07/11/2024 - Edição 550

Eles em Nós

Tente não rir

Publicado em 14/10/2020 12:00 - Idelber Avelar

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A fotografia que segue é do relatório da Polícia Federal (via @sanpancher no Twitter) que detalha as diligências para encontrar a grana na bunda do vice-líder do governo Bolsonaro. Foram três revistas (duas feitas pela polícia, uma pelo próprio) para tirar a grana toda.

Leia em voz alta, tentando não rir.

ENTRE AS NÁDEGAS

Chico Rodrigues, vice-líder do governo no Senado, o dos R$30.000 na bunda (ou "entre as nádegas", nesse inexplicável eufemismo jornalístico, considerando que está à disposição a brasileiríssima e mais expressiva palavra "bunda"), é o exemplo perfeito, patente, do que é o sistema político pemedebista, que floresceu no Brasil desde o governo Sarney. Mas cujas raízes se remontam a, sei lá, Pedrálvares.

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1. O agora ex vice-líder de Bolsonaro (renunciou) está no Congresso brasileiro desde: 1991. Foi deputado de 1991 a 2011, vice-governador de Roraima de 2011 a 2014, e é senador desde 2018.

2. Até ser achado com dinheiro na bunda, Chico Rodrigues havia se destacado, nestes 30 anos de vida pública, mais de 20 de parlamento, por: nada. Ninguém sabia quem era ele.

3. Em sua carreira política, Chico Rodrigues foi filiado a:

DEM (2018–)

PSDB (2015–2018)

PSB (2011–2015)

DEM (2007–2011)

PMDB (1988–1999)

4. Por que ele mudou de um partido para o outro em cada caso? Sempre pela conveniência. De 2015 a 2018, por exemplo, ele era tucano, mas viu que os tucanos não capitalizariam a enorme onda antipetista, e mudou-se de volta ao DEM para poder ser bolsonarista mais tranquilamente.

5. O que se mantém constante nessa curiosa figura que já foi sarneyzista, tucano, lulista e bolsonarista?

A pilantragem, o toma lá dá cá, o saqueio do público em benefício privado. É ou não é a cara do sistema político brasileiro? O dinheiro na bunda só acrescenta o toque folclórico.

CAPACHOS

Nem mesmo o capacho mais lambe-botas de toda a história da presidência Trump, o Attorney General (PGR/AGU) Barr, conseguiu encontrar nada para relatar depois de uma longa investigação sobre uma mentira simplesmente inventada da cabeça de Trump, a falácia de que Obama o havia espionado.

A história toda não tinha nem pé nem cabeça, tanto porque Obama jamais arriscaria seu legado em uma coisa dessas (ainda mais para beneficiar Hillary e não a ele próprio) como pelo fato de que…

COISA ASSOMBROSA

Descobri só ontem, sobre meu país, uma coisa assombrosa.

É uma lei. Como, apesar de não ser formado em Direito, não me considero ignorante na matéria, contemplei a bichinha com estupefação, vindicada quando outra pessoa, que entende mais de leis que eu, escreveu em um grupo de Facebook que tampouco a conhecia.

Vocês sabiam que existe uma lei que obriga ALGUMA tevê aberta a transmitir TODOS os jogos da Seleção por competições oficiais?

Não é o suprassumo do suco de Brasil, dessa crença atávica no poder “indutor”, determinante em última instância, salvador e garantidor do Estado? Por lei, ALGUMA TV aberta tem que transmitir. Quantas TVs abertas tem o Brasil? Seis? Sete? Não importa. Alguma, POR LEI, tem que transmitir.

Como vão decidir quem tem que fazer, se ninguém quiser fazer? Isso está disposto no parágrafo único, que é puro suco de Brasil:

“Parágrafo único. As empresas de televisão de comum acordo, ou por rodízio, ou por arbitramento, resolverão como cumprir o disposto neste artigo, caso nenhuma delas se interesse pela transmissão. O órgão competente fará o arbitramento”

Traduzindo: ALGUÉM está obrigado por esta lei a fazer algo. Qual alguém? Qualquer emissora aberta. Se nenhuma quiser fazer, por cara ou coroa, comum acordo ou ordem de um não determinado “órgão competente”, alguém decida aí como obrigar outro alguém a cumprir o disposto na lei.

A íntegra dessa pérola está disponível no blog de Juca Kfouri.

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Essa era a primeira parte do post. A segunda parte segue abaixo.

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Ontem, por determinação do minúsculo, a TV Brasil transmitiu um jogo que quase ninguém queria ver, Peru 2 x 4 Brasil, com o Peru duas vezes à frente no marcador e dois pênaltis daqueles limítrofes para o Brasil.

Durante a transmissão, um cupincha de José Roberto Wright chamado Marcio Guedes, que só não chamo de ex jornalista em atividade porque ele nunca foi jornalista, passou a transmissão inteira lambendo as botas do minúsculo. Ele e o narrador, de cuyo nombre no quiero acordarme.

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Pra quem não ligou os pontinhos: quer cultivar a estadolatria que gera legislações esdrúxulas como as descritas lá em cima? Segure a onda quando a consequência for essa revoltante e lamentável transmissão de Peru x Brasil ontem, feita pela TV Brasil segundo o disposto em lei, duas horas de propaganda fascista com o futebol. Conhecem a fórmula, né?

