04/05/2024 - Edição 540

Poder

STF forma maioria contra ‘poder moderador’ das Forças Armadas

Ainda bem que há juízes em Brasília para salvar a democracia

Publicado em 02/04/2024 10:30 - André Richter (Agência Brasil), Ricardo Noblat (Metrópoles), Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação STF

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O Supremo Tribunal Federal (STF) registrou ontem (1º) seis votos contra a interpretação de que as Forças Armadas podem exercer “poder moderador” no Brasil.

O entendimento dos ministros é formado no julgamento virtual de uma ação protocolada em 2020 pelo PDT para impedir que o Artigo 142 da Constituição seja utilizado para justificar o uso do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para interferir no funcionamento das instituições democráticas.

Os ministros julgam a ação da forma definitiva. Em junho de 2020, o relator do caso, ministro Luiz Fux, concedeu a liminar para confirmar que o Artigo 142 não autoriza intervenção das Forças Armadas nos Três Poderes.

Pelo texto do dispositivo, os militares estão sob autoridade do presidente da República e se destinam à defesa de pátria e à garantia dos poderes constitucionais.

A suposta tese do “poder moderador” foi alardeada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para justificar eventuais medidas contra outros poderes durante seu governo.

Até o momento, prevalece o voto de Fux. Para o ministro, o poder das Forças Armadas é limitado e exclui qualquer interpretação que permita a intromissão no funcionamento dos Três Poderes.

“A missão institucional das Forças Armadas na defesa da pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”, afirmou Fux.

Além de Fux, os ministros Luís Roberto Barroso, André Mendonça, Edson Fachin, Flávio Dino e Gilmar Mendes também votaram no mesmo sentido. Faltam os votos de cinco ministros.

Em seu voto, Dino afirmou que não existe no país um “poder militar”.

“Lembro que não existe, no nosso regime constitucional, um poder militar. O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente. A tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna, como aliás consta do Artigo 142 da Carta Magna”, concluiu Dino.

O julgamento é realizado no plenário virtual do STF, modalidade na qual os ministros inserem os votos no sistema eletrônico da Corte e não há deliberação presencial. A votação será finalizada no dia 8 de abril.

O comandante do Exército, general Tomás Paiva, concordou com a decisão do Supremo. Em entrevista à jornalista Débora Bergamasco, da CNN Brasil, Tomás Paiva afirmou concordar “totalmente” e que “Não há novidade para nós”, ressaltou o militar.

O comandante do Exército também elogiou o trabalho do Supremo Tribunal Federal no caso. “Quem interpreta a constituição em última instância é o STF e isso já estava consolidado como o entendimento”, afirmou Tomás Paiva.

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, também comentou a decisão do STF. Segundo Múcio, o posicionamento da corte “é a confirmação do óbvio”.

Sinal dos tempos: STF é forçado a dizer que poder militar é ficção

É sempre melhor as pessoas se arrependerem daquilo que experimentaram do que de algo que não foi experimentado. Exceto, naturalmente, queda de avião, ensopado de jiló e a naturalização da tese segundo a qual as Forças Armadas dispõem da prerrogativa constitucional de atuar como poder moderador da República.

Numa evidência de que a realidade não deixa de existir porque Bolsonaro a renega, o Supremo Tribunal Federal é compelido a refutar uma leitura extravagante do artigo 142 da Constituição. Por essa interpretação, as Forças Armadas poderiam intervir para moderar crises institucionais.

O terraplanismo constitucional é refutado no âmbito de ação movida pelo PDT em 2020. Naquele ano, Bolsonaro declarou durante reunião ministerial registrada em vídeo que “todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição”. Desde então, o bolsonarismo intensificou a pregação bizarra de que a intervenção militar dispunha de amparo constitucional.

Relator da causa, o ministro Luiz Fux anotou em seu voto que “qualquer instituição que pretenda tomar o poder, seja qual for a intenção declarada, fora da democracia representativa ou mediante seu gradual desfazimento interno, age contra o texto e o espírito da Constituição”.

Fux acrescentou que “é premente constranger interpretações perigosas, que permitam a deturpação do texto constitucional e de seus pilares e ameacem o Estado Democrático de Direito, sob pena de incorrer em constitucionalismo abusivo”. O presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, endossou o voto de Fux.

No domingo, dia em que o golpe militar de 1964 fez aniversário de 60 anos, o ministro Flávio Dino engrossou o coro que rende homenagens ao óbvio: “Com efeito, lembro que não existe, no nosso regime constitucional, um ‘poder militar’. O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente. A tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna, como aliás consta do artigo 142 da Carta Magna”.

Dino fez um acréscimo ao voto de Fux. Para reforçar a evidência de não existe a assombração da “intervenção militar constitucional”, determinou que o resultado do julgamento do Supremo seja encaminhado para o Ministério da Defesa. O objetivo é difundir o óbvio para todas as organizações militares, “inclusive escolas de formação, aperfeiçoamento e similares”.

