18/05/2024 - Edição 540

Poder

Problema de Bolsonaro é a lista de aliados que espionou, não a de desafetos

Varejão de identidades roubadas torna Abin paralela um brinquedo

Publicado em 02/02/2024 11:44 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Imagem: Tania Rego/Agência Brasil

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Quando a Polícia Federal bateu às portas do deputado Alexandre Ramagem, no último dia 25, escrevi aqui que a bomba para Jair Bolsonaro e família não seria a divulgação dos nomes dos adversários espionados pela Abin Paralela, mas a dos ditos aliados.

Pois com exceção dos cobaias e dos extremamente pragmáticos, que vão plagiar Nelson Rodrigues e gritar a plenos pulmões “perdoa-me por me traíres” ao autointitulado mito, a confirmação de que a paranoia bolsonarista colocava desafetos e amigos no mesmo balaio deve gerar ranger de dentes.

Agora, com a informação trazida, nesta sexta (2), por Aguirre Talento e Natália Portinari, no UOL, de que a PF já tem evidências de que Jair foi beneficiário direto da espionagem ilegal realizada em seu governo, o pânico na família Bolsonaro sobre o vazamento de um comportamento visto como traidor deve aumentar.

Suspeita-se que o software israelense First Mile, usado ilegalmente para monitorar os deslocamentos, teve como alvos os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, o então governador petista Camilo Santana, o então presidente da Câmara Rodrigo Maia, os então deputados Joice Hasselmann e David Miranda, o ex-deputado Jean Wyllys, o jornalista Glenn Greenwald, a promotora Simone Sibilio (que esteve à frente das investigações do assassinato de Marielle Franco), o líder caminhoneiro Carlos Dahmer e o então chefe de fiscalização do Ibama Hugo Loss.

Grave, gravíssimo, mas previsível. A jurupoca vai piar, contudo, quando começarem a aparecer nomes que defenderam Jair e seus filhos nas tribunas e nos tribunais. Um governador Cláudio Castro? Um presidente Arthur Lira? Deputados e senadores? Prefeitos e governadores? Milicianos?

Para um presidente que abandonou uma série de aliados na beira da estrada em nome da própria sobrevivência, isso seria o esperado. Mas todo aliado acha que o alvo é sempre o outro até ser espancado pela realidade.

Jair passou seu governo sendo tutelado pelo Congresso, que impediu um impeachment, mas ficou com parte significativa do orçamento nacional e do poder. O sentimento sobre isso pode ser resumido no “foda-se” ao centrão proferido pelo então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Heleno, em um áudio captado em fevereiro de 2020 – período em que o software espião estava ativo. A Abin ficava sob o guarda-chuva do GSI de Heleno na época, por isso o general foi chamado para depor.

O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, pediu a lista dos parlamentares espionados. E o grupo Prerrogativas, de advogados e juristas, enviou uma petição ao STF demandando a publicização dos nomes dos que foram alvos de espionagem ilegal.

Quantos dossiês de aliados teriam sido produzidos durante o governo Bolsonaro e quantos ainda estariam em poder do ex-presidente e de seus filhos? Como confiar em alguém que te grampeia? O vereador Carlos Bolsonaro, alvo de operação, na segunda (29), por suspeita de ser o beneficiário de espionagem, usou o conteúdo para bater em aliados usando o Gabinete do Ódio? E como fica o clima entre Ramagem, então diretor da Abin e responsável pelo serviço sujo, com os colegas de parlamento?

Uma punição da Justiça pelo esquema de espionagem pode levar anos e até não atingir Jair, sob a justificativa farsesca de que ele não pediu nada ou não sabia. Mas a retaliação da política não tem a mesma paciência.

Vai ser constrangedor para ele ouvir dos próprios bolsonaristas em breve surpresos com a divulgação de que foram espionados pela Abin Paralela que Lula não faz isso com seus aliados.

Varejão de identidades roubadas torna Abin paralela um brinquedo

Num instante em que o país se horroriza com o escândalo da Abin paralela, a Polícia Federal sinaliza que o brasileiro deve suprimir a surpresa dos seus hábitos. O ponto de exclamação é insuficiente para expressar o espanto provocado pela penúltima descoberta policial. Ladrões de identidades comercializavam num varejão por assinatura informações pessoais capturadas em bancos de dados federais.

A engrenagem funcionava impunemente há pelo menos 14 anos. Depois de roubar as identidades, os delinquentes vendiam a privacidade alheia num painel eletrônico disponível para assinantes. Espremendo os fichários desse Estado clandestino, chegava-se à lista de autoridades e famosos. Gente como o presidente do Supremo Luís Roberto Barroso.

Desde 2010, a quadrilha faturou algo como R$ 10 milhões. Três pessoas já foram presas —duas em Campinas (SP), uma em Caruaru (PE). Bloquearam-se R$ 4 milhões nas contas bancárias dos investigados. A venda criminosa de dados revelou-se atraente. Seduziu dez mil assinantes. Pagavam por cerca de dez milhões de consultas mensais.

A freguesia era variada. Incluía de membros de facções criminosas a policiais. Para os agentes da lei, o acesso era gratuito. Mas a plataforma exigia comprovação de identidade, com envio da carteira funcional. Levando a investigação a sério, a PF terá a oportunidade de expor os malandros que, supondo-se espertos, entregaram à quadrilha suas digitais de manés.

É como se o Estado brasileiro, mais permeável do que queijo suíço, terceirizasse a criminosos os dados pessoais que obriga os brasileiros a fornecer. Na era do ódio eletrônico e dos golpes cibernéticos, um varejão de identidades operado pelo Estado paralelo da bandidagem deixa o escândalo da Abin paralela parecido com um brinquedo de criança bolsonarista.


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