18/05/2024 - Edição 540

Poder

Supremo vai rejeitar mais uma ação de Bolsonaro contra a vida

Publicado em 28/05/2021 12:00 -

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Sem estresse, por favor. Bastam um governo inepto e uma pandemia fora de controle para abalar a confiança de qualquer um em dias melhores. Portanto, nada de imaginar que, se o presidente Jair Bolsonaro for contrariado mais uma vez pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o país estará às portas de uma crise institucional.

Bolsonaro só faz perder ali quando suas decisões ou intentos são levados a exame. A seu mando, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou no Supremo com uma ação contra medidas dos governos de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte, que restringiram a circulação de pessoas e impuseram toque de recolher.

Vai acontecer o quê? O Exército dele irá às ruas nesses estados para garantir a quebra do isolamento social se o Supremo a mantiver? Irá nada. Por folgada maioria de votos, talvez até por unanimidade, caso não fraqueje o ministro Nunes Marques, o tribunal arquivará a ação e ficará tudo por isso mesmo.

Está escrito nas estrelas que não haverá golpe de generais a favor de um ex-capitão excluído do Exército por indisciplina e comportamento antiético; um ex-capitão galhofeiro, embromador, considerado um mau militar por expoentes fardados da ditadura de 64, e que se elegeu acidentalmente presidente da República.

A ação da Advocacia-Geral da União sustenta que a liberdade de ir e vir, os direitos ao trabalho e à subsistência foram tolhidos pelas medidas baixadas pelos três governos, e invoca o artigo 5º da Constituição, que consagra esses e outros direitos. Ora, os redatores da ação pularam a leitura do caput do artigo 5º, que diz:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

A “inviolabilidade do direito à vida” é o primeiro dos direitos assegurados na Constituição, o único absoluto. Os demais são limitados. Em meio a uma pandemia que já matou 456 mil pessoas, os governos estaduais, diante da omissão do federal, restringiram temporariamente os demais direitos.

De resto, no ano passado, o Supremo decidiu que, em nome do direito à vida ameaçada, governadores e prefeitos podem legislar a respeito. Quem desrespeitar a lei deve ser multado. Mas quantos, de fato, foram multados até hoje? O presidente circula sem máscara, promove aglomerações e dissemina o vírus.

Não se atém a só isso: prega a desobediência dos que lhe dão ouvidos, incita militares à rebeldia e recomenda o uso de drogas ineficazes para o inexistente tratamento precoce da doença. Não satisfeito, depois de ter boicotado a compra de vacinas, nega-se a ser imunizado. Põe em risco a própria vida e a dos outros.

No futuro, Bolsonaro tem um encontro marcado com a Justiça. Com as urnas, o encontro será no ano que vem.

Ação de Bolsonaro contra estados tem a aparência de litigância de ma-fé

A iniciativa de Bolsonaro é batizada de "ação direta de inconstitucionalidade". Mas é preciso chamar as coisas pelo nome correto. A peça tem a cara de petição convencional, rabo de demanda regular, rugido de instrumento processual. Mas não passa do mais reles exercício de litigância de má-fé.

No país paralelo em que Bolsonaro decidiu viver, há no Palácio do Planalto uma vítima de governadores impatrióticos que trancam as ruas em casa e passam a chave no comércio para derrubar a economia e interromper o mandato do presidente. No Brasil real, há estados que, submetidos à escassez de vacinas cuja compra Bolsonaro retardou, são obrigados pelo vírus a trocar medidas restritivas pela abertura de vagas nas UTIs, abarrotadas de vítimas da covid.

Além de conviver com o vírus, o brasileiro é compelido a lidar cotidianamente com a ameaça do presidente de impor por decreto o retorno a uma hipotética normalidade. Quando o decreto for baixado, ninguém ousará descumprir, disse Bolsonaro. Se necessário, "meu Exército" vai para as ruas. Esgotada a fase da bravata, repete-se a encenação do recurso judicial.

Há dois meses, Bolsonaro já havia protocolado no Supremo ação análoga contra Bahia, Distrito Federal e Rio Grande do Sul. O ministro Marco Aurélio Mello enviou a peça para o lixo. E Bolsonaro mandou para o olho da rua o então advogado-geral da União José Levi, que havia se recusado a assinar a petição. Substituto de Levi, o doutor André Mendonça, candidato terrivelmente evangélico à cadeira de Marco Aurélio no Supremo, subscreve a nova chicana sanitária ao lado de Bolsonaro.

O Supremo decidiu em abril do ano passado que a gestão do sistema de saúde é tripartite. O fato de estados e municípios terem legitimidade para agir contra o vírus não exime Bolsonaro de presidir a crise sanitária. Mas o capitão prefere exercer em sua plenitude o papel de estorvo. No mundo de Bolsonaro, a pandemia era uma "gripezinha", que estava no "finalzinho", pois a segunda onda não passava de "conversinha". No Brasil real, a realidade não deixa de existir porque o presidente a ignora. Vem aí a terceira onda.

