18/05/2024 - Edição 540

Poder

PF traça roteiro de investigações para fechar o cerco contra Bolsonaro

Asfixia do ex-presidente é parte da equação que levou Gonet à PGR

Publicado em 26/12/2023 1:36 - Aguirre Talento, Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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A Polícia Federal trabalha para concluir no início do próximo ano os inquéritos das fake news e das milícias digitais, que miram os núcleos político e econômico do bolsonarismo. A avaliação dos investigadores é que já há elementos suficientes para indiciar o ex-presidente Jair Bolsonaro por delitos cometidos ao longo dos últimos quatro anos, mas os tipos desses crimes só serão definidos com a finalização em conjunto de todas as linhas de investigação envolvendo o ex-presidente.

O indiciamento é um ato no qual a autoridade policial imputa a prática de um crime a um investigado. Depois disso, o caso será enviado ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, para análise sobre a eventual apresentação de uma denúncia contra Bolsonaro e seus aliados.

A expectativa dos investigadores é que, com a saída de Augusto Aras do comando da PGR (Procuradoria-Geral da República), Gonet deve dar prosseguimento às investigações e apresentar denúncias contra o ex-presidente após a entrega do material produzido pela Polícia Federal. Somente após o recebimento de uma denúncia pelo Judiciário é que Bolsonaro se tornaria réu nesses casos.

O ex-presidente já foi condenado na esfera eleitoral à inelegibilidade pelo prazo de oito anos, o que o impede de participar da próxima eleição presidencial. Essas investigações da PF são na esfera criminal. Caso ele seja alvo de uma condenação criminal, a depender do nível da sua pena, Bolsonaro poderia até mesmo ser preso.

O entendimento da PF é que os fatos sob investigação envolvendo Jair Bolsonaro estão interligados e, por isso, devem ser concluídos em conjunto. Os investigadores ainda finalizam a análise de materiais apreendidos, como telefones celulares, e as apurações envolvendo a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência da República que revelou a atuação de Bolsonaro em um plano golpista contra o resultado das eleições do ano passado.

Essa tentativa de realização de um golpe de Estado, de acordo com os inquéritos em andamento, tem conexão com a atuação das milícias digitais que atacaram as instituições democráticas nos últimos quatro anos e outros fatos.

Os inquéritos das fake news e das milícias digitais abrangem diversas frentes de apuração, como o desvio de joias para venda no exterior e as fraudes nos certificados de vacina. Os investigadores identificam uma conexão entre o cometimento desses delitos e a organização criminosa montada para realizar ataques às instituições democráticas. Para a PF, as milícias digitais também abriram caminho à obtenção de vantagens indevidas do Estado brasileiro pelo grupo do ex-presidente.

Apenas ao fim desse conjunto de investigações é que a PF irá definir quais crimes estão caracterizados. Havia uma expectativa de finalizar essas apurações até o fim do ano, mas o grande volume de provas sob análise atrasou o andamento do caso.

Pelos fatos analisados até agora, há suspeita de delitos como organização criminosa, peculato (desvios de recursos públicos) e atos contra o Estado Democrático de Direito.

Cinco eixos de apuração

– O inquérito das milícias digitais teve início após o arquivamento do inquérito dos atos antidemocráticos. Nessa investigação, a PF passou a se aprofundar na existência de grupos estruturados em redes sociais para atacar as instituições democráticas.

– Com o tempo, a PF identificou cinco eixos principais de investigação: ataques virtuais a opositores; ataques às urnas eletrônicas e às instituições do Judiciário; tentativas de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito; disseminação de notícias falsas sobre a covid-19; e, por último, o uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens indevidas.

– O desenvolvimento da apuração até o momento aponta uma conexão entre esses crimes e as milícias digitais. Isso inclui, por exemplo, a inserção de dados falsos de vacinas contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde e o desvio de joias dadas de presente ao Estado brasileiro para a venda no exterior e obtenção de vantagens patrimoniais.

– A PF, agora, busca finalizar as diligências sobre esses temas para identificar quais condutas criminosas serão imputadas a Jair Bolsonaro. Essa apuração inclui a análise das quebras de sigilo bancário, de informações de cooperação internacional com os Estados Unidos e o conteúdo de celulares apreendidos.

Delação impulsionou investigação

Um personagem-chave do bolsonarismo foi essencial para o aprofundamento das investigações: o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro.

– Primeiro, a PF conseguiu acessar os diálogos do celular de Mauro Cid através da quebra do sigilo telemático do backup de seus dados. Com isso, a Polícia Federal obteve indícios de desvios de recursos de cartões corporativos, fraudes em cartões de vacina e de atos preparatórios para um golpe de Estado.

– Preso no mês de maio, Mauro Cid fez um acordo de delação premiada com a PF, homologado em setembro pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.

