04/05/2024 - Edição 540

Especial

QUANDO O ESTADO MATA

Violência policial cresce no Brasil desde 2018

Publicado em 12/01/2024 12:40 - Daniel Mello (Agência Brasil), Jeniffer Mendonça e Arthur Stabile (Ponte) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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A violência policial cresce no Brasil desde 2018, afirma a organização não governamental Human Rights Watch (HRW). O Relatório Mundial sobre Direitos Humanos de 2024 novamente traz o tema das mortes causadas pela polícia como uma preocupação em relação ao país.

“O que eu vejo é a continuação de uma tendência muito ruim. O número de mortes causadas pela polícia chegou a mais de 6 mil em 2018, e desde então continua nesse patamar”, enfatizou o diretor do escritório da ONG no Brasil, César Muñoz.

Com base nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a HRW destaca que, em 2022, foram mortas por policiais em serviço e de folga 6,4 mil pessoas no país. Muñoz acrescenta que “80% dos mortos pela polícia no Brasil são pessoas negras”.

Em São Paulo, após uma queda de 59% em dois anos, foi registrado um aumento em 2023. De janeiro a setembro do ano passado, o número de pessoas mortas por policiais em serviço aumentou 45%.

A chamada Operação Escudo é destacada na publicação da organização. Em 40 dias de ação, 28 pessoas foram mortas pela polícia em Guarujá e Santos, no litoral paulista. As intervenções na região foram uma reação do governo estadual ao assassinato do policial militar Patrick Bastos, que fazia parte das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), no final de julho de 2023.

Na operação, a HRW identificou problemas que, segundo a organização, dificultam o controle da atividade policial no país. “O que vimos foram falhas muito importantes na investigação, especialmente a qualidade ou falta de qualidade das perícias”, enfatiza Muñoz.

Sem essas informações, o Ministério Público, responsável pelo acompanhamento da ação das polícias, não tem, na avaliação do diretor da ONG, a possibilidade de fazer uma avaliação correta do trabalho das corporações. Faltam, inclusive, provas para denunciar agentes do Estado com atuação fora da lei.

Para enfrentar o problema, Muñoz acredita que seja necessária uma política nacional focada em diminuir o número de mortes causadas pela polícia, ainda que a letalidade seja um problema mais concentrado nas polícias estaduais. Para o diretor, o tema da qualidade das perícias deve ser “uma prioridade nacional”. Da mesma forma, ele defende que é preciso haver uma diretriz que abranja todo o país para utilização de câmeras corporais pelos policiais.

A letalidade policial está, segundo o diretor da ONG, diretamente ligada a crimes cometidos por agentes do Estado. “A corrupção policial está muito vinculada com a violência, porque o policial abusivo tem o poder de extorquir. O policial abusivo que pode abusar da população com impunidade pode matar, sem nenhuma penalidade, ele tem uma decisão sobre a vida ou morte, então pode exigir dinheiro para não matar.”

Outro lado

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que “investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas para reduzir as mortes em confronto, com o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo”. Ainda de acordo com a pasta, a “Polícia Militar tem uma corregedoria atuante, que não tolera desvios de conduta e não se priva em punir os integrantes da corporação que atuam de maneira contrária aos preceitos da instituição.”

Sobre a Operação Escudo a nota diz que a ação ” foi realizada em absoluta observância à legislação vigente”. “Todas as mortes registradas no curso da operação são investigadas pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) de Santos, com apoio do DHPP [Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa], e pela Polícia Militar por meio de Inquérito Policial Militar. O conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com o Ministério Público e o Poder Judiciário.”

Lula precisa enfrentar a violência policial, afirma Human Rights Watch

César Muñoz pondera que o cenário é melhor do que o governo de Jair Bolsonaro, mas que o presidente perdeu a oportunidade de mexer em um “problema crônico”, que é letalidade policial. “Essa área realmente é um ponto onde o governo deveria tomar mais medidas. E o que vimos foi, por exemplo, que o número de mortes continua no mesmo patamar basicamente que o ano passado”, avalia.

De acordo com dados preliminares levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a letalidade policial aumentou em 16 estados no primeiro semestre de 2023. Um dos destaques foi o estado de São Paulo, que até 2022 tinha alcançado reduções históricas nesse indicador, especialmente com o programa de câmeras nas fardas.

