobreza, que mede a renda mínima para que o indivíduo faça ingestão necessária de calorias em um dia, e pobreza, que inclui o atendimento de necessidades básicas além da alimentação, como higiene.

Em áreas urbanas da Bahia, como Santo Antônio de Jesus (um município de 103 mil habitantes), as famílias com um rendimento médio mensal de menos R$ 111 por pessoa estão abaixo da linha de pobreza extrema, segundo o estudo. Para a linha de pobreza, ele aponta uma renda média mensal de R$ 296 por pessoa na região.

'Do coração de Deus'

Na penúria, a maior parte dos moradores de Moradia Digna e Nova Canaã sobrevive de doações feitas por pesquisadores ligados à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e religiosos. Um deles é o pastor Ricardo Costa da Silva, de 43 anos, da Igreja Missionária El Shaday, que toca o projeto "Mãos que Trabalham" junto a outros evangélicos.

Todos os domingos, os missionários percorrem Santo Antônio de Jesus, batendo de porta em porta para pedir alimentos que depois serão doados em um mercadinho solidário que atende a 800 famílias vulneráveis. Desde o início da pandemia, o grupo já doou cerca de 3 mil cestas básicas, além de distribuir um sopão e absorventes para mulheres que não têm dinheiro para comprar o produto.

"É muita fome nessa localidade, meu amigo, muita carestia… Aqui não têm água encanada, não têm saneamento básico, a energia elétrica é com bicos. A gente tenta amenizar o impacto da fome por aqui, diminuir as mazelas dessas pessoas que estão desassistidas por todos os governos", diz Ricardo, que, no Natal, conseguiu assar 100 frangos para distribuir aos moradores.

Nascido em uma família pobre, o pastor também sofreu com a miséria nas ruas de Salvador. "Passei muita necessidade na vida… Entrei na droga, no álcool, tinha uma vida muito ruim", diz. Há 16 anos, vivia o auge de seus problemas quando decidiu se converter ao Evangelho. "Conheci Jesus e a palavra. Abandonei a vida que eu tinha e me tornei um ser humano melhor, uma pessoa com uma calma, paz de espírito", diz.

Em 2010, Ricardo se casou e se mudou para a periferia de Santo Antônio de Jesus, onde virou pastor e começou a cortar o cabelo e fazer a barba de pessoas que não tinham como pagar pelo serviço. "Fazer esse trabalho foi algo que veio do coração de Deus para o meu coração. Não sei nem explicar, foi uma vontade que veio de dentro. Entendi que precisava fazer alguma coisa para pessoas que estão na mesma situação que eu vivi."

A solidariedade de ativistas como ele é essencial para a sobrevivência dessa população "invisível", segundo uma pesquisa que a FGV-Social realizou entre pessoas que compõem os 40% mais pobres da população. Nessa parcela, 61% dos entrevistados disseram que, em uma situação de emergência como a fome, dependem da solidariedade de amigos ou parentes – 13,6% recorrem a empréstimos.

Foi o pastor quem conseguiu 900 tijolos, 20 sacos cimento e duas caçambas de areia para Marcos e Jamile construírem sua casa no final do barranco de Moradia Digna. "Quando tiver com a telha, a gente logo se muda pra cá", diz Jamile.

Para Marcos, ter uma moradia de bloco, mesmo embaixo de um barranco, pode iniciar uma reviravolta. "A casa vai ser uma mudança de vida", diz, sentado em alguns tijolos, exausto depois de mais uma viagem pelo barranco sob um sol de 36º C.

Para Jamile, dormir sob blocos e telhas já seria um alívio para o calor intenso que a família enfrenta no barraco onde vive atualmente. Ali, embaixo das lonas de plástico, no metro entre o sofá onde dormem as crianças e a porta de madeira, a sensação é de rápido derretimento em meio ao suor escorrendo para o chão de terra batida.

Explosão e tragédia

A casinha da família é só mais uma em construção no terreno de Moradia Digna – algumas são erguidas em uma área de risco de deslizamento, tanto em cima quanto embaixo do barranco. Na parte de baixo, há um pequeno córrego e, do outro lado dele, uma fazenda de criação de bois.

A ocupação surgiu de uma tragédia ainda hoje lembrada com revolta em Santo Antônio de Jesus. Até 11 de dezembro de 1998, o terreno abrigava uma fábrica clandestina de fogos de artifício, setor que movimentou a economia do município por algumas décadas, mas praticamente não existe mais. Na manhã daquela sexta-feira, um dos galpões com 1,5 tonelada de pólvora explodiu, matando 64 pessoas.

A fábrica pertencia ao empresário Osvaldo Bastos, o "Vado dos Fogos". Apenas parte das indenizações aos familiares de vítimas e feridos foi paga por ele, que morreu em maio de 2021.

Por anos a área ficou vazia, até que, em agosto de 2019, famílias pobres e despejadas de outro local ocuparam o terreno – entre elas, parentes de vítimas da explosão. No ano passado, a prefeitura desapropriou a área que ainda pertencia à família de Vado – e pretende construir moradias populares por ali.

Um dos ocupantes é Aurelino Gonçalves, de 73 anos, que perdeu duas filhas na explosão: Aristela e Maria das Graças, de 21 e 22 anos. "Estava trabalhando em uma construção em outro bairro quando ouvi os estouros. Foi uma explosão enorme. Saí correndo, mas quando cheguei a tragédia já estava pronta", conta.

Aurelino também perdeu primos, sobrinhos e amigos. Foi um dos poucos a ser indenizado, mas diz que a explosão sempre lhe volta à mente quando se vira para os galpões. "Nem gosto de olhar para aquele lado porque a imagem do dia vem na cabeça". Para ele, ocupar a área da antiga fábrica é uma maneira de recompensar as famílias que sofreram com a tragédia. "Estou aqui lutando para sobreviver em um pedacinho de terra", diz.