– Como revelou o UOL, Cid deu detalhes aos investigadores sobre tratativas para a realização de um golpe de Estado mantidas por Bolsonaro após sua derrota nas eleições do ano passado. Também revelou que a então primeira-dama Michelle e um dos filhos do ex-presidente, o deputado federal Eduardo (PL-SP), atuavam como incitadores de um possível golpe.

– Essas informações foram essenciais para que a investigação avançasse na participação de Jair Bolsonaro em atos contra o Estado Democrático de Direito.

Outro lado

Jair Bolsonaro e sua defesa têm negado a participação em tentativas golpistas ou outros crimes.

Quando as declarações de Mauro Cid vieram a público, a defesa afirmou que o ex-presidente “jamais compactuou com qualquer movimento ou projeto que não tivesse respaldo em lei, ou seja, sempre jogou dentro das quatro linhas da Constituição Federal”.

Bolsonaro também já negou relação com os certificados falsos de vacina e o esquema de venda das joias.

Sobre a inelegibilidade, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, já disse publicamente que Bolsonaro foi “perseguido” pelo Tribunal Superior Eleitoral. “Foi perseguido pelo TSE, foi injustiçado. Ele jamais podia ficar inelegível”, afirmou, em uma entrevista à “Folha de S.Paulo”.

Procurada, a defesa de Jair Bolsonaro ainda não se manifestou.

Para o cabo eleitoral Bolsonaro, é pior ser réu por roubo do que por golpe

Para Jair, O Inelegível, que está se preparando para tentar transferir sua popularidade nas eleições municipais de 2024 a candidatos do PL e do bolsonarismo, a imagem de réu por roubo será pior que a de golpista. Estou falando de acusação, pois é claro que o vídeo dele preso por golpe de Estado, crime que pode trancafiá-lo, é muito pior que qualquer outra coisa. Mas uma condenação levaria tempo, e a acusação sairá bem antes.

Ser réu por tentativa de destruir o Estado democrático de direito não deve causar grandes consequências a Jair junto ao público que lhe depositou o voto em 2022 em comparação a outros crimes.

Vamos dividir seu eleitorado em dois: o bolsonarismo-raiz radical e o restante. O primeiro grupo continua com ele independente do que faça, pois vai acreditar em qualquer explicação, mesmo que bisonha. Por exemplo, se ele arrancasse em um comício a cabeça de um morcego com a boca, emulando Ozzy Osbourne, essa massa diria que ele estava fazendo isso para salvar uma criança prestes a ser mordida pelo mamífero ou que o bicho estava possuído pelo Tinhoso.

Ou seja, não importam as provas, essa parte do rebanho sempre ouvirá o seu berrante.

O segundo grupo votou em Jair, mas não empunha a bandeira do bolsonarismo. Sim, nem todo mundo que votou nele é bolsonarista, da mesma forma que nem todo mundo que votou em Lula é lulista ou petista. Há uma série de razões para votar em alguém, da ojeriza ao outro candidato, passando por simpatia por uma ideia, por esperança de vantagem em um governo ou pelo continuísmo.

Ser acusado de “ladrão de joias” é bem mais palpável do que “golpista” para uma parcela da população que votou nele, mas não é fã. Aquela parcela que acreditou na narrativa de que Jair era um homem “honesto” e estava acima da corrupção.

Tanto o esquema para desviar joias doadas pela Arábia e que pertencem ao patrimônio do Brasil e vender para pessoas ricas ou em lojinhas do tipo “Compro Ouro” nos Estados Unidos, embolsando a grana ao final, quanto o que envolveu bancar os luxos da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e outros gastos irreais de alimentação usando ilegalmente o cartão corporativo da Presidência da República, quebram a imagem de retidão que ele tenta passar.

Ser pego surrupiando não precisa de muita explicação. Qualquer cristão conhece bem o “não furtarás” dos Dez Mandamentos no livro de Êxodo, capítulo 20, tanto quanto a história de adorar um bezerro feito de ouro e joias contada em Êxodo 32.

Durante as campanhas eleitorais de 2018 e de 2022, e também nos quatro anos de seu mandato, Bolsonaro se vendeu como um “homem comum” que representaria os interesses do povo mais do que os políticos profissionais. Claro que era uma construção, uma vez que ele, um político profissional, especializou-se em ficar rico dando à luz funcionários fantasmas nos gabinetes da família e ficando com parte de seu salário.

Mas esse personagem convenceu muita gente. Afinal, ele aparecia em vídeos oferecendo pão com leite condensado ao representante do governo dos Estados Unidos, deixando cair a farofa do frango sobre sua roupa, fazendo lives improvisadas com bandeiras coladas à parede com fita crepe, cometendo erros de português frequentes entre o povão para gerar empatia ao ser ridicularizado pela elite intelectual – que sempre cai em suas armadilhas.