“Tivemos várias operações muito letais no país, inclusive a Operação Escudo em São Paulo, que matou 28 pessoas na Baixada Santista, e com os mesmos problemas que vimos no passado”, criticou Muñoz.

Ele se refere à operação sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), deflagrada um dia após o assassinato do soldado Patrick Reis, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da Polícia Militar paulista, em 27 de julho. Em 40 dias, foram 28 mortos e uma série de denúncias de violações de direitos humanos que chamaram atenção até da comunidade internacional, especialmente pelas declarações por parte do governador e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite que minimizaram as mortes e chamavam as denúncias de “narrativas”.

Ainda em novembro, a HRW divulgou um relatório em que indicou que a Polícia Civil de São Paulo cometeu “falhas graves” na apuração inicial dos casos, com base em 26 boletins de ocorrência e 15 laudos necroscópicos das vítimas analisados por peritos forenses internacionais que atestaram que os exames “são ineficazes e não cumprem os padrões mínimos aceitáveis na investigação de mortes relacionadas com armas de fogo no contexto da ação policial”.

“Obviamente são os governadores que são os responsáveis diretos pela direção das polícias no âmbito estadual, mas o governo federal tem autoridade para coordenar os esforços de agências, dos estados e dos municípios para desenvolver políticas nacionais”, aponta o diretor da HRW. “E não tem feito isso. Há uma ausência enorme de coordenação e de pensar em uma política de segurança pública que aborde os problemas estruturais do Brasil.”

Um desses problemas criticados pela organização foi a aprovação da Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, sancionada pelo presidente em dezembro, que não teve participação da sociedade civil no processo de discussão. “Foi uma oportunidade perdida [de se discutir a reforma das polícias]. Os vetos foram claramente muito importantes, mas a Lei Orgânica das PMs não muda em nada as PMs, faz uma consolidação jurídica do que existe agora. E o que existe não está funcionando. Temos todo ano mais de seis mil mortes pela polícia. É um número enorme, se você comparar esse número com qualquer outro país do mundo”, critica. “Uma política de segurança pública que estimula o confronto é prejudicial para a segurança pública e prejudicial para os próprios policiais.”

Outro ponto que Muñoz destaca é o controle externo da atividade policial que, constitucionalmente, é atribuição dos Ministérios Públicos e o que Ministério Público Federal (MPF) poderia pautar o assunto para servir de exemplo. Para ele, contudo, a forma como Lula escolheu o novo Procurador-Geral da República (PGR), indicando Paulo Gonet, uma pessoa fora da lista tríplice, gera desconfiança sobre a independência da atuação e chega a ser contraditório, já que a obrigatoriedade de o presidente indicar um nome da lista foi implementada em 2003, no primeiro mandato dele.

“No Brasil, o sistema que tradicionalmente foi usado foi a lista tríplice que começou com o governo de Lula. O governo Bolsonaro rejeitou esse sistema. Escolheu o PGR que ele quis. E essa pessoa foi amplamente criticada porque foi vista como uma pessoa que estava protegendo ou beneficiando o Bolsonaro”, explica. “A decisão do presidente Lula de seguir o exemplo do Bolsonaro é ruim porque a experiência com o PGR anterior não foi boa. Eu não estou criticando o atual PGR. Não é uma questão pessoal. É uma questão do sistema e como foi escolhido.”

Muñoz afirma que é urgente que os Ministérios Públicos tomem a frente de investigações de mortes praticadas por policiais, tendo em vista que ainda está em discussão no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um projeto de resolução que regula a atuação do órgão “na investigação de morte, violência sexual, tortura, desaparecimento forçado de pessoas e outros crimes ocorridos em decorrência ou no contexto de intervenções dos órgãos de segurança pública.”

“Não faz sentido a própria polícia investigar a polícia. Isso não funcionou, não está funcionando. E tem uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília, que obriga o Brasil realmente a ter essa investigação independente dos órgãos policiais”, explica.

