27/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Universidades dos EUA caem em armadilha vitimista que cultivam

Conservadores usam antissemitismo contra a inédita empatia de jovens com palestinos

Publicado em 18/01/2024 1:02 - Idelber Avelar

Divulgação The Media coo-op

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A Fire (Fundação para os Direitos Individuais na Educação), organização apartidária dos EUA que monitora a liberdade de expressão, possui um banco de dados com milhares de ocorrências e alguns padrões reveladores.

Nas universidades, a vasta maioria das iniciativas de supressão de discurso vêm da esquerda do convidado se têm origem intracampus (alunos de graduação ou pós-graduação e professores). A vasta maioria das iniciativas de supressão de discurso vêm da direita do convidado se têm origem extracampus (administradores, doadores, políticos).

Essa simetria não se aplica ao debate Israel/Palestina, no qual apenas um lado tem tido poder de exercer o cancelamento. O histórico de interdição nesse tema vem, sem dúvidas, do lado pró-Israel: campanhas de assassinato de reputação, negação de “tenure” (estabilidade de professores) em casos de evidente mérito (até a sobreviventes do Holocausto, como Norman Finkelstein), adiamento, realização exclusivamente virtual ou cancelamento de eventos, supressão da publicação de artigos depois de concluída a revisão por pares, perseguição a grupos estudantis, censura a professores em seu exercício de cidadania e, na prática, a quase proibição da veiculação do ponto de vista oposto.

Há dois fatos banais sobre as universidades nos EUA dos quais eu desafiaria qualquer colega a discordar com dados: (1) exercemos ampla liberdade de organização de eventos sobre direitos humanos de aborígenes, curdos, guaranis, uigures, esquimós, ucranianos e russos ou qualquer etnia e eventos sobre direitos humanos na Venezuela, nos EUA, na Síria ou em qualquer país; (2) a única exceção a essa liberdade são e têm sido eventos sobre direitos humanos dos palestinos.

Tente organizar um. Ele não acontecerá ou você pagará um preço altíssimo se, por milagre, acontecer. Caso tenha sobrado algum colega de boa-fé que duvide disso, é só marcar hora e local de um evento virtual aberto ao público e, com prazer, trago as montanhas de evidência empírica.

Qual é a única situação nos EUA em que três acadêmicas, presidentes de universidades de elite, são humilhadas por um braço do Estado, em rede nacional de TV, com perguntas inquisitoriais sobre etnia e política, sem que depois do compreensível colapso nenhuma voz de relevo se levante para defendê-las (ou para defender o que importava, seu depoimento), ao ponto de duas já terem se demitido?

Superficial familiaridade com a política dos EUA é suficiente para saber a resposta. A única situação em que é concebível que fiquem sozinhas depois do massacre acontecerá se a operação inquisidora vier do bloco político pró-Israel. Em nenhum outro interrogatório sobre etnia e política elas apanhariam tão sozinhas.

A acusação que pesava sobre Claudine Gay (Harvard), Liz Magill (Universidade da Pensilvânia) e Sally Kornbluth (MIT) era permitir a proliferação impune de discursos antissemitas em seus campi. Acreditar que essa acusação descrevia a motivação da sessão inquisitória exige ignorar o básico sobre o funcionamento do Congresso e da política dos EUA nas últimas décadas. Troféu Poliana para quem crê que o deputado republicano Joe Wilson (Carolina do Sul) é movido por preocupação com o antissemitismo.

A marcha de neonazistas na Universidade da Virgínia, em 2017, com tochas, violência física, três mortes e gritos de “os judeus não nos substituirão”, não mereceu investigação do Congresso.

Não passaria pela cabeça dos congressistas convocar Elon Musk, dono da plataforma X, que endossou uma publicação retirada dos Protocolos dos Sábios de Sião sobre como “comunidades judaicas têm promovido ódio contra brancos” com “hordas de minorias” para substituí-los.

Apesar da monstruosidade antissemita que espantou anunciantes, Musk não passará pela inquisição no Congresso, já que visitou Israel, abraçou Netanyahu e prometeu que a expressão “do rio ao mar, a Palestina será livre” será tratada como discurso genocida no X. O recado é claro: você pode ser antissemita o quanto quiser, contanto que apoie Israel no massacre do povo palestino.

Nas dolorosas cinco horas de depoimento ao Congresso, as universidades teriam sido, então, vítimas inocentes? Vítimas, sim. Inocentes, não, embora sua culpa não seja aquela que lhe era ali atribuída.

Na interação mais reprisada, se perguntou se o chamado ao genocídio de judeus constituiria uma violação das normas de Harvard. Por mais que se possa pensar que a resposta é simples, o jogo era complicado, e é aqui que o estupendo João Pereira Coutinho se equivoca. A pergunta não foi se tais chamados são “aceitáveis”. Essa é fácil. A pergunta era se violam as normas da universidade, se são puníveis, o que é coisa bem distinta.

Havia uma resposta pragmática, que exigia a coragem de confrontar a premissa. Havia uma resposta segura, mas falsa. Havia a resposta tecnicamente verdadeira, escolhida por elas. A derrota e a vitória (ou a sobrevivência) não se resolviam ali pela verdade, no entanto, mas por outro jogo discursivo, cujas regras elas não controlavam.