Numa referência à tentativa de golpe de 2022, Dino anotou que “a notificação visa expungir [fazer desaparecer] desinformações que alcançaram alguns membros das Forças Armadas – com efeitos práticos escassos, mas merecedores de máxima atenção pelo elevado potencial deletério à pátria”.

Sem mencionar o nome do jurista Ives Gandra Martins, que chegou a defender ideia de que cabe às Forças Armadas moderar conflitos entre os Poderes da República, Flávio Dino criticou os profissionais do Direito que “emprestaram os seus conhecimentos para fornecer disfarce de legitimidade a horrendos atos de abuso de poder”.

Há políticos cuja obra só será devidamente compreendida daqui a um século. Com Bolsonaro é diferente. As ações do capitão só poderiam ser perfeitamente entendidas dois séculos atrás. O poder moderador existiu na constituição brasileira de 1824. Era exercido pelo imperador, que dispunha de um poder hegemônico.

Quer dizer: admitir que Bolsonaro pudesse manejar as Forças Armadas para virar a mesa da democracia, coroando-se imperador do Brasil, representaria não uma reedição mequetrefe do golpe de 1964, mas um recuo de 200 anos na história.

Ainda bem que há juízes em Brasília para salvar a democracia

Somente Lula sabe onde lhe apertam os calos. José Múcio Monteiro Filho, ministro da Defesa, talvez conheça parte dos calos que incomodam o presidente. Eles atendem pelo nome de Forças Armadas. Há 60 anos, elas derrubaram a democracia a pretexto de salvá-la do comunismo.

Uma vez que pegaram carona em Bolsonaro para voltar ao poder, pondo a serviço dele informações estratégicas, tiveram três ou quatro chances nos últimos anos para derrubar a democracia outra vez. Se em dezembro de 2022 tivessem dito sim a Bolsonaro, o golpe estaria consumado.

Há 60 anos, um tenente-coronel, Roberto de Almeida Neves, ao ouvir o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar em Juiz de Fora, convidá-lo para participar do golpe, sacou do revólver e deu-lhe voz de prisão. Quem acabou preso foi ele, que passou para a reserva no ano seguinte.

Em dezembro de 2022, ao ouvir Bolsonaro convidá-lo para participar de um novo golpe, o então comandante do Exército, general Freire Gomes, a princípio nada disse. Poderia ter-lhe dado voz de prisão, algo previsto no regulamento militar. Só ao ouvir o convite pela terceira vez foi que disse não.

Ele e o brigadeiro que comandava a FAB, segundo Freire Gomes, recusaram-se a embarcar na aventura golpista de Bolsonaro. O comandante da Marinha pôs suas tropas à disposição de Bolsonaro. Mas Freire Gomes pediu demissão para não dar posse ao seu sucessor escolhido por Lula.

Calos ingratos, esses verde e oliva, que Lula é obrigado a suportar – e o pior: calado. Por Lula, fala o ministro da Defesa que diz que as Forças Armadas, como instituição, sempre foram legalistas; golpistas, somente, alguns oficiais que serão julgados e possivelmente condenados pela justiça.

A República no Brasil foi instalada no final do século XIX por meio de um golpe militar liderado por um marechal monarquista. O século XX foi picotado por golpes bem ou malsucedidos. O período de democracia mais longo vivido pelo Brasil até hoje é este, de 1985 para cá – 39 anos, apenas.

Ainda bem que há juízes em Brasília. Quando o Congresso emudece e sobe no muro para depois aderir ao lado vencedor, os juízes honram a toga, sacam de um exemplar da Constituição e com coragem falam em seu nome. Foi o que fizeram nos últimos anos. Foi o que voltaram a fazer ontem.

O Supremo Tribunal Federal formou a maioria de seis votos para estabelecer que a Constituição não permite uma “intervenção militar constitucional”. O placar foi alcançado com o voto do ministro Gilmar Mendes. A análise começou na última sexta-feira e deve durar até o próximo dia 8.

“Diante de tudo o que temos observado, faz-se necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal para reafirmar o que deveria ser óbvio: o silogismo de que a nossa Constituição não admite soluções de força”, disse Gilmar em um voto de 12 páginas. O momento é oportuno:

“Considero apropriado que tenhamos a incumbência de fazê-lo por ocasião da efeméride de 60 anos do último golpe militar de nossa história republicana, concluído em 1o de abril de 1964 e por meio do qual restou instaurado regime autocrático que vigeu por mais de vinte anos”.

Segundo Gilmar a “data infame” tem sido “objeto de comemorações por parte de grupos e indivíduos que insistem em fazer tábula rasa de nossa história constitucional, como se o regime ditatorial instaurado em 1964 por obra das Forças Armadas representasse algo a ser celebrado”.

Quem, no Congresso, falaria tão claro e duro assim? Quem, dentro das Forças Armadas, falaria?


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