Poder
Publicado em 14/12/2018 12:00 -
Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.
Era muita perversidade informar ou insinuar no começo de dezembro de 1968 que o presidente Arthur da Costa e Silva se preparava para editar um quinto ato institucional. É o que dizia o ditador. Ele se queixava de notícias “infundadas e até maldosas”, publicou a Folha de S. Paulo. Os quatro primeiros atos, baixados pela ditadura, espingardearam a Constituição de 1946. A Carta sucessora, talhada pelo regime inaugurado com a deposição de João Goulart, vigorava desde 15 de março de 1967, data da posse do marechal entronizado sem voto popular.
A especulação decorria da bronca das Forças Armadas e seus sócios civis com um discurso de Márcio Moreira Alves. Em setembro, o deputado de 32 anos praguejara contra a violenta invasão da Universidade de Brasília por militares e policiais.
Condimentara o protesto com diatribes como apelar às famílias para vetar a participação dos alunos nos desfiles colegiais no Dia da Independência. Estimulou as namoradas a não dançar com cadetes e jovens oficiais. Pueril, a bravata não oferecia perigo, e a imunidade parlamentar legalmente a autorizava. A zanga com ela constituiria pretexto para tolher ainda mais as liberdades.
O governo pedira licença à Câmara para processar Moreira Alves. Na noite de 4 de dezembro, Costa e Silva conversou por hora e meia em Brasília com figurões do partido chapa-branca da ditadura, a Aliança Renovadora Nacional. Assegurou-lhes, conforme o Jornal do Brasil: “A nação pode continuar tranquila, porque o governo não pensa em medidas de exceção e resolverá todos os problemas dentro das leis e da Constituição”.
O presidente renovou o chororô sobre as conjecturas em torno do AI-5: “São exploração nascida certamente de elementos interessados em criar problemas para o governo, perturbando a ordem do país”.
A Folha relatou a alegação do ditador aos correligionários arenistas: “A atual Constituição atribuiu ao governo uma soma de poderes suficientes para enfrentar qualquer contestação ao regime, e por isso não precisamos adotar medidas excepcionais ou de exceção”.
O Globo reiterou: “O Marechal Costa e Silva declarou aos líderes que a nação pode continuar tranquila porque o governo não pensa em medidas de exceção”. Também em 4 de dezembro, o Exército divulgou nota reconhecendo que “a Câmara dos Deputados é soberana nas suas decisões”.
Bolsonaro ameaça a democracia
Dali a nove dias, quando já caíra a noite da sexta-feira 13 de dezembro, a ditadura pariu no Palácio Laranjeiras o Ato Institucional nº 5 (na véspera, a Câmara se negara a entregar a cabeça do deputado Marcito).
A novidade suspendeu a garantia de habeas corpus em casos de “crimes políticos”. Permitiu ao presidente, sem apreciação da Justiça, decretar o recesso do Congresso e das demais casas legislativas, suspender direitos políticos e cassar mandatos eletivos. Depois da quartelada de 1964, foi o movimento institucional mais truculento do poder.
Evidenciou-se que a palavra de Costa e Silva merecia tanto crédito quanto, no século vindouro, a de um presidente eleito que proclama a permanência do Ministério do Trabalho antes de extingui-lo.
No dia 14 de dezembro, foram em cana o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o antigo governador Carlos Lacerda. JK topara votar no marechal Castello Branco na eleição farsesca, do Congresso ferido e acossado, em 9 de abril de 1964. Arauto mais ruidoso do golpe em 1º de abril, Lacerda passara à oposição.
Protagonistas da luta contra a ditadura, que se estenderia até 1985, o cardeal Paulo Evaristo Arns e o deputado Ulysses Guimarães tinham apoiado a derrubada de Jango. Bem como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Correio da Manhã, diário que não sobreviveria ao cerco da ditadura. Muita gente aprovou o golpe porque pensava que, sem Jango, o Brasil melhoraria. Ocorreu o contrário, em matéria de democracia e condições de vida das pessoas mais vulneráveis (Castello aplicou um arrocho impiedoso).
Almas bem-intencionadas festejaram a preferência dos golpistas pelo militar cearense, que seria um “legalista”, um “moderado”. Como ditador, Castello aboliu a eleição direta para presidente, todos os partidos políticos e a Constituição elaborada por representantes dos cidadãos em 1946.
Houve quem elucubrasse que o autoritarismo batera no teto, portanto Costa e Silva não o agravaria. Então 1968 chegou.
O AI-5 seria o fundo do poço repressivo, supuseram alguns. Sobreveio o crescimento da matança de oposicionistas. Um novo golpe dentro do golpe impediu o vice-presidente Pedro Aleixo de assumir após o afastamento de Costa e Silva por doença. Em 1977, o ditador Ernesto Geisel fabricou o Pacote de Abril. Entre outros liberticídios, como fechar o Congresso, criava um monstro que ganhou o apelido de senador biônico. Tal aberração seria escolhida por iluminados, sem se submeter ao sufrágio universal. Os biônicos proporcionaram maioria à Arena no Senado.
A partir de 1º de janeiro de 2019, haverá um governo dominado por nostálgicos da ditadura. A política econômica do superministro Paulo Guedes beberá nas mesmas fontes da equipe de Castello Branco comandada por Otávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda, e Roberto Campos, do Planejamento. Como selo involuntário de vínculo histórico, o economista Roberto Campos Neto, descendente de quem o nome denuncia, presidirá o Banco Central.
O Brasil de hoje, salve-salve, não é uma ditadura. O de 1968 era. Se Jair Bolsonaro impuser a plataforma que cultiva há três décadas, seu governo provocará estragos ou mesmo aniquilará a democracia.
Em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva e seus consortes tornaram a ditadura ainda mais cruel e antidemocrática. Cinquenta anos depois, na noite desta quinta-feira, a principal lição do AI-5 para o país de 2018 está na cara: tudo pode piorar.
Deixe um comentário