18/05/2024 - Edição 540

Especial

O HOMEM QUE QUERIA SER REI

Arthur Lira não foi eleito para governar o Brasil, mas pensa que sim

Publicado em 02/06/2023 10:24 - Ricardo Noblat (Metrópoles), Moisés Mendes (DCM), Leonardo Sakamoto (UOL), BDF – Edição Semana On

Divulgação Montagem: Marcelo Barone

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Não foi só para salvar a democracia, ameaçada por um defensor da tortura e da ditadura, que grande parte dos brasileiros votou em Lula. Foi também para que ele governasse como prometeu.

Atribui-se ao imperador Napoleão Bonaparte a seguinte frase: “Primeiro a gente ganha, depois a gente vê”. Ele governou a França entre 1799 e 1815, encerrando a Revolução Francesa.

À época, não havia eleições tais como as conhecemos hoje. A monarquia tinha acabado, com a decapitação do Rei e da Rainha; ela voltaria com a queda e a prisão de Napoleão.

Um plano de governo, portanto, era dispensável para se chegar ao poder ou para o retomar. Primeiro, ganhava-se o poder, depois se via o que fazer com ele. Hoje, não é mais assim.

Ocorre que para governar hoje não basta, como antes, o apoio das Forças Armadas, da nobreza (ou de parte dela) e da Igreja. O tal “povo” é decisivo, e a democracia, um regime complexo.

A ditadura é mais simples. Uns poucos mandam, os demais obedecem. Não podemos falar nada que contrarie os ditadores, muito menos fazer, ou seremos perseguidos. Que lhe parece?

No ano passado, o “povo” elegeu um presidente de esquerda e um Congresso de direita; o mais de direita, conservador e reacionário desde a redemocratização do país que em 1985.

Uma fatia da direita que se autodenomina “civilizada” votou em Lula porque o sonho autoritário de Bolsonaro era um pouco indigesto para ela. Candidato algum recusa voto.

O impasse, resultado em parte disso, imobiliza o governo. Por mais concessões que tenha feito para se eleger, Lula pouco ou nada tem a ver com Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados.

Ambos são nordestinos, mas é quase tudo o que têm em comum. Lula nasceu em Pernambuco, é filho da miséria. Lira, em Alagoas, filho de donos de terras, advogado, agropecuarista e empresário.

O governo é mais a cara de Lula, que sempre se comportou na política como um conciliador; o Congresso, e não só a Câmara, a de Lira, que apoiou a eleição e a tentativa de Bolsonaro se reeleger.

O Congresso nunca teve tanto poder como tem agora. O governo perdeu o que o Congresso ganhou. O regime semipresidencialista deu lugar a um semipresidencialismo sem responsabilidade.

Dito de outra forma: os bônus ficaram com o Congresso, e os ônus com o governo. Se o governo for mal, a culpa será unicamente sua. Se, ao cabo, sair-se bem, dividirá os méritos com o Congresso.

Dir-se-á: mas sempre foi assim. Não foi. Pela simples razão de que o Congresso se fortaleceu e o governo enfraqueceu-se. Poderá se dizer também: então, que o governo se entenda com o Congresso.

Quem ditará os termos do entendimento será o Congresso – salvo se o governo ceder a todas as suas exigências. É nisso que aposta a direita para voltar em 2026. Por enquanto, falta-lhe um nome.

Não é desarticulação, é chantagem explícita e incontrolável

Seria apenas ingênua, se fosse mesmo desinformação, mas é deliberadamente grotesca a abordagem média dos jornalistas de direita, que enxergam a postura chantagista do Congresso contra Lula como resultado da falta de articulação do governo.

Conversa, articulação, concessões, incluindo a cedência de cargos, é da natureza da política, e Lula sabe como lidar com essas trocas.

Mas o que acontece desde que Lula assumiu é sabotagem. Jornalistas que tentam apresentar essa chantagem como normal estão naturalizando as atitudes de gangues da direita e da extrema direita.

O que chamam de desarticulação é resultado da ação desmedida dos sabotadores, como nunca o Congresso viu antes.

A síntese do que acontece está em muitas análises de quem não embarca nessa conversa.

O centrão e o bolsonarismo tentam fazer com que Lula tenha um operador da liberação de verbas de emendas dentro do Planalto.

Um despachante que mantenha os buchos do fascismo sempre cheios, para que o Congresso não incomode Lula.

Não bastam ministérios, cargos em escalões diversos e a liberação eventual de verbas para emendas. Tem que ser algo sistemático, da engrenagem do governo.

Todas as votações terão um preço, como ocorreu essa semana. E não há articulação que resolva esse ataque, porque o centrão não quer conversa nem fazer concessões pontuais, quer dinheiro.

Parte do jornalismo de esquerda reafirmou essa abordagem das tias da direita e até faz análises pretensamente profundas sobre a falta de articuladores confiáveis com o Congresso.

O mais hábil articulador, se estiver fora do governo e da base ativa em Brasília, pode ser chamado, onde estiver, que não mudará nada. Até porque a imprensa joga junto com os sabotadores.

Há como sair da armadilha criada pelo fascismo que contagiou a direita? A fragilização de Arthur Lira, com o flagrante nos cofres dos amigos das gangues de Alagoas, pode ajudar?

Talvez dê um susto, mas não ajuda muito. A única esperança está no que Lula sabe fazer como ninguém. Acionar o imponderável e inverter o jogo.

Não para que consiga deixar de pagar, o que parece impossível, mas para que pague menos.

O cientista político Pedro Fassoni concorda. Ele avalia que o presidente da Câmara dos Deputados  perdeu os pudores e tornou pública a chantagem por mais cargos dentro do governo federal.

