18/05/2024 - Edição 540

Especial

21 MILHÕES DE FAMINTOS

Insegurança alimentar explode e atinge um terço dos brasileiros

Publicado em 14/07/2023 8:51 - Jamil Chade (UOL), Rafael Monteiro (Ecoa), Fábio Corrêa (DW) - Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A insegurança alimentar explodiu de 2020 a 2022 e chegou a 70,3 milhões de brasileiros em situação de falta de acesso considerada como moderada e severa no país. Os dados foram publicados hoje pela FAO, ONU, OMS e Unicef, no documento que serve de referência sobre o estado da alimentação no planeta.

A prevalência de insegurança alimentar severa no Brasil passou de 1,9% da população brasileira entre 2014 e 2016 para 9,9% de 2020 a 2022. Isso significou um salto de 4 milhões para 21 milhões de pessoas no período.

A taxa de insegurança alimentar moderada ou severa no total da população foi ainda maior: passou de 18,3% para 32,8%. Se há quase dez anos o Brasil tinha 37 milhões nessa situação, hoje a insegurança alimentar atinge 70,3 milhões de brasileiros.

O período analisado compreende a fase mais aguda da pandemia de coronavírus, quando cerca de 700 mil brasileiros morreram em decorrência do vírus.

A fome absoluta está em uma taxa melhor hoje que há 20 anos. Entre 2004 e 2006, a taxa de desnutrição entre a população brasileira era de 6,5%. Entre 2020 e 2022, ela foi de 4,7%. Isso significou que a população brasileira nestas condições de fome absoluta passou de 12,1 milhões de pessoas para 10,1 milhões.

A desnutrição infantil também aumentou na última década, passando de 6,3% para 7,2% entre 2012 e 2022. Hoje, a fome atinge 1 milhão de crianças.

48 milhões de brasileiros são incapazes de ter recursos para ter acesso a uma alimentação saudável. Esse número era de 39 milhões de pessoas em 2019.

A informação contrasta com a narrativa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de que a fome não existia no Brasil e ainda revela uma contradição entre um país que exporta toneladas de alimentos ao mundo, sem garantir esse direito pleno para sua população.

Como é feito o questionário

Os dados sobre insegurança alimentar são calculados com base em um questionário aplicado pelo mundo e que tenta medir a capacidade de um ser humano de ter acesso constante aos alimentos. Ele prevê que uma família ou indivíduo seja questionado sobre se, durante os últimos 12 meses, houve algum momento em que, por falta de dinheiro ou outros recursos:

As perguntas:

Você se preocupou com o fato de não ter comida suficiente para comer?

Você não conseguiu comer alimentos saudáveis e nutritivos?

Você comia apenas alguns tipos de alimentos?

Você teve de pular uma refeição?

Você comeu menos do que achava que deveria?

Sua casa ficou sem comida?

Você estava com fome, mas não comeu?

Você ficou sem comer por um dia inteiro?

Fome aumenta em todo o mundo e atinge 735 milhões de pessoas

122 milhões de pessoas a mais passaram fome desde 2019 devido a múltiplas crises, segundo as entidades. Hoje, 735 milhões de pessoas enfrentam fome, em comparação com 613 milhões em 2019.

Aproximadamente 29,6% da população global, o equivalente a 2,4 bilhões de pessoas, não tinham acesso constante a alimentos.

Cerca de 900 milhões de indivíduos enfrentavam insegurança alimentar grave. Enquanto isso, a capacidade das pessoas de ter acesso a dietas saudáveis se deteriorou em todo o mundo: mais de 3,1 bilhões de pessoas no mundo (ou 42%) estavam nessa situação em 2021, um aumento geral de 134 milhões de pessoas em relação a 2019.

Entre os motivos para a crise estão:

– Pandemia

– Repetidos choques climáticos

– Conflitos, incluindo a guerra na Ucrânia.

Ásia, Caribe e África são foco do problema

A fome ainda aumenta na Ásia Ocidental, no Caribe e em todas as sub-regiões da África em 2022, embora os números da fome global tenham estagnado entre 2021 e 2022

A África continua sendo a região mais afetada, com uma em cada cinco pessoas passando fome, mais do que o dobro da média global.

Um progresso na redução da fome foi observado na Ásia e na América Latina.

Se as tendências permanecerem como estão, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de acabar com a fome até 2030 não será alcançado, alertam a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA).

