08/05/2024 - Edição 540

True Colors

Política de extrema direita elege trans como o alvo dos primeiros 100 dias

“Graças ao Bolsonaro, viados como você vão morrer”: cidadão de bem ameaça família e é condenado por homofobia

Publicado em 11/04/2023 1:26 - Leonardo Sakamoto (UOL), Vinicius Segalla (DCM) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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Não foi apenas o retorno de Lula ao poder que marcou mudanças na política brasileira nestes 100 primeiros dias de 2023. O país que mais matou transexuais entre 2008 e 2022 segundo a plataforma Trans Murder Monitoring, tem pela primeira vez duas representantes desse grupo como deputadas em seu parlamento nacional.

A ativista Erika Hilton (PSOL-SP) que já ocupava o cargo de vereadora, tendo presidido a primeira comissão parlamentar de investigação sobre a transfobia na maior cidade do país, foi eleita ao receber 256.903 votos. Hilton foi a nona mais votada no estado.

Já a professora de literatura Duda Salabert (PDT-MG), que já havia sido a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, tornou-se deputada após receber 208.332 votos. Ela foi a terceira mais votada do estado.

Ambas estão enfrentando o desafio não apenas de combater a violência e garantir cidadania a essa população, mas atuar contra o machismo do próprio Congresso brasileiro.

A reação a essa conquista foi rápida. No Dia Internacional das Mulheres, celebrado no 8 de março, Nikolas Ferreira (PL-MG) subiu ao púlpito do plenário da Câmara dos Deputados, usando uma peruca loira, denominando-se como “Nicole” e atacando os direitos da população trans.

Com isso, inaugurou uma série de manifestações contra esse grupo por parlamentares da extrema direita – e não apenas no Congresso. Na última terça (4), a vereadora Flávia Borja (PP) de Belo Horizonte disse, em discurso, que pessoas trans “não são bem-vindas” à capital mineira.

E não foi à toa. O tema dos direitos da população trans é instrumentalizado por determinados políticos como uma ameaça ao seu eleitorado ultraconservador. Quanto mais atacam, mais conseguem likes e compartilhamentos desse grupo, garantido sua “reputação” e, dessa forma, reeleição.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans

“Acho que é muito importante o país do mundo que mais mata pessoas trans e travestis, e mata da forma mais covarde e cruel, ter eleito representantes que possam escancarar essa realidade. E transformar de forma pedagógica, através das políticas públicas, a mentalidade do povo a partir da nossa atuação”, afirmou Hilton à coluna.

Para a deputada, a imagem e a presença de ambas também representam uma quebra de um silêncio, de um anonimato imposto aos corpos LGBTQIA+, em especial aos corpos de pessoas trans e travestis, no Congresso.

“Se moramos no país que mais mata pessoas trans no planeta, um país em que 90% desse grupo está na prostituição, e que não tem acesso à educação (em Belo Horizonte, 91% não concluíram a educação básica), significa que nós nunca fomos pauta da direita, da esquerda, do centro. Esse ineditismo de ter pessoas trans no Congresso pode dar visibilidade a uma realidade aviltante que foi historicamente apagada”, complementa Salabert.

Entre os desafios que estão à frente de ambas, ela elenca quatro ações urgentes.

Uma política de empregabilidade para que pessoas trans e travestis não precisem recorrer à prostituição, um projeto de moradia (cita uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais que aponta que 6% desse grupo foi expulso de casa com menos de 13 anos em Belo Horizonte), um projeto de segurança pública e um debate profundo sobre gênero em sala de aula, para aumentar a consciência para o respeito à diversidade.

“Mas, antes de tudo isso, vale lembrar que nós, pessoas travestis e transexuais, ainda não conquistamos a categoria de humanidade. Se você perguntar qual é a maior pauta do movimento trans no Brasil, hoje eles dirão que é o respeito ao nome, à identidade, ao acesso ao banheiro”, explica Duda Salabert.

Focando na questão da segurança, Erika Hilton defende que é necessário criar estruturas de acolhimento para proteger a vida desse grupo, com espaços em delegacias e profissionais treinados para a escuta e a fim de atender bem essas ocorrências.

Diante da inação do Congresso, a Suprema Corte considerou, em fevereiro de 2019, que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero é crime. Ou seja, atos de ódio cometidos contra esse grupo passaram a prever prisão de um a cinco anos.

“A criminalização da LGBTfobia tem que ser institucionalizada e precisamos ter punições mais severas e rigorosas. Mas não basta apenas punir e tratar com rigor a violência, é preciso transformar a visão da sociedade e incluir as pessoas trans e travestis, para que todos convivam em harmonia. E, a partir disso, a violência possa ser combatida na sua raiz mais profunda”, avalia Hilton.

“Esse é um processo de médio e longo prazo. No curto prazo, se tivermos o Congresso Nacional reconhecendo que o Brasil é um país calcado pelo ódio contra pessoas trans e travestis, nós teremos dado um primeiro grande passo, conclui.

