18/05/2024 - Edição 540

Poder

Ramagem barrou demissão de servidores da Abin investigados por espionagem

Delegado é 2º bolsonarista cotado à Prefeitura do Rio que a PF complica

Publicado em 25/10/2023 11:11 - Juliana Dal Piva, Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Câmara Federal

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Quando era diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) barrou, em setembro de 2021, a demissão de dois servidores da agência que acabaram fora do serviço público apenas na última sexta-feira (20) após serem presos pela Polícia Federal na operação Última Milha.

A PF investiga o uso indevido por parte de servidores da Abin de um sistema de geolocalização de dispositivos móveis para, sem autorização judicial, espionar integrantes do Judiciário entre 2019 e 2021.

A apuração que culminou na demissão de Rodrigo Colli e Eduardo Arthur Izycki na última sexta-feira teve início no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.

Após a interferência de Ramagem, em 2021, o processo levou mais dois anos para ser concluído. Ramagem chefiou a Abin de 2019 a março do ano passado, quando deixou o cargo para disputar a eleição para deputado federal.

Em maio de 2019, a Abin abriu uma sindicância para apurar a participação de Colli e Izycki, na condição de sócios em uma empresa, de um pregão no Exército —a prática é vetada a servidores da agência. No mês seguinte, foi aberto um procedimento administrativo.

Com acesso exclusivo aos documentos do procedimento administrativo, a coluna verificou que, em 23 de abril de 2021, a corregedoria-geral do órgão reconheceu a culpa dos servidores e acompanhou a recomendação do relatório final que pedia a demissão dos dois.

Os autos foram então enviados a Ramagem, que deveria dar seguimento para que o então ministro Augusto Heleno, do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), formalizasse a demissão. Ramagem, porém, mandou que o procedimento retornasse para novos depoimentos e coleta de provas.

Além disso, uma nova comissão precisou ser criada para analisar o caso, o que atrasou a demissão em mais dois anos.

A jornalista Juliana Dal Piva (UOL) apurou que a PF investiga a atuação de Ramagem nesse episódio do atraso da demissão porque existem suspeitas de que a direção da Abin estaria sendo chantageada pelos servidores que supostamente ameaçavam denunciar o uso ilegal da ferramenta First Mile.

Ao barrar o pedido de demissão feito pela corregedoria, em 15 de setembro de 2021, Ramagem identificou o que considerou falta de individualização de condutas dos agentes, ausência de oitiva dos proprietários e gestores da empresa privada e a necessidade de mais provas do conflito de interesses.

Ele escreveu que “face às indicações de vícios insuperáveis” eram necessárias novas diligências. Ramagem ainda afirmou que, “conforme se extrai dos autos, os autores não auferiram qualquer vantagem financeira, nem sequer causaram prejuízo ao erário”.

Ele defendeu também a necessidade de avaliação para que a pena a ser imposta aos servidores tivesse uma dosagem justa. “Cumpre salientar que os mesmos são primários e possuem boa reputação no órgão, tendo sempre prestado serviços reconhecidos pela qualidade técnica e pela eficiência dos resultados em prol da Administração.”

Em nota ao UOL, Ramagem reiterou as alegações e afirmou ter verificado na ocasião o que define como “claro cerceamento de defesa fatalmente anulável na Justiça”.

“A primeira decisão apenas converteu o julgamento em diligências, para sanar essas falhas, aproveitar provas produzidas e promover novo indiciamento. Assim foi feito, concluindo de forma técnica pela demissão dos dois oficiais de inteligência, sem vícios insanáveis” – Alexandre Ramagem, em nota ao UOL

Demissões só em 2023

Na última sexta-feira, em edição extra do “Diário Oficial da União”, os dois servidores foram demitidos do cargo de oficial de inteligência da Abin. As demissões foram assinadas pelo ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, e publicadas no Diário Oficial da União.

Em nota, a Casa Civil justificou as demissões dizendo que, em 2018, foi “constatada a participação [de Rodrigo e Eduardo], na condição de sócios representantes da empresa ICCIBER/CERBERO, de pregão aberto pelo Comando de Defesa Cibernética do Exército Brasileiro”. O pregão tinha por objeto a compra de solução de exploração cibernética capaz de realizar coleta de dados em diversas fontes da internet.

Com isso, eles incorreram na Abin em três infrações administrativas: violação de proibição de atuação em gerência e administração de sociedade empresária, improbidade administrativa por conflito de interesse e violação do regime de dedicação exclusiva.

A partir da operação da PF, os investigados podem responder pelos crimes de invasão de dispositivo informático alheio, organização criminosa e interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

As defesas de Rodrigo Colli e Eduardo Arthur Izycki não foram localizadas. O espaço segue aberto.