Um exemplo da falta de regulação que ele aponta é o do Rio de Janeiro. “No estado do Rio, o Ministério Público só tem conhecimento de uma morte causada pela polícia quando o delegado manda o inquérito para o MP. Então são uns 30 dias até o delegado comunicar o Ministério Público. É uma situação absurda. É ridículo que o promotor, ou o Ministério Público como instituição, só saiba que a polícia matou alguém 30 dias depois”, pontua.

Além disso, o governo federal havia lançado em outubro de 2023 o Programa de Ação de Segurança (PAS), que engloba um plano nacional de combate ao crime considerado por especialistas como “genérico, improvisado e bilionário” e sem discussão da questão da letalidade policial, e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) 2. Na ocasião, o então ministro da Justiça e Segurança Pública Flavio Dino, que assumirá uma cadeira no Supremo Tribunal Federal em fevereiro, havia prometido que a proposta seria revista em até 60 dias. O texto, cujo prazo expirou em dezembro, ainda não foi relançado.

César Muñoz aponta que é necessário o plano incluir “metas e medidas concretas para reduzir a letalidade policial” e políticas para combater a corrupção policial, o que, para ele, são questões intrinsicamente relacionadas, além de protocolos claros para incentivar perícias independentes, uso de câmeras corporais, dentre outros pontos – esta última, que está sob consulta pública desde agosto do ano passado.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública havia anunciado a doação de 400 câmeras corporais por parte da Embaixada dos Estados Unidos à Polícia Rodoviária Federal (PRF) e à PM da Bahia, mas sem expor maiores detalhes. Além disso, Dino voltou atrás na promessa de condicionar repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) aos estados que implementassem o equipamento em 2023 e 2024 e incluiu o aparelho como item financiável de forma facultativa.

“A câmera corporal não vai resolver todos os problemas de segurança pública do Brasil. E um elemento muito importante que deve ser incluído nos projetos são os protocolos de uso e de acesso às imagens das câmeras corporais. Isso tem que ficar muito claro porque se você não tiver os protocolos claros, o impacto dessas câmeras pode ser muito baixo ou nenhum”, diz Muñoz.

Fernando Frazão – Abr

O que diz o governo federal

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) na atual gestão tem priorizado o desenvolvimento de políticas públicas visando a redução da violência institucional e apoio, bem como a reparação das famílias vítimas de violência advindas das forças de segurança.

Plano Nacional de Segurança
Dentre as ações, destacamos a condução do MJSP na revisão do Plano Nacional de Segurança Pública de forma conjunta com diferentes atores institucionais e da sociedade civil. Entre as alterações consolidadas no Plano estão a previsão de metas específicas relacionadas à redução da letalidade policial e dos feminicídios.

Essa inclusão reconhece a necessidade de o Estado brasileiro priorizar temas centrais para uma política nacional de segurança pública baseada em evidências. O ciclo de revisão do Plano está em fase avançada e, conforme previsto no Decreto 10.822/21, será disponibilizado para consulta pública, que deve começar em fevereiro.

Redução da letalidade policial
Ressalta-se, contudo, que as medidas relacionadas à redução da letalidade policial não se limitam às alterações do Plano Nacional. Além da reformulação, o MJSP publicou a Portaria nº 439/2023, que estabelece as áreas de temáticas para repasses dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Com distribuição de 80% dos recursos, a área temática redução das mortes violentas intencionais prevê expressa e concretamente o repasse de recursos para ações de redução da letalidade e da vitimização de policiais, com diferentes medidas possíveis, dentre elas, a implantação de câmeras corporais
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A Polícia Rodoviária Federal foi a corporação piloto para iniciar os estudos de implementação das câmeras corporais a nível federal, com o “Projeto Estratégico Bodycams”. O estado da Bahia foi escolhido para receber o projeto piloto do Governo Federal para a implementação do projeto Bodycams.

No dia 1º de novembro, o MJSP e a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil formalizaram  a  doação de 400 câmeras corporais, destinadas à Polícia Militar da Bahia e Polícia Rodoviária Federal do Estado do Rio de Janeiro. A entrega das câmeras já ocorreu em dezembro.

Vale destacar, também, que a Senasp iniciou o processo de revisão e regulamentação de normativos que tratam sobre o uso da força em nível nacional. A Portaria Interministerial 4.226/2010, que estabelece diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, será revisada, assim como a regulamentação da Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, em todo o território nacional.

