20/05/2024 - Edição 540

Ágora Digital

A banalidade do mal com os dias contados

O jornalista Victor Barone resume a semana política

Publicado em 16/09/2022 2:14 - Victor Barone

Divulgação

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Há muita gente que tem reservas severas a Jair Bolsonaro, mas que ainda não entendeu a natureza do que está em curso e os riscos que corremos como sociedade. A atitude do empresário do ramo agropecuário Cassio Joel Cenali, que humilhou uma senhora quando entregava cestas básicas em um bairro popular da cidade (leia mais abaixo) foi dirigida a outros que pensam como ele – a tal “gente de bem”.

Na semana passada, veio a público um outro vídeo, em que a empresária Roseli Vitória Martelli D’Agostini Lins – da empresa baiana Imbuia Agropecuária LTDA, que produz soja no município de Luís Eduardo Magalhães – recomenda a seus pares que demitam sem dó trabalhadores que votem em Lula. Será que essa gente julga que pode estar a fazer algo errado? A resposta é “não”. E isso é o pior. Porque estamos mesmo diante da banalização da maldade — ou, se quiserem, na expressão de Hannah Arendt, da “banalização do mal”.

Querem saber? A tal empresária ignora o que é uma República em que os trabalhadores são “sujeitos” — e, pois, portadores de direitos. Venderam sua força de trabalho, não sua cidadania. Que coisa!!! Não podendo mais possuí-los, situação em que fariam obrigatoriamente a sua vontade, então ela troca a posse pela sujeição voluntária. Acha que o patrão pode, ao comprar a mão de obra, expropriar os trabalhadores da sua vontade.

Talvez o tal Cássio consiga até colocar um tantinho de amor genuíno pelos desvalidos quando faz as tais marmitas. Desde, é claro, que estes não decidam dissentir das opiniões do doador generoso. Ele até entende as agruras por que passa um necessitado. Ele só não pode conviver com o fato de que tenham vontade própria.

É evidente que há, nos dois casos, reminiscências da escravidão, a que não falta nem mesmo a atualização simbólica do chicote. Não podendo mandar trabalhadores que votam em Lula para o tronco, então que vão para o olho da rua. Na impossibilidade de se impingir um castigo físico à necessitada rebelde, então que se a puna com a fome.

E, nos dois casos, ambos falam aos de sua estirpe em redes sociais ou aplicativos de conversa, espalhando a sua pestilência moral.

BANALIDADE DO MAL

Hannah Arendt usa a expressão “banalidade do mal” apenas duas vezes no livro “Eichmann em Jerusalém”. Uma dela está justamente no subtítulo — “Um relato sobre a banalidade do mal” — e outra no trecho em que comenta o momento em que se concedem as últimas palavras ao assassino em massa, condenado à morte, e ele se expressa com parolagem de baixa retórica, até com certa animação, fugindo um pouco de seu tom quase sempre de burocrata do genocídio. E ela anota: “Foi como se, naqueles minutos, estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou — a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos.”

Não se deve entender a “banalidade do mal” como, se me permitem o neologismo, a “corriqueirização do mal”. O sentido parece ser outro, dada a caracterização que ela faz de Eichmann — e que gera controvérsias porque há quem discorde da autora. Ainda que ela estivesse errada sobre ele, não errou no que me parece um achado psicológico e sociológico da maior importância.

Arendt trata Eichmann como um homem medíocre, de pensamentos limitados, disposto a obedecer, por mais pavorosas que fossem as ordens. E, talvez, pode-se especular, aquela fosse a condição da esmagadora maioria do povo alemão durante o nazismo. Quantos eram realmente os fanáticos como o próprio Hitler ou Goebbels, que resolveu “salvar” os filhos matando-os?

A banalidade, como resta claro no que ela própria escreveu, está na ausência de pensamento, de reflexão, de sentido moral. Leitoras, leitores, vamos ver: sabem aquela pessoa da família por quem você tem afeto e que passa a falar coisa absurdas, indecorosas, antiéticas, imorais, brutais mesmo? Em outras circunstâncias, fora da política, ela até pode ser boa e caridosa. Na vida familiar, mostra-se prestativa e afetuosa. Mas transferiu a Bolsonaro a competência para definir os inimigos da pátria e o modo como tratá-los. Ele ofereceu a ela um mundo que faz sentido, por mais estúpido que seja.