Em 2022, 148 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade (22,3%) apresentavam atraso no crescimento. Houve progresso no aleitamento materno exclusivo, com 48% dos bebês com menos de 6 meses de idade se beneficiando dessa prática, próximo à meta para 2025. Entretanto, serão necessários esforços mais concentrados para atingir as metas de desnutrição de 2030.

“Há raios de esperança, algumas regiões estão no caminho certo para atingir algumas metas de nutrição para 2030. Mas, de modo geral, precisamos de um esforço global intenso e imediato para resgatar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Sem dúvida, atingir a meta do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de Fome Zero até 2030 representa um desafio assustador”, diz António Guterres, secretário-geral da ONU.

Para Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil, o relatório mostra uma tendência que será difícil atingir a meta de acabar com a fome no mundo até 2030.

“Além dos problemas de saúde causados pela pandemia globalmente, o mundo enfrenta dois grandes desafios: a fome e a má nutrição. Um em cada dez pessoas no mundo passa fome. Vemos que o mundo produz alimentos suficiente, mas há um grande problema de distribuição”, disse.

“Contudo, o caso do Brasil é diferente, graças as políticas públicas fortalecidas recentemente e à gigante produção alimentar, estamos certos de que o país irá sair novamente do mapa da fome, sem dúvidas”, completou.

O que diz o Ministério de Desenvolvimento Social

“A missão do governo é garantir que possamos tirar o Brasil do mapa da fome. Todos os ministérios estão trabalhado integrados com estados, municípios e entidades para garantir isso. Em breve será lançado o Plano Brasil Sem Fome, com o objetivo de reduzir a pobreza e a extrema pobreza”, disse o ministro Wellington Dias, do Ministério de Desenvolvimento Social. Segundo o ministro, 18,5 milhões de famílias, sendo 43,5 milhões de brasileiros, já elevaram a renda em 2023 com o novo Bolsa Família.

O que é insegurança alimentar?

Em junho do ano passado, a pesquisa VIGISAN (Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil) mostrou que mais da metade da população brasileira se encontra em situação de insegurança alimentar. O mesmo estudo chocou ainda mais ao apontar que 33,1 milhões de brasileiros estão passando fome em 2022.

Nas redes sociais, o noticiário sobre o Inquérito causou alguma confusão — fazendo muita gente achar, erroneamente, que insegurança alimentar é um eufemismo para a situação dramática da extrema pobreza. Apoiados pelos números obtidos pela Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), explicamos abaixo de onde vem o termo, o que ele significa, e como ele joga luz sobre a situação das pessoas mais vulneráveis no mundo.

Insegurança alimentar não é uma expressão nova — “gourmetizada”, como dito nas redes — para a fome. De acordo com a Oxfam Brasil, a expressão “segurança alimentar” começou a ser usada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) logo após a Segunda Guerra Mundial. Na época, tratava-se de um termo militar. Para um país ser forte internacionalmente, ele precisava ser autossuficiente tanto em armas quanto na capacidade agrícola de abastecer a própria população.

A partir da Conferência Mundial da Alimentação, promovida pela Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), em 1974, a expressão passou a ser usada para explicar o fenômeno social da falta de acesso a comida no mundo, levando em conta todos os problemas de abastecimento, disponibilidade e inflação dos preços dos alimentos.

Atualmente, o quadro de insegurança alimentar diz respeito ao indivíduo que não possui acesso físico, econômico e social a alimentos saudáveis e de qualidade para fazer todas as refeições necessárias. Atualmente, apenas 41,3% dos brasileiros se encontram em situação de segurança alimentar — ou seja, possuem acesso regular e permanente a uma dieta saudável, com mesa farta e geladeira cheia.

Quais são os diferentes tipos de insegurança alimentar?

A insegurança alimentar é medida tradicionalmente no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ela é dividida em três tipos: a leve, a moderada e a grave. Atualmente, 28% dos brasileiros se encontram no quadro de insegurança alimentar leve — um quadro marcado pela troca de alimentos saudáveis por outros prejudiciais à saúde. “Isso acontece, por exemplo, quando a renda de uma família cai e, em vez de comprar linguiça, eles passam a comprar salsicha”, explica Maitê Gauto, gerente de Programas e Incidência da Oxfam Brasil.

A insegurança moderada, por sua vez, atinge 15,2% dos brasileiros e aponta uma situação ainda mais preocupante, quando os alimentos começam a faltar na despensa e membros da família passam a pular algumas refeições por economia. “É o quadro da mãe que deixa de comer para alimentar os filhos. Ou da pessoa que não consegue cozinhar por não ter acesso ao gás de cozinha”, complementa Gaitô.

