30/04/2024 - Edição 540

Poder

Quem é o chefe do serviço paralelo de informação de Bolsonaro

Publicado em 29/05/2020 12:00 -

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Coronel, qual é exatamente a sua função? Sou assessor especial do presidente da República, do gabinete pessoal. A gente trata de assuntos de referência ao presidente.

Que tipo de assunto? A gente faz trabalhos pessoais.

Assuntos de inteligência? Não. Trabalho como assessor do presidente, mas não com o tema de que você está falando.

O senhor apura informações para o presidente? Não tem nada disso.

O senhor pode citar um exemplo do seu trabalho? O gabinete pessoal trabalha com as coisas do presidente. Se tiver uma demanda, a gente faz um assessoramento, a parte de compliance. É só isso.

Compliance? Pesquise o que é compliance.

Primeiro a pesquisa: compliance, segundo o dicionário Aurélio, é um neologismo que significa a “ação de cumprir uma regra, procedimento, regulamento, geralmente estabelecidos por uma instituição e para ser cumpridos por quem dela faça parte”. O profissional de compliance é o encarregado de observar se as normas estão sendo seguidas. O trabalho do coronel do Exército Marcelo Costa Câmara é bem diferente disso. Ocupando uma sala no 3º andar do Palácio do Planalto, a poucos metros do gabinete do presidente, ele é um assessor mais do que especial. Por determinação de Jair Bolsonaro, conduz investigações, reúne informações e produz dossiês que já provocaram a demissão de ministros e diretores de estatais, debelaram esquemas de corrupção que operavam em órgãos do governo e fulminaram adversários políticos. Tudo de maneira muito discreta, sem alarde, praticamente às escondidas.

Pessoas próximas ao presidente costumam se referir ao coronel Câmara como “o cara da inteligência”. “Ele só cuida disso. Todas as denúncias que chegam, de dossiês a relatórios de informação, vêm dele”, conta um auxiliar de Bolsonaro. O trabalho de “compliance” do militar surgiu no início do governo, a partir de uma reclamação antiga do presidente que se tornou pública em meio às acusações de que ele tenta impor maior ingerência em órgãos como a Polícia Federal. Bolsonaro jamais confiou nos canais oficiais de informação, com destaque para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por acreditar que é composta de servidores ainda fiéis à gestão petista. Estaria, portanto, cercada de inimigos, e o presidente precisaria de alguém de sua estrita confiança para lhe passar informações verdadeiras, encaminhar demandas sobre assuntos delicados e orientar inclusive assuntos de sua segurança pessoal. Marcelo Câmara foi escolhido para a missão. Ex-assessor parlamentar do comando do Exército, o coronel foi nomeado para o cargo em fevereiro do ano passado. Dois meses depois, já mostrava a que veio.

Havia uma disputa de poder entre o então ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto Santos Cruz, e Carlos Bolsonaro, o filho do presidente, que suspeitava que o militar conspirava contra o pai. Na época, circularam mensagens de WhatsApp, atribuídas ao ministro, com críticas pesadas a membros do governo. Incentivado pelo filho, Bolsonaro quis demitir o general, mas decidiu antes acionar o coronel Câmara, que investigou o caso e descobriu tratar-se de uma armação contra o ministro, que ganhou uma sobrevida. Mais tarde, porém, a mesma mão que salvou o general fez chegar ao presidente a informação de que Santos Cruz o havia criticado numa conversa com colegas das Forças Armadas durante um evento em São Paulo. O ministro foi demitido.

O governo gosta de propagar que há mais de um ano não se registra um escândalo de corrupção, o que, de fato, é algo louvável. Uma das ações bem-sucedidas do coronel evitou que um caso embrionário pudesse estourar. Foi de sua pequena sala que saiu o alerta, em meados do ano passado, de que havia desmandos nos Correios. Em setembro, a suspeita foi materializada em uma operação da Polícia Federal que investigou a atuação de um grupo de funcionários do órgão pela prática de corrupção e concussão. Segundo a PF, os servidores instavam clientes a romper contratos com os Correios e a contratar o serviço postal de uma empresa ligada ao grupo criminoso. Antes de a operação estourar, porém, uma limpeza já havia sido feita no órgão. Bolsonaro demitiu o presidente da estatal, general Juarez Cunha, e três diretores. A ação que impediu o primeiro grande escândalo de corrupção no governo foi creditada ao aviso prévio de seu hoje braço direito e assessor especial.

O presidente Jair Bolsonaro tem certo fascínio por serviços de inteligência. Quando ainda estava no Exército, na década de 80, o ex-capitão foi transferido para Nioaque, Mato Grosso do Sul, onde ganhou a função de “oficial de informações”. A sua missão era produzir relatórios sobre a fronteira. Na famosa reunião realizada no último dia 22 de abril com seus ministros, Bolsonaro queixou-se de que não estava recebendo informações como gostaria. Disse que o único serviço que funcionava era “o meu particular”. Após essa declaração, o presidente foi cobrado a se explicar sobre o que seria esse sistema de informações privado. Indagado sobre o assunto na última terça-feira, 26, ele desconversou: “O meu serviço de informação reservado, particular, são as mídias sociais, é o meu WhatsApp, são amigos que tenho pelo Brasil”, afirmou — o que também não deixa de ser verdade.