O bolsonarismo, como expressão de um entendimento da política, é ocorrência muito mais perigosa do que parece. É claro que encarna interesses econômicos que podem ser mapeados. Milhões de pessoas acreditam hoje que estão mesmo certas as coisas estúpidas que Bolsonaro diz sobre saúde, educação, pobreza, religião, segurança pública e armas, para ficar em alguns temas. A propósito: os tais CACs já foram capturados pelo crime organizado. Mas aquele seu tio continua a acreditar que a pistola na cintura é só uma questão de autodefesa e que “povo armado jamais será escravizado”… Será! Pelas milícias e pelo narcotráfico.

São ideias truculentas, impiedosas, discriminatórias e que matam. E estão banalizadas na boca das chamadas “pessoas de bem”. E a história é rica em exemplos de cidadãos de bem que condescenderam até com crimes contra a humanidade.

Por Reinaldo Azevedo

O MAL EM VALE DO RIBEIRA

A rede de entidades de solidariedade que atua em Itapeva, cidade do Vale do Ribeira ao sul do estado de São Paulo, entrou em contato com a senhora Ilza Ramos Rodrigues depois que ela foi humilhada no último dia 10 por um bolsonarista que entregava cestas básicas em um bairro popular da cidade. No momento da entrega da cesta básica, o empresário do ramo agropecuário Cassio Joel Cenali gravou em seu celular diálogo com a senhora, em que pergunta em quem ela vai votar. E em seguida viralizou as imagens nas redes sociais.

“Nessa campanha de Bolsonaro, a senhora é Bolsonaro ou Lula?”, indagou o empresário. A senhora com muita simplicidade responde: “Eu sou Lula”. O bolsonarista então inicia a humilhação. “Lula? Então tá bom aqui ó: ela é Lula. A partir de hoje não tem mais marmita”, diz o homem para espanto da mulher. “A partir de hoje é a última marmita que vem aqui. A senhora pede para o Lula agora. Está bom? É a última marmita que vem para a senhora”, diz. Estarrecida e constrangida a mulher indaga: “É verdade?”. “Verdade, sério. Tá bom, gente. Aqui não vem mais marmita”, emenda o bolsonarista que filmou a cena humilhante.

A identidade do empresário foi divulgada pelo perfil Anonymous, no Twitter. Uma rápida consulta no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) mostra que ele responde a processos por não pagamentos de IPTU e com decisão sobre “cumprimento de sentença cheque”.

O ex-ministro da Saúde e deputado federal Alexandre Padilha gravou vídeo para dizer que as entidades de assistência da cidade acolheram a senhora. “Nós já sabemos onde está essa mulher, já estamos acolhendo e mantendo contato na cidade de Itapeva. Temos um trabalho muito próximo com o pessoal da Cáritas, entidade sociais, e o trabalho de solidariedade que foi montando durante a pandemia, com a turma do MST que fica na região de Itapeva, e essa rede vai apoiar e acolher essa senhora. Pode ter certeza disso”, afirmou Padilha. Integrantes do MST levaram para Ilza Ramos Rodrigues uma cesta básica com alimentos saudáveis, e também garantiram para ela o fornecimento de cesta básica pelos próximos seis meses.

Lula também saiu em defesa de Ilza nas redes sociais: “A fome é culpa da falta de compromisso de quem governa o país. Negar ajuda para alguém que passa dificuldades por divergência política é falta de humanidade. Minha solidariedade com essa senhora e sua família. O Brasil vai voltar a ter dias melhores”.

O empresário apoiador de Bolsonaro gravou nas redes sociais um vídeo pedindo desculpas e se dizendo muito arrependido. “Estou aqui para pedir desculpa pela infelicidade de ter feito esse vídeo. Estou muito arrependido”, disse.