Reparação de violência institucional e apoio
O acolhimento de mães e familiares de vítimas de violência institucional é um dos eixos prioritários da Saju. Nesse sentido, foi firmado parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro para a Ampliação da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave), foram destinados mais de R$3,5 milhões para o suporte psicossocial e jurídico a familiares, principalmente mães, afetadas pela violência de Estado.  

Destaca-se também a parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e a Defensoria Pública de São Paulo, no qual foram destinados R$4 milhões para a implementação de projeto de acolhimento de mães vítimas de violência institucional. O Projeto deve atender mães dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Minas Gerais.

Violência policial: o que é, por que acontece e como controlar

O Estado tem entre suas prerrogativas o chamado “monopólio do uso da força” como forma de garantir a ordem social. Essa prática se dá através das polícias, especialmente, no caso do Brasil, as militares. Até onde o uso da força é legal? Em que ponto vira violência policial contra as pessoas?

A ideia de que o Estado tem um “monopólio legítimo da violência” foi articulada pela primeira vez no começo do século 20 pelo sociólogo alemão Max Weber. A doutrina, que influenciou a formação dos Estados contemporâneos, diz que os Estados são o único ente que tem a prerrogativa de utilizar a força para garantir que o pacto social (definido pelas leis de cada país) não seja quebrado e, por meio de seus braços armados, como as polícias e Forças Armadas, controla a sociedade.

Como acontece o uso da força?

Há diversas formas de aplicar essa lógica. A presença de um policial militar na esquina já pode ser compreendida como um uso da força, ainda que de forma preventiva. Segue a ideia de se mostrar presente para dissuadir a prática de um crime.

O policial não necessariamente precisa investir fisicamente contra as pessoas, seja com golpes, seja com armamentos, para evitar uma prática criminosa. A Polícia Militar atua como polícia ostensiva, de atuação nas ruas para combater os crimes, enquanto a Polícia Civil, também chamada de polícia judiciária, trabalha em investigações para interromper ou antecipar práticas criminosas.

No entanto, o uso abusivo dessa força, principalmente vindo da Polícia Militar, é histórico e recorrente no Brasil. Um dos principais pontos em jogo nesse sentido é quando o policial mata uma pessoa em serviço.

A lei dá sustentação para uma morte acontecer, contanto que ela se baseie no artigo 23 do Código Penal, ao ser cometida “em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever legal”. Esse último item enquadra a atividade policial.

Na prática, vemos o argumento de legítima defesa ser usado inclusive quando um policial mata uma pessoa desarmada dando um tiro nas suas costas. Há estudos que apontam os homicídios como forma de um PM “aliviar a tensão”, como explica a tese de doutorado do tenente-coronel aposentado da PM paulista Adilson Paes de Souza.

Em que momento vira violência policial?

Quando as ações ultrapassam essa barreira, em casos de morte, o policial comete um assassinato e, em vez de cumprir o papel legal de defender a sociedade, ataca-a. É preciso ter a real necessidade de proteger a vida, seja a sua ou de outras pessoas, para que a ação do braço armado do Estado tenha respaldo e seja uma morte em intervenção policial, também chamada de auto de resistência, e não um assassinato.

Um exemplo: somente no primeiro semestre de 2020, sob comando do então governador João Doria (PSDB), os policiais do estado de São Paulo mataram 498 pessoas, a maior quantidade de homicídios cometida por agentes da segurança pública desde 1996 – quando a estatística começou a ser contabilizada pelo governo.

Casos de mortes não são os únicos em que a polícia é violenta e foge da legalidade. Também pode acontecer no dia a dia em abordagens, por exemplo. Os policiais têm entre suas tarefas abordar suspeitos, mas não podem ser violentos nem abusivos, mesmo diante do claro cometimento de um crime. O ato de o policial dar um tapa no rosto de uma pessoa configura uma violência policial e abuso de autoridade.

A Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo, no ano de 1997, surge como caso de abuso policial em várias escalas: desde a tortura de pessoas durante abordagens até a morte de um homem quando um PM atirou a esmo em direção a um carro.