Fascistas

No dia 25 de agosto de 2019, o Brasil assistiu a uma série de atos em favor do então presidente Jair Bolsonaro (à época, filiado ao PSL), em pelo menos 46 cidades do país.

Os atos eram também em defesa do então ministro da Justiça, Sergio Moro (União-PR), do então procurador do Ministério Público Federal do Paraná Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e da Operação Lava-Jato, então encampada pelos políticos citados, quando ainda não haviam entrado para a política.

Ao mesmo tempo, eram contra o STF (Supremo Tribunal Federal) – acusado de ser parcial em suas decisões – e contra a Lei 13.869/2019, conhecida como Lei contra o Abuso de Autoridade, então recém-aprovada no Congresso Nacional, quando ainda poderia ser vetada pelo presidente (Bolsonaro não vetou, e a lei entrou em vigor 11 dias após os atos).

Os ânimos bolsonaristas andavam exaltados naquela oportunidade, sua visão era a de que a referida norma era peça de uma estratégia comunista – em conluio com o STF – para minar o então ministro da Justiça e ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro, bem como os procuradores do MPF-PR, punindo-os por supostos abusos que jamais teriam cometido.

Houve confusão e atos de violência registrados em algumas cidades. Na manifestação no Rio de Janeiro, por exemplo, o humorista Marcelo Madureira teve que sair escoltado pela Polícia Militar. O então bolsonarista havia criticado, do alto do carro de som, o fato de a base governista ter votado a favor da controversa lei. Após ter fugido dali, já em segurança, ele disse:

“Não tenho medo de vaias. Votei no Bolsonaro e vou criticar todas as vezes que for necessário. Como justificar uma aliança do Jair Bolsonaro com o Gilmar Mendes para acabar com a Operação Lava Jato? É isso que está acontecendo”.

Já no município paulista de 16 mil habitantes de Pirapora do Bom Jesus, no extremo oeste da Grande São Paulo, não houve manifestações computadas pela imprensa ou pela Polícia Militar. Isso não impediu que o cidadão de bem Erick Pereira Batista e seus amigos de luta fizessem o seu ato particular.

Já cedo chegaram em um bar na rua Júlio Labriola, nº 12, devidamente uniformizados de patriotas da CBF e gritando bastante “Viva Bolsonaro”, conforme outros frequentadores do bar e gente passando na rua pôde testemunhar, posteriormente.

As manifestações foram acabando ao longo da tarde, mas, no bar de Pirapora,  Erick e seus amigos foram ficando, e foram ficando mais bêbados.

Por volta das 17h20, o bolsonarista viu uma família passando na rua. Eram dois irmãos a voltar do supermercado junto com sua tia, ele os conhecia. Seus nomes não serão divulgados.

Eles moram em uma casa a cerca de 90 metros da residência de Erick, eram vizinhos há anos. Erick nunca gostou de um dos irmãos. O motivo: ele é gay, e Erick é um cidadão de bem, conservador e defensor de Deus, da pátria e da família.

Ele decidiu, então, sair do bar em que estava, ainda com a cerveja na mão, e caminhar por 150 metros, sob o olhar das testemunhas, ofendendo ao seu vizinho gay.

De fato, na sentença da Ação Penal 1501153-95.2019.8.26.0529, da Vara Criminal do Foro da Comarca de Santana do Parnaíba, assim está narrada a conduta de Erick, com destaques incluídos pela reportagem do DCM:

“Na data dos fatos, a vítima estava com a tia e o irmão. Retornavam para a residência, quando Erick Pereira Batista deixou um bar e perseguiu a vítima, festejando a vitória de Bolsonaro e sugerindo que isto levaria os homossexuais à morte

(…)

O acusado avistou a vítima na via pública e, ao se aproximar, proferiu os seguintes dizeres: ‘Graças ao Bolsonaro, viados como você vão todos morrer’. Em seguida, o denunciado arremessou uma lata de cerveja contra a vítima.

(…) 

O acusado disse a ele que, se passasse por ali de novo, atearia fogo.”

A perseguição e as ofensas só pararam quando a família chegou em casa, e a mãe da vítima foi correndo ao encontro de Erick, gritando pelo amor de Deus que o cidadão de bem parasse com aquilo.

Já o rapaz ofendido, ao invés de nunca mais passar por ali para não correr o risco de ser incendiado, foi à Polícia, onde lavrou Boletim de Ocorrência pelos crimes de homofobia, ameaça e injúria qualificada.

A polícia investigou e enviou relatório final ao Ministério Público apontando o bolsonarista como culpado pelos crimes citados. Os promotores ofertaram denúncia, e a Justiça condenou Erick Pereira Batista, no dia 27 de fevereiro deste ano, a um ano e quatro meses de prisão em regime aberto, mais multa.

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Equipe Semana On

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