Por fim, a insegurança alimentar grave aborda a alarmante situação de 15,5% dos brasileiros em 2022. “É a fome. É simples: a pessoa não tem o que comer hoje. Ele precisa sair para a rua para tentar conseguir algo para colocar na barriga”, explica Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania.

A fome está crescendo no Brasil? Pandemia e desmonte das políticas públicas

Para Maitê Gauto, a pandemia do novo coronavírus agravou um problema que já dava todos os sinais de piora nos últimos anos. Ela aponta um desmonte durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), instituída pelo governo Lula em 2010. A política é tida por muitos especialistas, incluindo ela, como uma das responsáveis por tirar o país do “Mapa da Fome” da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014.

“O desmonte começa com a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em 2019 e passa pelo desinvestimento do Programa Nacional de Aquisição de Alimentos (PAA), além do baixo investimento no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Hoje, o governo investe menos de um real em alimentação por aluno”, aponta ela, lembrando das crianças que só conseguem se alimentar na escola.

Kiko Afonso também aponta falhas do governo Bolsonaro no combate à fome. “Você pega a crise de 2008, a maior crise econômica na história do mundo. Quando você olha a curva de segurança alimentar no período, você vê que o Brasil seguiu melhorando, apesar dos problemas financeiros. O que mudou agora com a crise severa causada pelo coronavírus? A grande diferença entre os dois períodos é que o Brasil não tem mais instrumentos que asseguravam a alimentação dos brasileiros”, afirma Kiko Afonso.

“Naquela época, você tinha estoques reguladores de alimentos, que mantinham o preço dos alimentos estável, tinha as políticas de apoio à agricultura familiar, as políticas de alimentação escolar, você tinha a ampliação do Bolsa Família, a política de valorização do salário mínimo. Todo esses fatores minimizaram o impacto da crise do Brasil”, complementa Afonso.

Soberania alimentar: alimentação de qualidade é direito

A alimentação de qualidade e nutritiva é – ou pelo menos deveria ser- um direito assegurado pelas autoridades brasileiras. Em 2006, foi aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, a Losan, que tornou a questão da segurança alimentar e nutricional uma política de Estado. Além disso, a alimentação é considerada um Direito Humano, junto a outros direitos sociais, na Constituição desde 2010.

Com a legislação em mente, especialistas veem com muita preocupação a “PL do Veneno”, projeto que altera a lei 7.802 e aumenta o poder do ministério da Agricultura e diminui a influência da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) no rito de autorização de agrotóxicos.

“A PL do veneno é trágica. Nos últimos três anos, o governo federal aprovou mais agrotóxicos do que nos últimos 20 anos. Foram 1560 novos registros de ingredientes ativos de agrotóxicos no período. 44% desses agrotóxicos estão banidos na Europa. A PL é um desdobramento de uma série de ‘despolíticas’ públicas. A ideia é tirar dos órgãos dos controle, agentes técnicos, a decisão de liberação do agrotóxicos e deixar na mão do ministério da agricultura, um órgão político”, afirma Kiko Afonso.

As mudanças climáticas: um problema sobre outro

As mudanças climáticas, provocadas em boa parte pelo aumento anormal da temperatura média do planeta nas últimas décadas, afetam diretamente os números de insegurança alimentar. “Quando há mais períodos de estiagem ou mesmo de chuva, há um impacto direto na produção do alimento. Tudo isso faz o preço do alimento subir por causa da demanda por comida, que é sempre ativa”, diz Maitê Gauto.

Para Kiko Afonso, a falta de previsibilidade no clima afeta principalmente os pequenos agricultores brasileiros. “Você muda completamente o planejamento de colheita. Aqueles ciclos em que você conseguia prever quando chovia e quando fazia sol estão mudando. Agora a coisa é mais aleatória. Os produtores de alimentos não sabem mais a hora certa de plantar o casamento. E, para piorar, com o aquecimento global, tudo é mais intenso. As chuvas, o frio, o sol. Tudo isso dificulta a situação para o pequeno e médio agricultor, que é o que coloca comida na nossa mesa. O grande agronegócio tem estrutura e equipamento para fazer a previsão de tempo, usa sementes mais resistentes, tem mais água à disposição”, analisa.