Ramagem na mira do inquérito das milícias digitais

A partir da operação da PF, Ramagem entra na mira das investigações do inquérito das milícias digitais onde se apura a existência de uma organização criminosa criada para tentar dar um golpe de Estado no Brasil e fazer com que Bolsonaro permanecesse ilegalmente no poder.

Delegado da PF, Ramagem atuou na coordenação de grandes eventos no Brasil: Conferência das Nações Unidas Rio+20 (2012); Copa das Confederações (2013); Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos do Rio (2016).

A aproximação com Bolsonaro ocorreu a partir do segundo turno da eleição de 2018, quando o delegado comandou a segurança pessoal do então presidente eleito. Até o período em que se tornou coordenador da segurança do presidente, Ramagem era visto como um delegado técnico.

Após o período na segurança de Bolsonaro, no fim de 2018, Ramagem foi nomeado Superintendente Regional da PF no Ceará, mas acabou chamado para o cargo de assessor especial da Secretaria de Governo da Presidência da República, na função de auxiliar direto do então ministro Carlos Alberto Santos Cruz.

Com a saída de Santos Cruz, Ramagem assumiu a Abin em julho de 2019. Nessa época, começaram os rumores sobre a existência de uma “Abin paralela” que produziria dossiês com informações sobre adversários do presidente. O governo sempre negou a informação.

Ramagem é 2º bolsonarista cotado à Prefeitura do Rio que a PF complica

As investigações da Polícia Federal podem colocar água no chope de dois potenciais candidatos bolsonaristas à Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições do ano que vem: o deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin e delegado da PF, e o general Braga Netto, ex-ministro-chefe da Casa Civil e companheiro de chapa de Jair no pleito de 2022.

O caso mais recente é o de Ramagem. A operação Última Milha prendeu servidores e afastou o número 3 da Agência Brasileira de Inteligência em uma investigação sobre o uso de um sistema secreto de monitoramento de celulares durante os três primeiros anos de Bolsonaro.

Jornalistas, políticos e funcionários públicos estariam entre os alvos de espionagem sem autorização da Justiça.

Na época da instituição era gerida por Ramagem. Ele afirmou, nas redes sociais, que a investigação da PF é consequência do “trabalho de austeridade” promovido pela sua administração e deseja que os desdobramentos avancem “atinentes a fatos, fundamentos e provas, não se levando por falsas narrativas e especulações”.

A PF analisa se que a Abin (leia-se, Ramagem) teria sido chantageada por ele devido à espionagem ilegal.

Próximo do clã Bolsonaro, o deputado é, hoje, cotado a disputar a Prefeitura do Rio, em 2024, com o apoio do ex-presidente e de seus filhos.

“Não acredito que o Ramagem esteja envolvido nisso [espionagem]. Ramagem é um policial sério e ele seria o ideal para ir para a Prefeitura do Rio de Janeiro”, disse Valdemar Costa Neto, em entrevista ao SBT, na terça (24).

A posição do presidente do PL, contudo, vinha sendo outra. Por exemplo, no dia 5 de outubro, após a morte de três médicos, um deles, o irmão da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP), em um quiosque na Barra da Tijuca, Valdemar defendeu Braga Netto para a disputa. “É um dos motivos que o Rio vai querer o Braga Netto”, disse, segundo Lauro Jardim, em O Globo.

O general resiste à ideia de candidatura, alegando questões familiares.

Tal como Ramagem, a Polícia Federal também respingou em Braga Netto. No dia 12 de setembro, a operação Perfídia cumpriu 16 mandados de busca e apreensão em uma investigação sobre fraudes na compra de coletes durante a intervenção federal em 2018, chefiada por ele. O general teve o sigilo telefônico quebrado.

O objeto foi a dispensa ilegal de licitação para a compra de 9.360 coletes à prova de bala, adquiridos com um sobrepreço de R$ 4,6 milhões no finalzinho da intervenção de uma empresa norte-americana. Segundo o general, devido a irregularidades, o contrato foi posteriormente cancelado. Mas isso não faz o caroço desaparecer do angu, nem de uma eventual campanha eleitoral em 2024.

Vale lembrar que foi sob as barbas do general que a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Torres foram executados em março de 2018.

Outros nomes que circularam como hipóteses no PL foram descartados: os do senador Flávio Bolsonaro e do deputado federal e ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello.

Em julho deste ano, o ministro Gilmar Mendes, do STF, mandou desarquivar uma investigação sobre omissões do governo Bolsonaro na pandemia de covid-19, que inclui Pazuello. O Brasil teve mais de 700 mil mortes pela doença.