O episódio gerou a adoção do Método Giraldi no ano seguinte, criado pelo coronel Nilson Giraldi, que compila normas e técnicas para atuação da PM paulista. Nele, é determinado que policiais atirem somente no abdômen de suspeito caso seja extremamente necessário o uso de arma de fogo.

O uso de arma é recomendado somente em último caso, o limite da atuação policial, e não uma regra para todas as ações da PM. No entanto, há uma lógica de guerra existente nas corporações, o que gera letalidade e ações violentas, como explica Adilson Paes de Souza. “O policial não está na rua para patrulhar e prevenir o crime, ele está [na rua] para combater o inimigo”, diz, sobre o pensamento enraizado hoje em dia entre parte da corporação.

Como se dá o abuso

O exemplo da Favela Naval é citado pela especialista Samira Bueno, doutora em administração pública e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo ela, o fato de policiais agirem com truculência em uma abordagem, de forma agressiva e criminalizando a pessoa enquadrada, já é um modelo de violência policial.

Ela explica que essa lógica é histórica nas polícias, de ver as pessoas como um inimigo criado e, não necessariamente, quem deve ser protegido por aquela corporação. Um dos desafios apontados por Bueno é controlar os abusos cometidos na cotidiano da atividade policial.

Casos como o de uma mulher negra de 51 anos pisada no pescoço por um PM na periferia de São Paulo, de um entregador de aplicativos golpeado no pescoço enquanto protestava no centro da capital paulista e de um homem sufocado por um policial até desmaiar em Diadema, na Grande São Paulo, evidenciam tais abusos como ações recorrentes.

A pesquisadora considera a falta de punição interna nas polícias como um incentivador para práticas abusivas pelos agentes públicos, como as citadas acima. Adilson explica que há uma conexão das mortes cometidas com os suicídios entre policiais, válvulas de escape para do sofrimento. “Matar alguém ou se matar pode ser a expressão”.

Para a especialista do Fórum Brasileiro, o problema vai além da falta de capacidade para coibir internamente essa violência nos próprios batalhões da PM e delegacias da Polícia Civil. Ela cita as Corregedorias da PM e da Civil e o Ministério Público como corresponsáveis pela alta letalidade e abusos recorrentes por parte dos policiais. Esses órgãos são responsáveis por investigar e controlar as práticas ilegais cometidas por policiais.

Quem controla?

As Corregedorias são órgãos estatais da própria PM e da Polícia Civil, cuja função é investigar crimes cometidos pelos policiais – desde mortes até infrações de regulamentos internos do dia a dia, como uso correto das fardas e deserções.

É a Corregedoria que detém o poder de investigar as mortes cometidas pelos policiais contra civis, ainda que o faça em apenas 3% de todas as mortes cometidas por PMs em SP, conforme estudo da Ouvidoria da Polícia.

Sem a Corregedoria, os próprios comandantes dos batalhões, chefes diretos dos policiais investigados por um crime, ficam responsáveis pelas apurações.

Fora da esfera policial, cabe ao Ministério Público a prerrogativa de controle externo da atividade policial, isso porque não é um braço integrante da corporação nem da Secretaria da Segurança Pública. Assim, mesmo não tendo ligação direta com a tropa ou ao governo, cabe ao MP vistoriar as ações ilegais e denunciar à Justiça que combata tais práticas.

Há um grupo no MP paulista, ainda em fase de criação, para acompanhar casos de violações de direitos humanos e propor mudanças. A finalidade é coibir os abusos recorrentes, sobretudo ocorridos contra as populações periféricas, jovens e negras.

Como citado anteriormente, além do MP também existe a Ouvidoria das Polícias, órgão criado para a sociedade civil ter voz para denunciar práticas irregulares de policiais.

Fica sob responsabilidade da Ouvidoria, além de acolher denúncias e encaminhá-las para investigação, cobrar que Corregedorias e Ministério Público tomem atitudes para apurar essas ações e acompanhar os processos até o fim.

Ainda em São Paulo, há deputados que tentam dar fim à Ouvidoria, único órgão cuja finalidade é coibir as práticas ilegais das polícias e tem em seu comando um representante da sociedade civil.


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