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Como desleitura na internet é mato, esclareço: não sou contra a existência da TV Brasil. Podemos conversar sobre um modelo de TV pública para um país como o Brasil.

Sou contra esse fetiche ridículo e bacharelesco que inventa obrigações para entidades da sociedade civil, traz o Direito Penal para resolver questões que não deveriam ser penais, dando sempre ao papai Estado a palavra final e a obrigação de aplicar leis incumpríveis.

Obviamente dá merda.

RECOMENDO

"Substâncias, sujeitos, eventos: uma autoetnografia sobre o uso de drogas" é o livro do Mauricio Fiore que sai agora. Ainda não li, mas conheço o trabalho de Mauricio pelo diálogo na Rede Latino-Americana de Saúde Mental.

E, recomendado pelo Luís Fernando Tófoli, é qualidade garantida. Vou encomendar o meu.

AULA DE DIFAMAÇÃO

Se você quiser uma mostra perfeita de como a difamação funciona, basta observar cotidianamente a página de Marina Silva no Facebook. Todas as mentiras já ditas sobre ela – comprovadas mentiras – são repetidas ad infinitum não apenas por bots, fakes e anônimos, mas também por autointitulados ativistas.

A história de que ela “desaparece” e só aparece de quatro em quatro anos é a mais cômica de todas, porque não existe personalidade pública de sua estatura que, ao longo dos últimos trinta anos, tenha aparecido tanto, seja nos cargos que ocupava (senadora, ministra), seja nos espaços da imprensa, quando estes se abrem para ela, seja na sua própria página, sempre comentando assuntos de interesse da pólis – do meio ambiente, das comunidades indígenas, da administração pública.

Além das mentiras de sempre, há as distorções e os insultos, e a ficção de uma “Marina neoliberal” transita entre as duas coisas, na medida em que o termo – depois de uma origem e desenvolvimento inicial em que ele designava algo tangível – passou a funcionar como desqualificação automática de qualquer um(a) que haja levado a sério a obviedade de que o Estado não tem poder infinito de ir gerando riqueza por sua própria conta, só com subsídios, subvenções, impressão de moeda.

Em vez de uma conversa adulta sobre alocação de recursos, sobre conflito distributivo, sobre como crescer reduzindo desiguldade, optou-se com frequência pela distorção/ rótulo/ insulto “neoliberal”, um partícipe importante da avalanche de difamação contra Marina.

Agora, que o bolsonarismo continua o serviço iniciado alhures, retirando o nome de Marina Silva de uma lista de personalidades e atacando-a como alguém que “se declara negra por conveniência”, não posso deixar de declarar mais uma vez: minha solidariedade irrestrita, Marina Silva.

SOCIEDADE BACHARELESCA

Há dois problemas que estão se misturando. E são ambos reveladores.

Há o “pós-doutor”, essa coisa que só existe no Brasil. É preciso que se entenda que em nenhum lugar isso existe: ninguém nunca diz “eu sou pós-doutor”. Isso só acontece entre nós.

E há também o problema da turbinagem de currículo, que existe em outros lugares, mas não do mesmo jeito em que existe no Brasil.

A coluna do Marcos Lisboa, na Folha de sábado, ajuda muito, com uma frase: “pós-doutorado é uma pinguela, não uma condecoração por mérito”. Peço-lhes atenção a essa frase de Marcos, economista com extraordinárias credenciais. Pós-doutorado é: estágio para quem não conseguiu emprego. Será que ninguém no Brasil consegue ler "pós-doutorado" como o que essa palavra significa? "Me deram um estágio porque ninguém quis me contratar"?

Será que o Brasil é o único país do mundo em que não se sabe que "pós-doutor" significa "não consegui emprego"?

****.

Isso não quer dizer, claro, desqualificação de um outro tipo de pós-doutorado, ou seja, aqueles feitos como reconhecimento de anos de trabalho, como o do prof. Rodrigo Cássio Oliveira, que depois de anos construindo a universidade pública brasileira, fez um pós-doutorado na Itália. Depois disso, ele voltou ao Brasil e compartilhou pencas de conhecimento com todo mundo, de graça, na internet.

Isso custa menos do que CINCO por cento do que custava a conta de cada um dos alunos de graduação que o Brasil enviava ao mundo para fazer aula de Cálculo I ou História da Arte I pagando o que ninguém no mundo paga por essas aulas. Essa picaretagem se chamava "Ciências sem Fronteiras".

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Por enquanto, para entender o que é tudo isso, que se entenda, por favor, o seguinte:

Na sociedade bacharelesca que é o Brasil, as pessoas mentem sobre o currículo, o que prejudica aos brasileiros que realmente têm currículo. Prejudica também aos brasileiros que têm currículos, modestos, mas honestos.

*****.

O bolsonarismo se aproveitou dessa mentirada bacharelesca, e por problemas internos à oposição a ele, a picaretagem está sendo usada para fortalecê-lo.

Essa é a miséria a que estamos submetidos no Brasil hoje em dia. O que eu poderia contribuir, como doutor acostumado a ler currículo, é isso.

Seguimos lutando.

INTERCEPT

Não acho tudo o que o Intercept faz excepcional, não, mas ver a jornalista (e atleticana) Cecília Olliveira falando sobre segurança pública e milícias vale a pena demais.

 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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