A insegurança alimentar no mundo

De acordo com a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), pelo menos 768 milhões de pessoas passaram fome em 2020. A pandemia do novo coronavírus, além de destroçar economias, atrapalhou ainda mais a vida de pessoas de países pobres ou vítimas de conflitos armados.

“Aqui, no Brasil, a produção de alimentos não foi afetada, já que a questão da alimentação foi tida como atividade essencial. No resto do mundo, países muito pobres e países em situação de conflito também sofreram muito com a insegurança alimentar durante a pandemia. É importante notar que não houve cessar-fogo nas guerras por causa da covid-19. Com menos ajuda humanitária no período, a fome cresceu exponencialmente em todo o planeta”, aponta Maitê Gauto.

Para Kiko Afonso, é preciso que o mundo veja a questão do alimento de uma forma mais humana, deixando de lado o viés do mercado. “Um grande problema é que a comida está sendo vista puramente como negócio. Os países deveriam olhar mais a questão estratégica de insegurança alimentar como questão de segurança nacional. Eu não posso olhar para um país como o Brasil, que precisa alimentar 210 milhões de pessoas, sem estratégia para alimentar o próprio povo. A gente por aqui só tem olhado a comida pelo viés econômico da exportação”, finaliza.

Igualdade no campo pode reduzir fome e aumentar PIB

Reduzir a desigualdade entre homens e mulheres no campo poderia aumentar a renda de 58 milhões de pessoas e incrementar o Produto Interno Bruto (PIB) do mundo em 1 trilhão de dólares. No entanto, segundo o relatório O Estado das Mulheres nos Sistemas Agroalimentares, recém-divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e que traz um panorama geral dessa população nos últimos dez anos, as disparidades ainda são grandes.

O estudo da FAO mostra que as mulheres recebem só 0,82 dólar para cada 1 dólar pago aos trabalhadores do gênero masculino nesses sistemas – que englobam toda a produção de alimentos, desde o plantio, passando pelo manuseio e a distribuição.

De acordo com Úrsula Zacarias, ponto focal para gênero da FAO no Brasil, essa situação se agravou na pandemia – 22% das mulheres perderam os empregos, e só 2% dos homens.

Além disso, as mulheres sofrem de maior insegurança alimentar moderada ou grave – que globalmente era 1,7 ponto percentual superior à dos homens em 2019, e a diferença chegou a 4,3 pontos percentuais em 2021.

“Muitas vezes, as mulheres só conseguem um trabalho de meio período porque têm as crianças para cuidar, além de não terem muitas oportunidades de capacitação de acesso à educação, a tecnologias, e isso as afeta drasticamente”, diz Zacarias.

Pelo menos simbolicamente, o papel da mulher na história da humanidade está diretamente ligado à alimentação, tanto no preparo e produção quanto na garantia da comida. Não é uma contradição serem justamente as mulheres as que sofrem de maior insegurança alimentar?

As mulheres sempre trabalharam no campo, nos sistemas alimentares. Só que no decorrer das transformações mundiais, as políticas, programas e até mesmo as tecnologias foram se adaptando para um mundo mais masculino.

Por exemplo, hoje, conseguimos identificar na lavoura tratores e até mesmo as ferramentas utilizadas durante a produção que são mais adequados para o biotipo masculino. As mulheres sempre estiveram no campo, mas sempre foram invisibilizadas.

O trabalho das mulheres sempre esteve ligado às tarefas domésticas, mas isso sempre foi considerado ajuda, nunca algo reconhecido, valorizado e visibilizado como um trabalho formal, que gera renda, assim como o trabalho que os homens exercem.

O que precisa ser feito urgentemente para acabar com essa diferença entre os gêneros nos sistemas agroalimentares?

O empoderamento das mulheres neste momento que o mundo se encontra é fundamental para que se alcance resultados econômicos e sociais. O relatório indica que os benefícios dos projetos que capacitaram mulheres são maiores que aqueles que apenas integram o gênero.

Hoje, mais da metade do financiamento bilateral para agricultura e desenvolvimento agrícola já integra o gênero feminino, mas só 6% desses projetos em vigor tratam a mulher como fundamental [no processo].

Podemos pensar o seguinte: se metade dos produtores de pequena escala se beneficiasse desse tipo de desenvolvimento, isso aumentaria significativamente a renda de mais de 58 milhões de pessoas e aumentaria a resiliência [a crises, como a climática ou a pandemia] de 235 milhões de pessoas.