OS CANIBAIS DE BOLSONARO

Quando tudo parecia monótono numa eleição em que as pesquisas eleitorais ocupam o centro do palco, transformando candidatos em coadjuvantes, o eleitor brasileiro ganhou de presente um espetáculo novo. É tragicamente divertido observar as acrobacias que a campanha de Bolsonaro e seus puxadinhos fazem para simular que não têm nada a ver com Douglas Garcia, o bolsonarista que insultou e injuriou a jornalista Vera Magalhães. A duas semanas da eleição, o bolsonarismo se voltou contra Bolsonaro.

A fome com que Eduardo Bolsonaro veio à boca do palco para mastigar o agressor da jornalista revela que o bolsonarismo também possui sua vertente canibal. Até ontem, Douglas era o braço do arcaísmo tosco da família Bolsonaro em São Paulo. Agora, nas palavras do Zero Três, busca “os holofotes e a autopromoção” sem se dar conta de que traz “prejuízos a todo um grupo político”.

Eduardo Bolsonaro, que há cinco meses debochava em público da tortura imposta pela ditadura militar à jornalista Miriam Leitão, está se lixando para a agressão cometida contra Vera Magalhães. Um ataque em que o agressor repetiu insulto que o próprio Bolsonaro dirigiu a Vera no debate presidencial. O que inquieta o filho do monarca e o staff da campanha à reeleição é a percepção de que o bolsonarismo fugiu ao controle, conspirando contra o pose de democrata e ex-machista que Bolsonaro vende na campanha.

Tarcísio de Freitas, cujo brilho no debate de domingo foi ofuscado pela agressão, correu para se distanciar de Douglas Garcia. Mal conheço, disse ele, antes que explodissem nas redes sociais os vídeos e as fotos em que aparece abraçado ao desconhecido. Horas depois de se desculpar com Vera Magalhães pelo telefone, Tarcísio correu para o interior de São Paulo, onde dividiu um palanque com Bolsonaro, o grande vetor da incivilidade, da falta de decoro, da misoginia, da covardia, do desrespeito à democracia e tudo o mais que se esconde dos ataques a uma jornalista.

O prejuízo político é grande. Seja qual for o resultado das eleições, o Brasil se livrará de um mito. Até a direita brasileira começa a perceber a diferença entre conservadorismo e atraso que Bolsonaro encarna.

Por Josias de Souza

MAIS NUM CADÁVER

O Brasil produziu mais um cadáver por ódio político. Coincidentemente, a briga que levou ao crime começou algumas horas após o presidente da República defender, em comício na praia de Copacabana, que era necessário “extirpar da vida pública” adversários políticos da esquerda. A Polícia Civil de Mato Grosso informou que Benedito dos Santos, eleitor de Lula, foi morto a golpes de faca e machado por Rafael de Oliveira, apoiador de Bolsonaro, após uma discussão política entre ambos na zona rural de Confresa, no Nordeste do Estado, descambar para a briga na noite de 7 de setembro.

A morte é uma péssima notícia para uma sociedade que vê a violência por motivos políticos escalar na medida que nos aproximamos do 1º turno das eleições. O presidente já havia sido duramente criticado após o assassinato do tesoureiro do PT e guarda civil Marcelo Arruda pelo agente penitenciário bolsonarista Jorge Guaranho, em Foz do Iguaçu (PR), no dia 9 de julho. Guaranho ficou sabendo da festa de aniversário de temática lulista de Arruda e foi lá provocar. O caso terminou com o petista morto e o bolsonarista preso.

PARABÉNS LEÃO

O jornalista Leão Serva deu entrevista logo após interceder em defesa da jornalista Vera Magalhães, que foi atacada pelo deputado bolsonarista Douglas Garcia. Serva arrancou o celular da mão de Garcia, atirou longe e ainda o xingou: “vai pra puta que te pariu, filho da puta”.  “Ele veio aqui visivelmente com a intenção de ‘lacrar’. A única solução possível naquele momento era afastá-lo da ‘lacração’”, disse Serva sobre ter tirado o celular da mão de Douglas Garcia, que “já tem uma prática de assédio a Vera Magalhães há um bom tempo”.