Outro que luta para sobreviver por ali é Wilson Francisco de Jesus, de 44 anos, que mora sozinho em um barraco de pallets e lona – a água ele tira de um cano no barranco. Despejado e sem qualquer auxílio do governo, foi viver na ocupação há um ano e hoje depende da comida arrecadada pelo pastor Ricardo. Também faz pequenos bicos cavando buracos para a construção de novas moradias na ocupação.

Naquela tarde, ao final de novembro, ele recebeu R$ 35 fazendo isso. "Comprei meu macarrão, carne do sertão, chouriço, feijão e cozinhei aqui no fundo", diz, mostrando as panelas em cima do fogão improvisado com pedaços de madeira.

Para o advogado da ocupação, Valter Costa de Almeida, embora a situação seja precária, a luta por moradia do assentamento tem dois objetivos.

"O primeiro é suprir a necessidade básica da habitação mesmo. O segundo é a justiça social: transformar um lugar que era de morte, de exploração de pessoas, em um local de renovação e esperança, uma comunidade onde as pessoas possam construir suas casas e mudar de vida", diz.

Segundo ele, uma conjunção de fatores leva famílias pobres e periféricas para os assentamentos e ocupações da cidade do interior baiano, agravando a insegurança alimentar e vulnerabilidade social da região.

"Não temos políticas habitacionais nem de segurança alimentar regulares que atendam a essa população que não consegue pagar aluguel nem comprar um terreno. São pessoas muito vulneráveis, sem qualquer auxílio do poder público. O déficit habitacional na região é de 30%, número altíssimo. Então as pessoas se instalam em áreas tecnicamente impróprias, como encostas e áreas próximas de rios. São apenas nesses espaços que elas têm alguma alternativa de moradia", explica o advogado.

'Precisão'

Nos últimos meses, a prefeitura de Santo Antônio de Jesus informou aos moradores de outro assentamento, o Nova Canaã, que pretende deslocá-los para Moradia Digna.

Essa perspectiva desagrada os dois lados: quem vive em Moradia Digna diz que não há mais estrutura nem espaço para receber novas pessoas – eles temem ter de derrubar suas casas para que outras sejam erguidas. Do outro, os moradores de Nova Canaã não querem deixar o pouco que construíram nos últimos anos para começar tudo de novo, ainda mais na situação de vulnerabilidade em que se encontram – pedem que sejam incluídos em algum programa de moradia social.

Uma dessas pessoas é Vera Lúcia Batista, de 42 anos, que há três anos construiu uma pequena casa em Nova Canaã. "Se não fosse a 'precisão', eu não estaria aqui. Todo mundo está aqui porque precisa. Tem dia que o povo diz: 'hoje vem o caminhão e o trator pra destruírem tudo'. É duro viver na incerteza, é muito sofrimento. Eu tirei do que eu não tinha para construir esse lugar. Sou cardíaca, tenho problema de pressão, não posso sofrer esse estresse", explica.

Vera trabalhava na produção de fogos de artifício, mas, depois da explosão de 1998, o setor entrou em declínio em Santo Antônio de Jesus. Desempregada e com três filhos adolescentes, dependia dos R$ 289 que recebia do Bolsa Família, mas ficou sem o valor depois que o governo Bolsonaro encerrou o programa para instituir o Auxílio Brasil – passou a receber o benefício em dezembro. Com o bolso vazio, não há dinheiro nem para comprar o gás, que custa R$ 110 na cidade.

"Estou esperando para ver o que Deus quer fazer. Paciência… O jeito vai ser pedir pra comer. Mas é sempre assim, também: quando falta, um outro ajuda. É uma luta, mas com Deus na frente a gente consegue", diz Vera.

Na casa vizinha, vive Marileide dos Santos, de 48 anos, que se mudou para o Nova Canaã depois que sua antiga moradia foi destruída por uma inundação. Desempregada e também sem auxílio governamental, depende de doações do pastor e de ativistas para comer na maioria dos dias.

"Não vou mentir para você: está faltando muita coisa, sim. Faz dois meses que não compro gás. Usei o dinheiro para comprar remédios", diz ela, hipertensa, e ainda sofrendo com sequelas de uma infecção por covid-19, como falta de ar.

Em resposta à BBC News Brasil, a prefeitura de Santo Antônio de Jesus, administrada pelo prefeito Genival Deolino Souza (PSDB), afirmou que cadastrou as famílias de ambos os assentamentos para a implantação de uma futura política habitacional na área do Moradia Digna, onde serão construídas casas populares. Sobre a situação de fome, a prefeitura disse que concede "benefícios eventuais em atendimento à lei municipal."

Já o Ministério da Cidadania afirma que "tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população em situação de vulnerabilidade no país." Em nota, a pasta diz que o Auxílio Brasil, como programa permanente, terá ingresso recorrente de novos beneficiários por meio do Cadastro Único em postos de atendimento administrados pelos municípios.

"Importante lembrar que essa inscrição não resulta no imediato repasse de recursos. Segundo a legislação em vigor, a concessão do benefício está condicionada à disponibilidade orçamentária", diz.

Vitória

O sol começava a se pôr em Moradia Digna quando Marcos se sentou no chão, calado e exausto por mais um dia carregando blocos para a futura casa. À frente, o córrego e, nos fundos, o barranco. Jamile brincava com os filhos usando uma mangueira no meio da obra.

Ao lado, o pastor Ricardo Costa olhou a cena e falou: "Marcos, a luta é grande, mas a vitória é maior. Se não tiver luta não tem vitória."


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