Para Fassoni, esta postura do parlamentar de condicionar a votação de pautas importantes para o governo, como a chamada MP da Esplanada, à liberação de emendas e nomeação de aliados nos ministérios é bastante negativa.

“O que Arthur Lira está fazendo é chantagem com o governo federal, condicionando a votação de algumas medidas de interesse do governo a distribuição de cargos para seus aliados. Tá escancarado. E a gente vê isso no noticiário, com esse modus operandi sendo tratado com naturalidade. Nem faz questão de esconder mais. É um desvio de função. Ele está colocando seu cargo de presidente para benefício pessoal.”

Fassoni avalia que o comportamento de Lira sugere que ele quer manter ativa uma agenda que foi derrotada nas urnas.

“Lira é um bolsonarista. Fez campanha pro Bolsonaro e é totalmente identificado com os interesses reacionários da sociedade brasileira. O governo também  não tem muita margem para negociar. O centrão está exigindo liberação de verbas, emendas, mas uma hora isso acaba e perde-se essa moeda de troca”, analisou.

Após emparedar Lula, Lira será julgado pelo STF e vê aliados na mira da PF

Após emparedar Lula sob a ameaça da Câmara dos Deputados baixar o caos sobre seu governo, um dos presidentes do Poder Legislativo, Arthur Lira, é alvo direto do Poder Judiciário e indireto do Poder Executivo.

A “coincidência” passa um recado. Dificilmente a ação da PF foi uma retaliação direta, uma vez que Lula precisa e precisará de Lira. Mas é uma demonstração de que o governo do petista também tem cartas para jogar.

O timing sugere que a realização da operação pode ter sido adiada para depois da votação da Medida Provisória da reestruturação dos ministérios. Afinal, se a ação tivesse ocorrido antes da análise, a MP certamente teria ido para o vinagre. Ainda mais que ela veio junto com a decisão de Toffoli de liberar a análise da denúncia ia contra Lira no STF.

Duas fontes palacianas afirmaram à coluna que é “bobagem” e “estupidez” encarar isso como retaliação. Falta, claro, combinar esse entendimento com os russos, ou melhor, com o alagoano.

Na quinta (1º), uma operação da Polícia Federal cumpriu mandados de prisão e de busca e apreensão em uma investigação sobre desvio de dinheiro público da educação para a compra de kits de robótica em um escândalo que envolve aliados de Lira em Alagoas. Um dos mandados é contra Luciano Cavalcanti, um dos auxiliares mais próximos do presidente da Câmara, lotado na liderança do PP.

E, já na noite de quarta-feira (31/05), o ministro Dias Toffoli liberou para julgamento no STF recursos da defesa do presidente da Câmara contra uma denúncia da Procuradoria-Geral da República por corrupção passiva. A PGR mudou de ideia e, agora, pede o arquivamento, mas a Primeira Turma da corte pode dar continuidade ao processo e mantê-lo como réu.

Para ver aprovada a MP que reestruturou os ministérios, evitando que o governo voltasse a ter a cara da gestão Bolsonaro, o presidente da República conseguiu costurar com Lira mudanças na relação entre a Presidência da República e a Câmara dos Deputados. Isso passa por facilitar a liberação de emendas, mudar a articulação política do governo e uma reforma ministerial para acomodar mais o centrão com alguma pasta suculenta.

Até lá, a Câmara não deve passar nenhum projeto de interesse do governo, com exceção daqueles que também são interesse dos deputados ou do mercado financeiro.

Municípios alagoanos com escolas precárias receberam R$ 26 milhões em emendas parlamentares para comprar kits de robótica de uma empresa de aliados de Lira que lucrou 420% com cada unidade. Adquiriu por R$ 2,7 mil, vendeu por R$ 14 mil. A investigação da Folha de S.Paulo, de abril do ano passado, aponta indícios de direcionamento na licitação, dificultando a entrada de concorrentes que poderiam cobrar mais barato.

A PF avalia que possíveis fraudes podem ter gerado prejuízo de R$ 8,1 milhões aos cofres públicos. O pedido para a operação foi feito em março de 2023 e as ordens expedidas pela Justiça Federal de Alagoas. Parte dos recursos para os kits teriam vindo do orçamento secreto, comandado por Lira.

Através do milagre da transmutação, licitações com sobrepreço historicamente se transformaram em lucro fácil para empresários amigos da corte, mas também em cascalho para o bolso dos políticos que tornaram isso possível – que podem usá-lo em coquetéis de camarão ou em financiamento eleitoral.

O caso dos kits não é único. A profusão de denúncias de desvios envolve o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), dirigido na gestão passada por um ex-assessor do então ministro-chefe da Casa Civil e líder do centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Como esquecer a licitação de quatro mil ônibus escolares que, se não fosse por denúncia do jornal O Estado de S.Paulo, teriam feito a alegria de muita gente.

E no caso em curso no STF, Lira pode ter sua situação de réu confirmada na próxima terça (6).

Ao ser flagrado com R$ 106 mil em dinheiro vivo ao tentar embarcar em um avião em 2012, um assessor de Lira disse que a grana pertencia ao chefe. A investigação apontou que o valor seria pagamento por manter Francisco Colombo no cargo de presidente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). Detalhe: réu em processo criminal não pode assumir, como substituto, o cargo de presidente da República.

Toffoli vem buscando uma reaproximação com Lula desde que o petista assumiu o poder. Indicado por ele ao STF, o ministro negou que Lula fosse ao velório do irmão quando estava preso em Curitiba.

Coincidências ocorrem e não são pauta do sobrenatural, mas elas são encaradas com estranhamento em Brasília. Lula gosta de dizer que não interfere na Polícia Federal, nem em outros poderes, como o Judiciário. Resta saber como Arthur Lira e membros do centrão, muitos também com BOs a resolver com a polícia e a Justiça, vão encarar isso.


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