A FAO estima que eliminar essa diferença de gênero na produtividade agrícola e a diferença salarial que ainda encontramos nos empregos do sistema agroalimentar, isso aumentaria o Produto Interno Bruto (PIB) global em quase 1%, o que corresponde a esse 1 trilhão de dólares.

Com isso, teríamos uma redução global da insegurança alimentar em cerca de mais ou menos 2 pontos percentuais, o que corresponde a 45 milhões de pessoas.

E quais são os obstáculos neste momento para a igualdade de gênero nos sistemas agroalimentares?

Os sistemas agroalimentares são grandes empregadores de mulheres, e uma importante forma de sustento em vários países. Globalmente, 36% das mulheres trabalhadoras estão empregadas em sistemas agroalimentares, principalmente no setor primário. E a força masculina é de 38% de homens.

Apesar dessa aproximação de números, as mulheres tendem a ser marginalizadas, com condições de trabalho que tendem a ser piores.

Há irregularidades, e também o trabalho que é exercido em casa, de cuidadora, o trabalho social que elas desenvolvem, nada disso é computado. Muitas vezes, as mulheres só conseguem um trabalho de meio período porque têm as crianças para cuidar, além de não terem muitas oportunidades de capacitação de acesso à educação, a tecnologias, e isso afeta drasticamente as mulheres do campo.

O estudo também diz que a insegurança alimentar das mulheres aumentou muito na pandemia – inclusive na região da América Latina e Caribe, onde a diferença de insegurança alimentar das mulheres é 11,3 pontos percentuais maior que a dos homens. Quais as causas desse desdobramento?

O relatório mostra que 22% das mulheres fora da agricultura perderam seus empregos no primeiro ano da pandemia, em comparação a 2% dos homens.

Tivemos um aumento da insegurança alimentar, da violência, principalmente contra as mulheres que passaram a ficar mais tempo em casa, que ficaram mais vulneráveis, então todas essas desigualdades atrasam as mulheres em todos os níveis.

Ainda temos a falta de oportunidade de acesso dessas mulheres a políticas públicas, principalmente acesso a crédito e à terra, porque na maior parte dos países ainda existe a cultura de que as terras devem ser nominadas aos homens.

No caso do Brasil, podemos falar que houve mudanças nos últimos dez anos para essa população? 

Houve sim avanços. Alguns países, principalmente na América Latina, se voltaram para o enfrentamento desses desafios, para trabalhar nessas lacunas estruturais. Aqui no Brasil não é diferente.

É um dos poucos países na região que tem um censo agropecuário com um número especifico, e esse trabalho está sendo visibilizado na parceria da FAO com a Embrapa e o Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, chamado de “Observatório das Mulheres Rurais no Brasil”, no qual trabalhamos esses dados para sabermos quais são as lacunas, os direitos que elas não acessam, o que de fato acontece no campo e como é a vida dessas mulheres.

Também temos aqui políticas muito bem-sucedidas, como assistência técnica, extensão rural, crédito mulher-rural. Mas ainda há muito o que se aprimorar para que elas possam estar incluídas nas políticas.

O que a FAO recomenda para os governos, em termos de políticas públicas, para reduzir essa desigualdade de gênero nos sistemas agroalimentares?

A melhoria do acesso dos recursos a crédito e à tecnologia é uma ação que precisa ser tomada o mais rápido possível. É também preciso ampliar as políticas públicas para que as mulheres tenham acesso à terra, para serem as donas de suas propriedades e, assim, gerar renda, empoderamento econômico e melhoria de vida do local.

A questão da igualdade salarial está sendo debatida mundialmente. Grande parte dos países tem uma lei ou colocou isso em sua Constituição. Mas há ações que podem ser intensificadas para que possamos atingir isso a longo prazo.

A FAO acredita que a igualdade salarial é uma das fontes mais essenciais para combater a fome. É uma medida mais que urgente.

Outras ações que resultam em bastante melhoria na vida das mulheres são políticas sociais, como ter mais creches e escolas integrais, para que elas tenham mais oportunidades de trabalhar, para que não fiquem sempre condicionadas ao cuidado das crianças. Se temos creches que recebem programa de alimentação escolar, as crianças são alimentadas e nutridas de uma forma garantida e isso já é um alivio para essas mães.

Por fim, é preciso uma garantia de proteção. Existe muita violência contra as mulheres, o que foi intensificado na pandemia. Essas medidas que asseguram direitos devem ser mais visibilizadas, mais informadas. Precisamos levar informação para o maior número de mulheres e meninas que passam por esse tipo de situação.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *