18/05/2024 - Edição 540

Poder

Ou as big techs aceitam mudar ou as democracias em todo mundo seguirão ameaçadas pelas fake news

Lula quer pacto global contra desinformação e papel de emergentes na rede

Publicado em 09/03/2023 10:28 - João Filho (The Intercept_Brasil), Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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No início deste mês, conversei com um dos meus parentes que votou em Bolsonaro. Eu queria saber o que ele pensava sobre a invasão golpista de 8 de janeiro e sobre os primeiros passos do governo Lula. O que ouvi foi uma enxurrada de opiniões baseadas em informações falsas que seguem bombando nas redes sociais bolsonaristas. Em cinco minutos de conversa, ouvi cinco mentiras cabeludas: o TSE não aceitou divulgar o código fonte das urnas eletrônicas; um argentino especialista e independente comprovou a fraude no processo eleitoral; os prédios dos três poderes foram destruídos por integrantes do MST infiltrados; Lula anunciou uma moeda única com a Argentina; os yanomamis que estão morrendo de fome vieram da Venezuela.

Rebati mentira por mentira e ouvi: “ah, não é possível que tudo isso que eu falei seja mentira”. Encerramos a conversa.  Mais tarde, enviei pelo Whatsapp links de matérias jornalísticas que desmentiram todas aquelas informações. A resposta mostra o tamanho do buraco em que estamos enfiados: “Não dá pra saber. Quem é que define o que é verdade e o que é mentira?”. Essa dúvida que confunde fato com opinião foi plantada na cabeça de boa parte da população justamente para legitimar as informações falsas. É como se todos tivessem o direito a ter os seus próprios fatos. Quem define que a cor do asfalto não é rosa-choque, não é mesmo?

No Brasil, a disseminação de mentiras se tornou uma política pública do governo Bolsonaro. Mesmo após a derrota bolsonarista nas eleições, milhões de brasileiros continuam sendo enganados por uma indústria de mentiras que segue trabalhando a todo vapor. Os 49% dos eleitores que votaram no Bolsonaro, ou seja quase metade da população, seguem recebendo nos seus celulares as notícias de um mundo paralelo. A mentira como prática política continuará sustentando os discursos de parlamentares bolsonaristas e seguirá elegendo reacionário pilantra. Enquanto essa indústria de fake news estiver funcionando, a ameaça à democracia será permanente. Desarmar essa bomba talvez seja o maior desafio do novo governo.

A disseminação de mentiras impulsionada pelos reacionários não é um fenômeno brasileiro, mas mundial. É resultado de um movimento articulado entre os agentes da extrema-direita internacional, capitaneado pelo criminoso Steve Bannon. Ele e outros extremistas americanos comemoraram os acontecimentos de 8 de janeiro no Brasil, que claramente foram inspirados pela invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, um ano antes. Há um intercâmbio de know-how e de mentiras, o que ficou bastante claro nessas invasões e durante a pandemia. A defesa das democracias, portanto, deve ser articulada também de maneira global. A conferência organizada pela Unesco — órgão da ONU voltado para a Educação, Ciência e Cultura — em Paris foi o primeiro passo para a construção de uma defesa global e articulada contra a indústria das fake news. O principal ponto debatido na conferência foi como empresas, governos e organizações podem atuar em conjunto para regular as redes sociais e outras plataformas. O episódio de 8 de janeiro teve grande destaque na conferência. Foi apresentado como o principal exemplo de como a propagação de mentiras pode ser perigosa para as democracias.

Em carta enviada à conferência, o presidente Lula fez uma convocação por soluções globais de combate à disseminação de mentiras e defendeu a criação de uma regulamentação internacional. O tema virou prioridade do novo governo, que tem atuado em diversas frentes. Uma delas é o apoio ao PL das Fake News, que tramita na Câmara e cujos principais pontos estão em consonância com o que foi debatido na Unesco. O projeto quer a responsabilização civil das Big Techs — as grandes empresas de tecnologia que dominam o mercado das redes sociais — que se omitirem diante de mentiras que disseminem incitação à crimes contra a democracia e ao terrorismo. Segundo a CNN Brasil, nos corredores do evento da Unesco algumas autoridades brasileiras se mostraram céticas sobre o avanço do PL. Elas acreditam que o lobby das Big Techs é grande e difícil de ser superado. As grandes plataformas têm investido pesado para barrar essas movimentações contra as fake news.

No ano passado, as Big Techs — Facebook, Instagram, Twitter, Google e Mercado Livre — escreveram uma carta aberta em conjunto atacando o PL das Fake News. Segundo eles, o projeto ameaça a “internet livre, democrática e aberta que conhecemos hoje”. Também no ano passado, o Facebook pagou anúncios de página inteira nos principais jornais do país dizendo que o PL “traz consequências negativas às pequenas empresas que usam publicidade online”. Youtube e Google também publicaram em seus canais de comunicação artigos atacando o PL. Essas empresas não aceitam serem responsabilizadas pelas mentiras criminosas dos seus usuários. Ocorre que esse tipo de conteúdo sensacionalista e criminoso, costuma ser privilegiado pelos algoritmos definidos por essas empresas. Ou seja, elas lucram com isso, mas querem que a responsabilização seja apenas dos usuários.

A elaboração do PL tem recebido contribuições do STF, do TSE e do governo federal, o que o torna mais forte. Apesar do lobby intenso, o relator Orlando Silva (PCdoB) tem se mostrado otimista. Ele acredita que o texto pode ser apreciado pela Câmara no próximo mês e está confiante na aprovação. Em uma votação teste no ano passado, 249 votaram a favor do projeto e 220 contra. “Os contrários reuniram governistas e aliados das big techs. Minha impressão é que hoje temos outro cenário, e o 8 de Janeiro aumentou a tração para a aprovação”, afirmou o parlamentar.

O caminho para desarmar a indústria das fake news será longo e espinhoso no mundo inteiro. Não há soluções rápidas e simples. Encontrar o equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate às fake news é uma tarefa dura, mas inadiável. As mentiras que impulsionaram ataques à democracia e atentaram contra a saúde pública durante a pandemia precisam ser criminalizadas, assim como as Big Techs precisam ser responsabilizadas. Ou interrompemos essa produção industrial de mentiras ou aguardamos os próximos episódios de selvageria e barbárie.

Lula quer pacto global contra desinformação e papel de emergentes na rede

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva alerta que as plataformas digitais podem ser uma ameaça para a democracia e defende a regulação das redes num pacto global que inclua governos, empresas e sociedade civil.

Numa mensagem enviada ao maior evento já realizado por uma agência multilateral sobre o desafio das plataformas, Lula insistiu que os ataques de 8 de janeiro contra a democracia brasileira foram resultados de um processo de mentiras e desinformação e pediu que um processo transparente seja estabelecido para debater o futuro das redes.

Ele ainda pede que governos trabalhem para reduzir as lacunas digitais e promover a autonomia dos países em desenvolvimento no âmbito digital.

“Os países em desenvolvimento devem ser capazes de agir de forma soberana na economia de dados, como agentes e não apenas como exportadores de dados ou consumidores passivos de conteúdo”, defendeu Lula, numa mensagem lida pelo secretário de Políticas Digitais do governo, João Brant.

Em seu primeiro governo, o Brasil chegou a costurar uma ofensiva para impedir que a Internet tivesse suas regras estabelecidas apenas por empresas com base nos EUA. Agora, ele volta a defender um novo posicionamento das economias emergentes na indústria digital.

A cúpula reúne a partir desta quarta-feira em Paris representantes de governos, especialistas, vencedores do prêmio Nobel, além de brasileiros como o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Roberto Barroso, Felipe Neto e a jornalista Patrícia Campos Mello.

O objetivo do encontro é o de começar a desenhar o que pode ser o primeiro documento internacional com diretrizes sobre como deve ocorrer a regulação das plataformas digitais. O pacto, segundo as previsões da Unesco, poderia estar desenhado até 2024.

Para a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, há urgência em dar uma resposta global ao desafio. Segundo ela, 4,7 bilhões de pessoas usam as redes sociais. Ou seja, 60% da população do planeta. Mas, até o final de 2024, mais de 90 eleições vão ocorrer pelo mundo e 2 bilhões de pessoas serão convocadas a votar.

“Não podemos deixar que esses processos democráticos sejam arrastados por traficantes da desinformação, abrindo a porta para todo o tipo de perigo”, alertou a diretora-geral. Na avaliação dela, se não houver uma ação, as redes sociais ameaçam “desfazer as sociedades”.

Para a chefe da Unesco, cada revolução da informação ao longo da história foi acompanhada por uma revolução das leis.

De fato, cerca de 55 governos já iniciaram processos de regulação das plataformas sociais para proteger a vida democrática. Mas a agência da ONU, só haverá um êxito se esse esforço for global.

“Esse é um problema global. Portanto nossa reflexão precisa acontecer na escala correta, a escala global”, defendeu.

Lula alerta para risco para a democracia

De fato, o alerta sobre a democracia é o mesmo adotado por Lula. Segundo ele, existem duas ameaças. A primeira delas se refere ao fato de que esses benefícios são distribuídos “de forma desigual entre pessoas de diferentes níveis de renda, ampliando a desigualdade social”.

“O ambiente digital provocou a concentração do mercado e do poder nas mãos de poucas empresas e países”, alertou.

O segundo alerta se refere à ameaça de criar instabilidade. “Também causou riscos para a democracia. Riscos para a interação civilizada entre as pessoas. Riscos para a saúde pública. A disseminação da desinformação durante a pandemia da COVID-19 contribuiu para milhares de mortes”, denunciou.

“O discurso do ódio faz vítimas todos os dias. Além disso, os mais vitimizados são os setores mais vulneráveis de nossas sociedades”, disse Lula.

8 de janeiro como exemplo

Em sua mensagem, Lula ainda usou os ataques contra a democracia no Brasil por grupos bolsonaristas para exemplificar o risco.

“O mundo testemunhou o ataque de extremistas às sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no Brasil em 8 de janeiro. A democracia brasileira venceu essa batalha e agora está mais forte. Entretanto, estaremos sempre indignados com as cenas bárbaras daquele domingo”, afirmou.

Segundo ele, o que aconteceu naquele dia foi “o auge de uma campanha, iniciada muito antes, e que usou, como munição, mentiras e desinformação”.

“Esta campanha tinha como alvos a democracia e a credibilidade das instituições brasileiras. Em grande parte, esta campanha foi alimentada, organizada e divulgada através de várias plataformas digitais e aplicativos de mensagens. Ela utilizou o mesmo método utilizado para gerar atos de violência em outras partes do mundo. Isto deve parar”, disse.

Proposta de ação

Em sua mensagem, Lula defende que haja uma mobilização internacional para que um acordo seja estabelecido para lidar com as plataformas digitais. Para ele, porém, não se pode deixar o processo apenas nas mãos dos donos dessas redes.

“A comunidade internacional precisa, a partir de agora, trabalhar para dar respostas efetivas a esta desafiadora questão de nossos tempos”, disse.

O brasileiro insiste que o caminho não é nem a censura e nem a liberdade total de disseminar mentiras.

“Precisamos de equilíbrio. Por um lado, é necessário garantir o exercício da liberdade de expressão individual, um direito humano fundamental. Por outro lado, precisamos garantir um direito coletivo: o direito da sociedade de ter acesso a informações confiáveis, e não a mentiras e desinformação”, afirmou.

Controle de poucos ameaça integridade da democracia

Lula deixou claro a visão do governo brasileiro de que não se deve permitir que uma regulação ocorra apenas por um grupo restrito de empresários ou governos.

“Também não podemos permitir que a integridade de nossas democracias seja afetada por decisões tomadas por alguns poucos atores que atualmente controlam as plataformas digitais”, disse.

“A regulamentação deve garantir o exercício dos direitos individuais e coletivos. Deve corrigir distorções de um modelo de negócios que geram lucros explorando os dados pessoais dos usuários”, defendeu.

“Para ser mais eficiente, a regulamentação das plataformas digitais deve ser concebida com transparência e participação social. No campo internacional, este assunto deve ser coordenado de forma multilateral. O processo de debate liderado pela UNESCO, tenho certeza, será útil para a construção de um diálogo plural e transparente. Um processo que envolverá governos, especialistas e a sociedade civil”, disse.

Para ele, a conferência da UNESCO “é o início deste debate, e não o seu destino”. “Estou certo de que o Brasil poderá contribuir de maneira significativa para a construção de um ambiente digital mais justo e equilibrado, baseado em estruturas de governança transparentes e democráticas”, disse.


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