Bolsonaro recorre ao Supremo contra os governadores sabendo que sua ação não tem viabilidade jurídica. O objetivo do presidente é fazer média com seus devotos radicais, brandindo a falácia segundo a qual o desemprego é culpa dos governadores e a Suprema Corte impede o presidente de agir. Diante de um caso tão nítido de litigância de má-fé, o Supremo deveria enquadrar Bolsonaro. O abuso do direito de demandar não dá cadeia. Mas rende multa.

Bolsonaro usa tática 'quinta série' para fugir de culpa por falta de vacina

Jair Bolsonaro aproveitou a quinta-feira (27) para adotar uma tática "quinta série". Criou factoides e deu declarações infantojuvenis a fim de tentar jogar uma cortina de fumaça sobre revelações da CPI da Covid que mostraram como ele postergou o início da vacinação no Brasil e também evitar uma punição ao general-manifestante Eduardo Pazuello.

A tática foi bizarra mesmo para os padrões do presidente, que não são altos. Teve de tudo. Em visita a São Gabriel da Cachoeira (AM), em sua live semanal, ele tratou os brasileiros como otários ao defender que o ato com motociclistas no Rio de Janeiro, no domingo passado, não teve conotação política.

Quis assim reforçar a justificativa construída pelo governo e usada pelo ex-ministro da Saúde Eduardo "Só uso máscara quando me dá na telha" Pazuello. O general da ativa cuspiu nas regras do Exército ao participar de evento ao lado de Jair.

"É um encontro que não teve nenhum viés político, até porque eu não estou filiado a partido político nenhum ainda. Foi um movimento pela liberdade, pela democracia e apoio ao presidente", afirmou Bolsonaro sem corar as bochechas.

A desculpa esfarrapada segue a mesma lógica adotada quando crianças ouvem que não podem comer doce antes do almoço. Pegas em flagrante ao devorar um pacote de bolacha recheada, elas se justificam dizendo que bolacha recheada não é doce.

Uma lógica frágil, mas que tem servido junto aos 14% da população que acreditam em tudo o que Jair Bolsonaro diz, segundo último levantamento do Datafolha.

O presidente também vendeu chás consumidos pelos indígenas, dizendo que eles evitam mortes por covid-19. A comprovação científica desse produto no tratamento da doença é igual à da cloroquina, que ele também defendeu, e do bolo de cenoura da senhora minha mãe – ou seja, nenhuma.

Depois fez comentários homofóbicos em relação ao vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), dizendo que "agora tem uma saltitante na comissão que queria me convocar". O nível baixo visa a excitar uma parte dos seus eleitores que prefere um presidente que faça bullying do que um presidente que compre vacina.

Também deu corda para uma estratégia iniciada por seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido), que junto com outros senadores governistas, queria que fosse convocado o pastor Silas Malafaia para falar na CPI. Não importa que o único sentido de convocá-lo como "assessor informal do presidente" seja atrapalhar o andamento da investigação. Jair usou a óbvia recusa para dizer que a comissão tem "medo dos evangélicos". É um argumento tosco, mas sempre há um chinelo velho para um pé cansado.

Discursos assim ajudam a levantar uma cortina de fumaça no debate público sobre o que é realmente importante.

Por exemplo, o fato de o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, em depoimento à CPI, na quinta (27), ter apresentado provas que o governo recebeu, em julho do ano passado, uma proposta de entrega de 60 milhões de doses da CoronaVac até dezembro. O que poderia ter evitado dezenas de milhares de mortes. Mas preferiu dar uma banana à proposta.

Vale lembrar que, em outubro passado, após torpedear a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, Bolsonaro disse frases como "a [vacina] da China nós não compraremos, é decisão minha, eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população" ou "já mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade, até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela".

Isso mostra que esses absurdos não eram bravata de internet, como defendeu Pazuello na CPI, mas orientação da política adotada pelo governo.

Bolsonaro rifou a saúde pública em nome da estratégia de promover um contágio rápido da população em busca de uma imunidade de rebanho. No caos da vacina, também pesou a disputa eleitoral com o governador João Doria, responsável por trazer a CoronaVac. Agora, precisa esconder as provas das sabotagens. E, para tanto, o comportamento quinta-série vem bem a calhar.

O presidente pode ser irresponsável com a própria saúde porque tem acesso a todos os tratamentos que o nosso dinheiro de impostos pode lhe pagar e porque tem adultos responsáveis à sua volta. O problema é que a grande maioria da população não tem a mesma sorte e depende da efetividade de políticas públicas para sobreviver.

Para esse grupo, é duro ver o chefe da nação repetindo, dia após dia, molecagens que afastam o fim da pandemia em nome do interesse próprio.


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