UMA AMEAÇA

Apareceu mais um recorte da pesquisa Datafolha aplicada na semana passada depois que o presidente imbrochável, a pretexto de celebrar o Bicentenário da Independência do Brasil, promoveu o comício mais militarizado da história das eleições entre nós. O Datafolha ouviu 2.676 eleitores na quinta (8/9) e na sexta-feira (9). E além de apurar suas intenções de voto, submeteu-os a uma série de perguntas para traçar o perfil dos principais candidatos. Uma das perguntas: Qual o candidato que mais ameaça a democracia? Para 45% dos entrevistados, é Bolsonaro. Guarde para mostrar aos seus filhos quando crescerem, e aos seus netos, o momento que mais chamou a atenção dos brasileiros na celebração do Bicentenário da Independência. E depois tente explicar por que uma coisa dessas foi possível.

VONTADE DE TODOS

“Se essa for a vontade de Deus, eu continuo, se não for, a gente passa aí a faixa e vou me recolher porque com a minha idade, eu não tenho mais nada a fazer aqui na terra, se acabar essa minha passagem pela política aqui em 31 de dezembro do corrente ano”, disse Bolsonaro.

CRIMINOSOS E CANDIDATOS

Se o Congresso brasileiro já é conhecido por ser ocupado por bancadas fisiológicas formadas por parlamentares que defendem interesses pessoais e corporativos, corre o risco de abrigar uma inusitada geleia política. Matéria do jornal O Globo mostra que 20 médicos e médicas indiciados na CPI da pandemia pelos crimes que cometeram contra a saúde pública são candidatos a cargos eletivos nesta eleição – metade deles pelo PL, partido pelo qual tenta se reeleger Bolsonaro. Além do Congresso Nacional há quem concorra para chapas do Executivo estadual. Talvez por buscarem uma blindagem jurídica contra os processos que devem enfrentar, talvez pelo desprestígio profissional ao qual se condenaram (Nise Yamaguchi, por exemplo, foi demitida do Einstein após se destacar pela defesa dos tratamentos falsos), só a pequena política fisiológica lhes reste. Mais preocupados em defender sua atuação ideologizada na pandemia, nenhum deles se destaca por apresentar uma bandeira de interesse concreto da saúde pública em suas campanhas.

Por Outra Saúde

FRASES DA SEMANA

“O atual presidente diz que não tem tanta fome quanto dizem. Em Minas Gerais são 2 milhões de pessoas passando fome, no Brasil, 33 milhões. E isso porque o governo não governa. [Bolsonaro] não trabalha mais. Nunca governou. Agora, não governa e não trabalha”. (Lula)

“Eu tenho 30 anos de trabalho na política, sou advogada, tenho minha fonte de renda, não devo satisfação a ninguém. (…) Eu não tenho que dar satisfação pra ninguém do que eu faço”. (Ana Cristina Valle, ex-mulher de Bolsonaro, sobre a compra de uma mansão de R$ 2,9 milhões)

“Se essa for a vontade de Deus, eu continuo [na Presidência]. Se não for, a gente passa a faixa e eu vou me recolher porque, com minha idade, não tenho mais nada a fazer aqui na Terra se acabar essa minha passagem pela política em 31 de dezembro do corrente ano”. (Bolsonaro)

“Quem inventou esse negócio de ‘nós contra eles’, estigmatizando os adversários, com maior desonestidade, não foi o Bolsonaro, que é cria da cultura de ódio do PT, não é Marina Silva? Todo mundo, Lula, sabe o que você fez de cruel, mentiroso, odiento”. (Ciro Gomes, PDT)

“Dia dois! Vamos mudar tudo. […] A gente não precisa de armas. A gente só precisa de amor. Deus não acredita em violência, Deus acredita no amor”. (Ivete Sangalo, no Rock in Rio)

“Ninguém quer saber se Bolsonaro é brocha, isso não interessa. Isso é problema dele, não é problema nosso. A gente quer saber se vai ter emprego, se vai ter salário, se vai ter educação”. (Lula)

“Se tem um brasileiro que não precisa provar que acredita em Deus, esse brasileiro sou eu. Eu não teria chegado aonde cheguei se não fosse a mão de Deus dirigindo meus passos. Tenho certeza que lá de cima ele vai dizer: Lula, cuida deste povo aqui”. (Lula)

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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