Marcelo Câmara, de 50 anos, não trabalha sozinho. Dois assessores ajudam a cumprir as demandas do presidente — um capitão das Forças Especiais do Exército e um ex-­policial do Bope do Rio de Janeiro. No Planalto, o coronel não usa farda e apenas um grupo restrito sabe, ainda assim muito por alto, o que ele realmente faz. “É um agente de inteligência do presidente”, conta um ministro. Outro lembra que várias vezes já ouviu Bolsonaro, diante de um problema, apontar para a sala ao lado e dizer que ia “acionar o meu pessoal”. E o pessoal dele esteve em ação para averiguar com lupa cada passo de Luiz Henrique Mandetta no comando da Saúde. Desde o início do ano, o presidente tem sido municiado com informações sobre suspeitas de desvio de dinheiro público tanto no ministério como no Estado do Rio de Janeiro. Antes da pandemia, o então ministro já estava na mira. A Covid-19, disse um assessor do presidente, ao contrário do que se sabe, deu sobrevida a Mandetta no cargo.

Em abril, Bolsonaro recebeu em seu WhatsApp um vídeo de um apoiador que denunciava contratos atípicos de aquisição de respiradores assinados pela Secretaria de Saúde do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, adversário do presidente. A mensagem, como de praxe, foi encaminhada para o coronel Câmara, que constatou que ela tinha procedência e havia indícios de crime. Pouco tempo depois, o Ministério Público do Rio deflagrou uma operação para prender os empresários e funcionários do governo estadual supostamente envolvidos. Ao puxarem esse fio, os investigadores trouxeram junto um novelo envolvendo um monumental esquema de corrupção. Na terça-feira 26, a Polícia Federal realizou buscas na casa do governador. A suspeita é que uma empresa contratada para construir hospitais de campanha durante a pandemia pagou propina para ganhar os contratos emergenciais. Witzel e sua esposa, Helena Witzel, são investigados como parte do esquema.

Além de farejar potenciais focos de corrupção, a pequena Abin do presidente vasculha o histórico de pessoas com quem Bolsonaro tem contato ou que são nomeadas pelo governo. No ano passado, essa checagem salvou o presidente do que poderia se tornar no mínimo um grande constrangimento. Em uma viagem a Manaus, o cerimonial agendou um almoço de Bolsonaro em um restaurante cujos donos eram empresários ligados ao narcotráfico. Depois da intervenção do coronel Câmara, o evento foi cancelado. Mais recentemente, o militar recebeu a missão de verificar se os integrantes da equipe da então secretária de Cultura, Regina Duarte, mantinham relações pretéritas com partidos de esquerda. Logo depois de concluído o trabalho, a atriz pediu para deixar o governo. Esta, aliás, é mais uma obsessão do presidente: a desconfiança de que é sabotado por adversários. O coronel costuma fazer uma varredura nas redes sociais de ocupantes de cargos de confiança para tentar descobrir “petistas infiltrados”. Já identificou vários — todos imediatamente afastados.

Com a mesma discrição, o coronel ainda cumpre uma missão fora do Planalto. Pelas mãos de Bolsonaro, Câmara foi nomeado como segundo tesoureiro do Aliança pelo Brasil, o partido do presidente. O que ele faz lá também é um mistério. “Não sei qual é a função dele aqui”, confessa Karina Kufa, que, além de dirigente da sigla, é advogada pessoal de Jair Bolsonaro. Embora na sombra, o fato é que o coronel Marcelo Câmara é um personagem importante no organograma do poder. Antes de encerrar a entrevista em que tentou minimizar suas atividades secretas como um simples trabalho de compliance, ele sugeriu que um resumo de suas atribuições estava disponível na agenda publicada no site da Presidência da República. De fato, está tudo lá. Do início da manhã ao final do dia, durante toda a semana, durante todo o mês, a agenda é quase totalmente dedicada a “despachos internos”. Despachos internos? “Se não ficou claro é porque são coisas pessoais sobre as quais não vou falar”, disse o espião do presidente antes de educadamente agradecer e desligar o telefone.

Análise

No clima de arruaça da reunião tarja-preta, nem sempre dá para saber o que quer dizer o presidente Jair Bolsonaro. E duvido que os presentes entendam. Mas dá para perceber, sem margem para dúvida, quando ele confessa um crime. Vamos à transcrição de uma parte de seu destampatório, com todas os anacolutos, as palavras que muitas vezes involuem para grunhidos etc. E, bem, a confissão de um novo crime:

"Sentir o cheiro de povo, como eu falei, lá. É uma experiência pra todo político sentir! Ir lá ver como é que tá o negócio. Ou a gente tem que tá, como se fosse, né, ô? Um general na … na retaguarda e deixar a tropa se ferrar na frente. Não! O general tá, tá na frente, o coronel tá na frente, o capitão tá na frente. Nossos heróis da Segunda Guerra mundial tiveram na frente de campo de batalha. Se precisar que, tenho certeza, nossas forças armadas vão cumprir com seu papel, mas, né? Nós temos que dar exemplo e mostrar que o Brasil não é, eu sou mais educado que o Weintraub, até me poli muito, né? No linguajar que ele usou – mas não é isso que o pessoal pinta por aí. Se reunindo de madrugada, pra lá, pra cá. Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os ofi… que tem oficialmente, desinforma.

