12/05/2024 - Edição 540

Conexão Brasília

O Conto da Aia e a mortalidade materna

Nenhum país no mundo matou mais mulheres grávidas na pandemia que o Brasil

Publicado em 05/06/2023 10:50 - Rafael Paredes

Divulgação

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“O Conto da Aia” é uma excepcional série distópica baseada na obra de Margaret Atwood de 1985. A produção original da distribuidora streaming Hulu estreou em 2017 e conta a história de mulheres que são usadas como reprodutoras em uma parte dos Estados Unidos, a “agora” República de Gileade, que teria sofrido uma revolução conservadora cristã. Nesse futuro nem tão distante assim, uma crise de infertilidade supostamente entre as mulheres e outras crises sociais e econômicas teriam construído um cenário propício para que um grupo conservador cristão tomasse o poder, fundasse um novo país e implantasse leis rígidas com base bíblica.

Para o problema específico da fertilidade, os comandantes dessa revolução criaram a figura da Aia, ou seja, mulheres ainda férteis que serviriam de reprodutoras nas casas dos comandantes e suas esposas inférteis. As Aias eram apartadas de suas famílias e eram violentadas em cerimônias religiosas alicerçadas em uma interpretação extremista de Gênesis 30, 1-3: “Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, se não morro. E ela disse: Eis aqui minha serva Bila; coabita com ela, para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela”.

A série mostra com clareza quem seriam os mais violentados caso algo do tipo acontecesse: gays, chamados de traidores de gênero; e as mulheres, colocadas em total submissão com o único papel de procriar. A mulher na série é retratada como apenas o invólucro do herdeiro. A produção é especialmente perturbadora porque mostra que esse futuro distópico é logo ali na esquina e que conceitos que embasam tantas atrocidades são defendidos hoje em alguns segmentos religiosos.

Quase 70% das mulheres grávidas que morreram na pandemia eram brasileiras. Em nenhum país do mundo morreram mais mulheres grávidas em decorrências do COVID-19, que no Brasil. Todos os países registraram aumento na moralidade materna entre 2021 e 2022, mas nada comparado ao aumento de 40% do Brasil. Há na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial que está debatendo o assunto. Nessa investigação, alguns dados chamam a atenção. Por exemplo: nos Estados, quanto menor a cobertura de vacinação de mulheres grávidas, maior o crescimento da mortalidade materna. O Estados de Santa Catarina, que sempre foi modelo a ser seguido no passado no que se refere a atenção em saúde de suas futuras mamães, figura entre as Unidades da Federação com maior crescimento da mortalidade materna.

Além da vacinação, outro fator pode explicar porque 12 mil crianças ficaram órfãs de mãe no período: o objetivo de priorizar a vida do bebê em detrimento da mãe. No período da pandemia começou-se a ser adotados protocolos para a indução do parto em mulheres contaminadas com o novo coronavírus em detrimento do tratamento e estabilização da saúde da mulher. Foi a lógica da mulher como apenas invólucro do herdeiro mais um dos motivos para a morte de oito grávidas por dia no Brasil e mais de três mil em um ano. As grávidas eram tratadas exclusivamente como grávidas com COVID e não como uma vida tão importante quanto qualquer outra.

Ainda não estamos no futuro distópico de “O Conto da Aia”, mas seus alicerces estruturais já estão prontos.

Escrevo esse texto depois de ver uma senhora na rua com uma camiseta preta com a foto do ex-presidente Jair Bolsonaro e com a frase abaixo da foto: “exterminador de vagabundas”.

Abençoado fruto. Que o senhor possa abrir.

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Rafael Paredes


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