Independente do nome escolhido pela oposição, com a candidatura de Eduardo Paes (PSD) à reeleição do Rio, que contará com o apoio do presidente Lula, o bolsonarismo não terá vida fácil. Ainda mais com a quantidade de esqueletos deixados no armário dos seus expoentes, que, agora, a PF começa a trazer à luz.

Abin bisbilhota, mas não gosta de ser varrida por investigação

Há nos bastidores do escândalo que envolve a Abin algo que incomoda tanto quanto o fato de Bolsonaro ter usado a agência para invadir a privacidade alheia. É perturbadora também a sensação de que a gestão Lula pode ter negligenciado a descoberta de que o governo anterior usou uma ferramenta israelenses para bisbilhotrar hipotéticos adversários, monitorando-lhes a localização por meio do sinal do celular.

São inquietantes os sussurros ouvidos nos subterrâneos da Abin sobre as investigações da Polícia Federal. Integrantes da cúpula da agência agem como se os investigadores exorbitassem. Queixam-se, por exemplo, das batidas de busca e apreensão realizadas nos endereços de agentes acusados de operacionalizar a bisbilhotagem bolsonarista.

Alega-se que a Abin fornece dados à PF normalmente desde o alvorecer do inquérito, em março. Nessa versão, seria desnecessário requisitar ao ministro do Supremo Alexandre de Moraes autorização para buscar na marra o que já era fornecido voluntariamente. As queixas soam inadequadas.

No momento, comanda a Abin o delegado federal Luiz Fernado Corrêa. Ele assumiu o cargo no final de maio, dois meses depois do início da investigação. Por ordem de Alexandre de Moraes, foram afastados da equipe de Corrêa cinco servidores. Dois estão presos preventivamente. Na casa de um deles, Paulo Maurício Fortunato Pinto, o número 3 da Abin, a PF apreendeu US$ 171 mil —R$ 872 mil na cotação atual. Só na terça-feira Fortunato foi exonerado.

Não fosse a batida da PF, o país não ficaria sabendo que o terceiro na hierarquia da Abin guardava uma fortuna em casa. Permaneceria oculta também a presença da suspeição na equipe de Luiz Fernado Corrêa, um delegado federal que assumiu a Abin nas pegadas do 8 de janeiro. Ora, antes de se queixar das batidas policiais, a agência brasileria de suposta inteligência precisaria explicar as razões de ter mantido no seu time zagueiros da equipe adversária.

O risco que o Brasil corre é o de perder mais uma oportunidade para redefinir o papel da inteligência do Estado. Pela lei, a Abin atua como coordenadora do Sisbin, o Sistema Brasileiro de Inteligência. Sob esse guarda-chuva, há órgãos de espionagem das Forças militares e das polícias.

Nas pegadas da intentona bolsonarista, o brasileiro que sustenta esse aparato teve o dissabor de ouvir autoridades como o general Gonçalves Dias, então chefe do GSI, atribuir o quebra-quebra nos prédios dos Três Poderes a um “apagão” da inteligência. Convém acender a luz do setor.

Sob Lula, ‘inteligência’ da Abin revelou-se uma qualidade inútil

Herdeira dos maus hábitos do SNI, a Abin nunca fez jus ao nome. Mas passou a exagerar. Nos primeiros meses do governo Lula, a Agência Brasileira de Inteligência revelou-se incapaz de detectar sua própria desinteligência. Após manter nos seus quadros enroscos herdados de Bolsonaro, a Abin afastou por pressão do ministro do Supremo Alexandre de Moraes servidores dos quais deveria ter se livrado por opção antes da posse, ainda na fase de transição.

A atmosfera malcheirosa leva o atual diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Corrêa, a prestar esclarecimentos no Congresso. Será ouvido nesta quarta-feira, a portas fechadas, na Comissão Mista de Atividades de Inteligência do Congresso. Terá de explicar, por exemplo, por que esperou pela prisão dos agentes Rodrigo Colli e Eduardo Arthur Izycki, na última sexta-feira, para publicar a exoneração de ambos em edição extra do Diário Oficial. Os processos de demissão estavam concluídos desde março.

O chefe da Abin precisará esclarecer também por que nomeou Paulo Maurício Fortunato para chefiar a Secretaria de Planejamento e Gestão, terceiro posto na hierarquia da agência, se a biografia dele já estava enganchada numa encrenca. Sob Bolsonaro, Fortunato foi diretor de Operações da Abin. Operacionalizou o uso ilegal de software israelense para bisbilhotar adversários do governo. Seguia-os pelo rastro do sinal do celular.

O principal dever de um órgão de inteligência é desconfiar da própria inteligência. Quando assumiu o comando da Abin, no final de maio, Luiz Fernando Corrêa manteve na gaveta a demissão de duas encrencas e promoveu um problema à posição de número 3 da agência. Exagerou na falta de astúcia.


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