08/05/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Jorge Amado, os evangelhos e o catenaccio

Idelber Avelar dá a sua contribuição ao conhecimento de causos do futebol

Publicado em 07/08/2023 10:42 - Idelber Avelar

Divulgação Reprodução

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Aí vai a minha contribuição deste fim de semana ao conhecimento de causos do futebol para a eventual mesa de bar de vocês. Uma das histórias que mais me fascina — e que creio ser precursora das fanfics de redes sociais — é o relato de Gipo Viani sobre o nascimento do catenaccio.

O catenaccio (em italiano: ferrolho, cadeado, tranca) é um dos esquemas táticos mais ilustres de todos os tempos e, como quase todas as invenções importantes da história do futebol, tem vários pais.

Gipo Viani, técnico da Salernitana no final dos anos 1940, é um deles. Helenio Herrera, argentino que dirigiu a Internazionale de Milan, é outro, e é considerado o pai principal, o que teve mais sucesso com o filho catenaccio: três scudetti e o bicampeonato da Europa e do mundial interclubes nos anos 1960.

É no catenaccio que surge a figura do líbero: o jogador que fica atrás de todo mundo e não marca ninguém, “varrendo”, como dizemos em inglês (líbero é “sweeper”) as sobras, as cagadas, os erros da última linha de zagueiros, que nesse esquema são três.

O catenaccio surgiu quando o futebol era dominado pelo WM, ou seja, um esquema com o formato de 3-2-2-3. Três zagueiros, dois médios, dois atacantes recuados pelo meio (ou “meia-armadores”, como se chamariam depois), um ponta de cada lado e um centroavante. Claro que, se são 11×11, e você designa um dos seus para ficar na sobra e não marcar ninguém, em algum lugar do campo haverá também um adversário a mais.

A versão de Gipo Viani do catenaccio, conhecida como vianema, resolve esse problema trasladando esse +1 do adversário para a última linha deles, a de zagueiros, ao recuar o próprio centroavante até a linha em que atua o centroavante adversário, marcando-o. Ou seja, ele transforma o 9 em um 5 que marca o 9 adversário. No catenaccio, o meu 9 marca o seu 9, como se fosse um 5. E o cabra que era o meu 5 recua e vai jogar de líbero.

O esquema está ilustrado no jpeg que acompanha o post (fonte nos comentários).

Quem já viu esse esquema bem executado (há bastante vídeos da Inter dos anos 60), ou quem já jogou contra equipes italianas armadas assim, sabe que isso pode ser enlouquecedor para o adversário: em qualquer lugar do campo em que você pegue a bola, haverá um italiano fungando no seu cangote (a marcação no catenaccio é sempre homem-a-homem) e, se for em uma faixa avançada do campo, haverá também um italiano na sobra, ultra treinado em dar o bote e varrer a bola.

90 minutos disso te carcomem o espírito, e você vai fraquejando até que, em algum momento, eles encaixam o contra-ataque e ganham de 1 x 0: Italian calcio, ladies and gentlemen.

*****

Pois bem, o primeiro inventor dessa bagaça, não o mais importante, mas o primeiro, Gino Viali, conta que ele a concebeu passeando na costa mediterrânea da Itália, no cais do Mar Tirreno, como em um romance de Jorge Amado, e pensando, matutando sobre como poderia parar de vazar tantos gols.

Nesse momento ele observava a coleta dos peixes nas redes dos pescadores, e via que a avalanche ocasional de peixes não podia ser contida apenas por uma rede. Sabedores disso, os pescadores mantinham uma rede extra por trás, uma rede de reserva. Alguns peixes passavam pela primeira, mas eram pegos pela segunda.

Segundo Viani, foi nessa cena mezzo bíblica, mezzo Jorge Amado (que naquele momento já estava traduzido ao italiano, viu?) que ele concebeu a figura do líbero, que causaria terror em times adversários pelos 40 anos seguintes. Foi seu momento Eureka.

Sempre achei esse relato um precursor da fanfic, mas que ele seja falso não importa: independente de se Viani o inventou ou floreou, ele é mais um capítulo da história de inovações no futebol que foram inspiradas na sabedoria popular.

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Idelber Avelar


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