Assim como admitiu nas fuças dos generais que está armando a população para uma eventual guerra civil, que é esse o propósito, ele está confessando que dispõe de um sistema particular de informações.

Que sistema é esse? Quem o integra? Quem paga? É particular? Isso quer dizer que o financiamento é privado? Existe uma milícia instaurada dentro do governo? Dispõe de aparelhos? Faz escuta?

Sim, trata-se de crime de responsabilidade e atenta contra a segurança nacional. A menos que esteja mentindo. Mas ele mentiria por quê?

O que faz esse "sistema particular de informações". Ele dá uma dica quando explica o que entende por serviços de Inteligência:

Eu tenho as … as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Aparelhamento etc. Mas a gente num pode viver sem informação. Sem info … co … quem é que nunca ficou atrás do … da … da … da … da … da … da … da porta ouvindo o que seu filho ou sua filha tá … tá comentando. Tem que ver pra depois que e … depois que ela engravida, não adianta falar com ela mais. Tem que ver antes … depois que o moleque encheu os cornos de … de droga, já não adianta mais falar com ele, já era. E informação é assim.

A concepção que Bolsonaro tem de Inteligência parece remeter àqueles serviço de espionagem do filme "A Vida dos Outros", de Florian Henckel von Donnersmarck, que retrata como operava a polícia secreta na Alemanha Oriental, com um meticuloso acompanhamento da vida privada de pessoas consideradas potenciais inimigas do regime: da escuta telefônica à leitura de cartas.

Os tempos mudaram. A revolução tecnológica permite outro tipo de invasão de privacidade. O que faz o "serviço particular" de Bolsonaro? Espiona deputados? Senadores? Ministros do Supremo? Ministros do STJ?

A deputada Joice Hasselmann, dissidente do bolsonarismo, já foi, pois, um deles. De tamanho destaque que foi escolhida para ser a líder do governo no Congresso. Deve saber como as coisas funcionam — ou, ao menos, ficou mais próxima dos ruídos dos porões do que qualquer outra pessoa

Entrou em rota de colisão com a filharada e caiu em desgraça junto ao "Jair", antes glorificado. Ela depôs na CPMI das Fakenews. Afirmou:

"Houve uma tentativa, no início, de que o Carlos [Bolsonaro] tentou montar uma 'Abin paralela' para que houvesse grampo de celular, dossiês feitos. E isso teria criado um atrito. E o nome foi esse, uma Abin paralela".

E ainda:

"Acho importante também ouvir o ex-ministro Bebianno, que acompanhou muito de perto o modus operandi que se desenrolava dentro desse núcleo de comunicação. Inclusive ele me deu uma informação, e eu estou dando essa informação porque ele falou claramente, com testemunha, e disse que confirmaria à CPI".

Bebianno morreu no dia 14 de março deste ano de infarto agudo do miocárdio. Era um dos melhores amigos do empresário Paulo Marinho, outro dissidente do Bolsonarismo. Em entrevista à Folha, ele afirmou que Flavio Bolsonaro lhe contou, no dia 13 de dezembro de 2018, que ficara sabendo ainda em outubro que uma operação da Polícia Federal (Furna da Onça) chegaria a Fabrício Queiroz. Um delegado da Polícia Federal teria cometido o crime do vazamento. Marinho já prestou depoimento ao Ministério Público Federal e à PF.

A exemplo das ações em favor de uma guerra civil, também a organização de um sistema paralelo de espionagem no seio do Estado agride a Lei 1.079, a do impeachment, e a Lei 7.170, da Segurança Nacional.

A propósito: Bolsonaro acha uma porcaria todos os sistemas de Inteligência: da Abin, a PF e das Forças Armadas. E exalta o seu, "particular". O que isso significa? Todos podem estar sendo espionados, inclusive os seus ministros e a cúpula das Forças Armadas.

Será que isso explica por que, volta e meia, têm início verdadeiras campanhas de desestabilização de ministros? Não custa lembrar que até o vice-presidente, Hamilton Mourão, entrou cedo no radar do esquema paralelo de Bolsonaro. Parece que foi também esse sistema que derrubou Bebianno, o general Santos Cruz e, quem sabe?, Sergio Moro.

Inteligência, para Bolsonaro, é ouvir atrás da porta.

Sistema particular de Inteligência e uma mente paranoica, somados, geram instabilidade permanente.

O que fará Augusto Aras nesse caso e no da organização da guerra civil?


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