A resposta simples e falsa seria dizer que sim, o chamado ao genocídio de judeus é uma violação das normas. Mas qualquer um que tenha familiaridade com a primeira emenda e sua jurisprudência sabe que estão protegidos os enunciados genéricos (mesmo os racistas) com chamados a violência hipotética, não iminente e não direcionada a um indivíduo.

Como instituições privadas, Harvard, MIT e Penn não estão obrigadas a se pautar pela primeira emenda, claro, mas não se conhece universidade desse nível que não tenha declarado adesão a ela. Nunca uma universidade que se preze nos EUA declarou que sua compreensão da liberdade de expressão é mais restrita que a da primeira emenda.

A resposta escolhida, correta mas politicamente desastrosa, foi “depende do contexto”. Um discurso violaria as regras se transformado em conduta, em ação direcionada contra indivíduos: pense, por exemplo, em uma turba seguindo um jovem de minoria étnica pelo campus. Aí já não pode.

Não é difícil entender, mas quando inquisidores lhe perguntam sim ou não, em um espetáculo que produzirá clipes de trinta segundos, “depende do contexto” é a pior resposta. Entupidas de recomendações previamente formuladas por advogados, elas foram presas fáceis da armadilha.

Qual seria a resposta pragmática? Seria ter a coragem de dizer que chamados ao genocídio de judeus não têm sido parte do cotidiano dos campi universitários nos EUA e que, se e quando acontecessem, poderiam ser punidos. Não deveriam, se você for partidário de uma leitura ampla da primeira emenda, mas ninguém ali as arrastaria para esse debate.

Isso também exigiria dizer que o que preocupava aqueles congressistas não era o antissemitismo. O que os preocupa é a explosão de ativismo pelos direitos humanos dos palestinos entre as novas gerações. Esse é o busílis.

Em um Congresso no qual o grupo de pressão mais temido é o Aipac (Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel), com um histórico de destruição das carreiras de quem ousou criticar Israel, explicar que cânticos pela libertação da Palestina não são antissemitas exigiria um pouco de coragem.

No vocabulário usado pelos congressistas no interrogatório, abundam os termos retirados da cultura vitimista dos campi: “doloroso”, “traumático”, “minorias”, “identidade”, “acossados”, “assediados”, “abusivo”, “desconfortáveis”, “vitimados”. As acadêmicas se viram do outro lado do discurso que elas tanto cultivaram durante anos. A inversão que criava a armadilha e a ironia que a acompanhava eram claríssimas para qualquer um que conheça o contexto.

Depois de anos cancelando conferências, desconvidando palestrantes, perseguindo pesquisadores indesejáveis e suprimindo discursos com o argumento de que eles podem ofender, disparar gatilhos ou veicular visões fóbicas a alguém, ficou difícil sustentar que todo discurso é livre justamente na hora do antissemitismo.

Recorrendo à vítima perfeita, o povo que sofreu o maior genocídio do século 20, os conservadores tinham a faca e o queijo na mão para expor a cultura vitimista dos campi com sua própria linguagem. E quem vai dizer que judeus não são vítimas?

Se o jogo de difamar críticos de Israel com a acusação de antissemitismo é antigo, o que mudou? O dado novo é o aumento considerável da empatia dos jovens ante a dor palestina, coisa inédita nos EUA e bastante difícil de se confundir com antissemitismo com um mínimo de honestidade intelectual. Na verdade, um em cada três judeus americanos com menos de 40 anos considera que Israel está cometendo um genocídio contra os palestinos.

Junto a isso, há também a revolta contra uma cultura universitária para a qual a liberdade de expressão sempre comporta exceções, desde que o cerceado se encontre do outro lado do espectro político e que o cerceador consiga acumular suficiente capital para a carreira de vítima no bingo das identidades.

Foi a confluência dessas forças que permitiu que presidentes de universidades top fossem jantadas por deputadas de alfabetização visivelmente incompleta. A acusação de antissemitismo foi mobilizada como arma por gente que está pouco preocupada com ele, porque os palestinos são os que podem ser rifados sem custo político. A direita também sabe que, hoje, o estatuto de vítima, mesmo que imaginário, é sempre capitalizável.

Tome-se a declaração de Michael Kahana, professor da Universidade da Pensilvânia, em uma visita de solidariedade a Israel: “Foi profundamente doloroso que, depois de 7 de outubro, muitos de meus colegas tenham achado perfeitamente adequado criticar Israel”.

A visita aconteceu no início deste ano, depois de os palestinos suportarem meses de bombardeios, dezenas de milhares de mortes, a destruição da infraestrutura de Gaza, o maior êxodo populacional desde 1948 e a falta de água, eletricidade, combustível e comida. No entanto, para o professor de Penn, o que é “profundamente doloroso” é que colegas seus critiquem as ações militares de um país estrangeiro.

A ironia no interrogatório de 5 de dezembro é que havia, sim, um genocídio em curso enquanto os deputados perguntavam se chamados ao genocídio de judeus violavam as normas. Segundo o conceito de genocídio (sim, no direito internacional só existe um), são as ações de Israel contra o povo palestino que podem ser caracterizadas como genocidas. Porém, naquele jogo discursivo que se travava no Congresso, o lugar da vítima já estava ocupado.

Foi dessa retórica vitimista que se serviu a classe política para fulminar as universidades que a cultivam há tanto tempo. As universidades foram expostas, pegas de calças na mão, gaguejando para responder, já que uma resposta contundente e real exigiria uma revisão de sua própria cultura.

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Idelber Avelar


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