Agora, esse personagem deve ser acusado em um esquema que envolveu almirantes, sargentos, tenentes, coronéis e até um general para importar ilegalmente joias dadas de presente ao Brasil, depois usar todo o peso do governo fim de pressionar auditores da Receita Federal a liberarem a carga, daí mandar para fora e vendê-la. Segundo a Polícia Federal e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, era Jair quem determinava os rumos criminosos da operação. E quem se beneficiava dela.

Como já disse aqui mais de uma vez, para azar do ex-presidente e seu desejo de parecer um homem simples, o eleitorado tem mais facilidade de gravar na memória escândalos com produtos considerados de luxo, como diamantes e ouro. Neles reside não apenas o absurdo do desvio da coisa pública, mas a utilização desses recursos para fazer do governante uma pessoa que desfruta de luxos a que a maioria da população nem sonha em ter acesso.

Como Jair Bolsonaro, que se vendia como um “homem comum”, um “homem do povo”, pode surrupiar joias de luxo que pertenciam ao governo brasileiro, vender para os ricos e ficar com o dinheiro, e ainda por cima sacar dinheiro do cartão corporativo para pagar coisas da esposa ou bancar sua própria campanha? Isso é o que os adversários vão tentar lembrar à exaustão em 2024.

Por fim, a imagem dele sendo preso após uma possível condenação por tentativa de golpe de Estado será péssimo para os seus apadrinhados se ocorrer até o período eleitoral deste ano. Ele que chama Lula de “ex-presidiário” poderá ser chamado de “presidiário” por seus adversários. Imagina-se, por exemplo, que se isso ocorrer em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes vai tomar distância dele diante de um Guilherme Boulos que vai usar e abusar da imagem e da ligação entre os dois.

Para os eleitores daquele primeiro grupo, sua prisão não deve afetar nada. Pelo contrário, vão tocar uma campanha para vender a cadeia como uma grande injustiça, copiando o modelo do que petistas e lulistas fizeram durante os 580 dias em que ele permaneceu preso na carceragem da PF em Curitiba. Já no segundo grupo, deve ocorrer um estrago. E isso já afastaria eleitores de Jair.

Pode-se dizer que os inquéritos da PF podem ajudar a determinar os rumos da eleição deste ano e, portanto, os de 2026 também.

Em tempo: Claro que, para o cidadão Bolsonaro, ser réu por tentativa de golpe é bem pior do que por roubo porque isso pode levá-lo à cadeia. E ele já demonstrou que não tem a mesma estrutura psicológica que outros políticos que foram presos para suportar a cana.

Asfixia de Bolsonaro é parte da equação que levou Gonet à PGR

A Polícia Federal aguardava pela troca de comando na Procuradoria-Geral da República para fechar a conta dos inquéritos sobre Bolsonaro. Paulo Gonet foi escolhido por Lula sob influência de Alexandre de Moraes, relator-geral das encrencas bolsonaristas. Antes de ser aprovado pelo Senado, Gonet esteve um par de vezes no Planalto. O que conversou com o presidente, não se sabe. Mas nem a alma mais ingênua se atreveria a supor que Lula e Gonet deixariam de falar sobre o futuro criminal de Bolsonaro.

Os processos incluem da tentativa de golpe à falsificação de certificados de vacinação, da propagação de mentiras ao comércio ilegal de joias. O indiciamento deixará Gonet diante de duas alternativas: denunciar Bolsonaro ou desmoralizar Lula.

Como o mandato do PGR dura apenas dois anos, o desejo de recondução elimina a hipótese de Gonet fazer Lula de bobo. Confirmando-se a denúncia, restarão ao Supremo duas possibilidades: condenar Bolsonaro ou condenar Bolsonaro. A absolvição ou uma sentença suave, sem cadeia desmoralizariam a Corte, que já impôs às piabas do 8 de janeiro sentenças de até 17 anos de cana.

Um Bolsonaro encarcerado sob os ritos democráticos ficaria em situação parecida com a que viveu o adversário. Lula foi afastado das urnas graças a uma ação coordenada do Supremo —que sonegou-lhe um habeas corpus— e do TSE —que enquadrou-o na inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. Já banido das urnas até 2030, o capitão iria à cela batendo o mesmo bumbo de perseguido.

Com Lula fora da pista, Bolsonaro surfou o antipetismo para retirar a direita do armário em 2018. Quatro anos de irracionalidade e golpismo produziram a vergonha que colocou a direita civilizada no arco democrático que deu a vitória a Lula em 2022.

A provável asfixia criminal de Bolsonaro não torna a vida do rival mais fácil. Ainda que Bolsonaro e o bolsonarismo virassem pó, o conservadorismo troglodita continuaria retirando seu oxigênio do antipetismo. Ou seja: se quiser um quarto mandato, Lula precisa governar direito e aprender a conversar com a direita racional que lhe deu a vitória em 2022 menos pela preferência do que pela rejeição à alternativa.


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