05/05/2024 - Edição 540

Poder

O país perde com Nikolas e outros insanos em ascensão na Câmara

Hoje é o primeiro aniversário de um dos momentos mais deprimentes da história da Câmara dos Deputados, protagonizado pelo novo presidente da Comissão de Educação da Casa

Publicado em 08/03/2024 10:31 - Ricardo Noblat (Metrópoles), Leonardo Sakamoto (UOL) - Edição Semana On

Divulgação Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

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Logo os profetas do caos proclamaram: o governo Lula foi derrotado mais uma vez com a escolha dos novos presidentes das comissões técnicas da Câmara dos Deputados. A derrota foi do país, haja visto o despreparo de alguns dos escolhidos.

Lula foi eleito sem maioria de votos no Congresso. A maioria, ali, é de direita, e uma parte dela de extrema-direita, bolsonarista. Essa é uma verdade inquestionável. Daí a adoção da velha fórmula franciscana do “é dando que se recebe”.

Nos anos 1980, sempre que o deputado Ulysses Guimarães (MDB-SP), o chefe da oposição à ditadura, ouvia alguém dizer que o Congresso era muito ruim, respondia em tom irônico: “É porque você ainda não viu o próximo”.

Ulysses, hoje, poderia, e com razão, ser contestado pelos incrédulos: o próximo Congresso não conseguirá ser pior que o atual, o mais poderoso da história, mas uma casa de gente desqualificada, corrupta e que só pensa no próprio bolso.

O maior partido da Câmara, o PL de Valdemar Costa Neto, que abriga Bolsonaro, prestou-se ao papel de aliado dele na tentativa de anular os resultados da eleição de 2002. Costa Neto foi um dos presos no caso do mensalão do PT.

Na hora de escolher os presidentes de comissões, diz o regimento da Câmara, o maior partido tem o direito de indicar quem quiser para comandar as que preferir. Nikolas Ferreira (PL-MG) ganhou a presidência da Comissão de Educação.

Ele é uma cópia jovem e escarrada de Bolsonaro, deputado por quase 30 anos: escandaloso, ignorante, só preocupado em aparecer fazendo barulho e criando factoides, um sem-ideias. Com uma diferença: essa é a receita que funciona agora.

Nós, jornalistas, nunca prestamos atenção em Bolsonaro porque ele era um político sem atributos, ou como ele diz: que falava para as paredes e seus colegas não levavam a sério. Bolsonaro jamais foi escalado para presidir uma comissão.

No seu primeiro mandato, Nikolas já foi. E como não se descarta que uma nova versão de Bolsonaro possa vir a ocupar no futuro o cargo mais importante da República, passamos a dar importância excessiva aos Nikolas e às Zambelli.

É a maneira que temos de acicatar Lula, de fazê-lo levar em conta o que achamos melhor para o país. O eleito foi ele, mas nossas opiniões deveriam pesar. De resto, somos donos das trombetas – perdão: empregados dos seus donos.

Já houve um tempo em que discutimos com entusiasmo os valores do jornalismo, para que ele deveria servir, coisas que tínhamos aprendido ou ouvido falar em salas de aula, na leitura de livros, em conversas com os mais velhos.

Não sei mais o que ensinam nas salas de aula. Sei que lê-se menos, têm-se menos tempo para apurar informações, as redações estão menores e repletas de jovens recém-formados, sobrecarregados e dependentes do Google e do celular.

O mundo gira e a Lusitana roda. Acima de tudo, hoje, o jornalismo presta-se a satisfazer as vontades dos algoritmos. Dir-se-á: as vontades dos algoritmos são ditadas pelo gosto do público. Que nada. É justamente o contrário, pode crer.

Um ano de vergonha

Nikolas Ferreira comemorou, nesta sexta (8), o primeiro aniversário de seu discurso preconceituoso proferido na tribuna por causa do Dia Internacional da Mulher de 2023. O momento foi um dos mais deprimentes da história da Câmara dos Deputados, o que, convenhamos, é um feito.

Vestindo uma peruca loira, ele disse: “Hoje, me sinto mulher, deputada Nikole” e, por isso, defendeu que teria lugar de fala para discursar sobre a data.

Além de despejar transfobia, ao afirmar que “as mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres”, atacando especialmente as primeiras deputadas trans do país, Duda Salabert (PDT-MG) e Erika Hilton (PSOL-SP), o hoje novo presidente da Comissão de Educação tentou ensinar as próprias mulheres como elas deveriam se comportar:

“Mulheres, retomem sua feminilidade, tenham filhos, amem a maternidade, formem sua família. Dessa forma, vocês colocarão luz no mundo e serão, com certeza, mulheres valorosas”.

Apesar de ter causado indignação e espanto, o processo contra Nikolas por falta de decoro parlamentar foi arquivado no Conselho de Ética em agosto. “Acredito que, não somente eu, qualquer pessoa tem liberdade de expor suas opiniões e pensamento”, disse o deputado em sua defesa, confundindo opinião com incitação ao ódio.

O centrão, que controla a Câmara, tem como uma de suas características o fisiologismo, não o ultraconservadorismo. Essa é uma das razões pelas quais as pautas em costumes e comportamentos de Jair Bolsonaro, como a proibição do aborto em caso de estupro, não terem tramitado facilmente.

O centrão enxerga ganhos econômicos em passar a boiada sobre direitos ambientais, indígenas e trabalhistas. Mas não quer ser visto como o responsável por tentar impedir uma menina de dez anos, grávida após ser estuprada pelo próprio tio desde os seis no Espírito Santo, de interromper a gestação para preservar a própria vida. Sim, os assessores da então ministra e hoje senadora Damares Alves fizeram isso.

Não haveria razão de o establishment da Câmara aceitar agora que um deputado ultraconservador, mesmo que tenha sido o mais votado do país, transformasse o púlpito da casa em penico. Mas foi isso o que aconteceu, com uma casa com medo de que fosse aberto um precedente para punir outros discursos bizarros proferidos por seus membros.

Não foi uma defesa de Nikolas o arquivamento, mas do direito de parlamentares flutuarem acima da lei.

Isso passou a impressão de que o parlamento se dobra às necessidades de produzir memes e agredir pessoas de alguém que se porta como um mini Bolsonaro. Pois, assim como foi com Jair que, como deputado federal, chegou a dizer que não estupraria a deputada federal Maria do Rosário porque achava que ela era feia, segundo suas próprias palavras. E ficou por isso mesmo.

Arthur Lira se manifestou na época, claro. “O Plenário da Câmara dos Deputados não é palco para exibicionismo e muito menos discursos preconceituosos. Não admitirei o desrespeito contra ninguém. O deputado Nikolas Ferreira merece minha reprimenda pública por sua atitude no dia de hoje”, afirmou o presidente da casa.

O pito, contudo, não teve desdobramentos. Livre do processo, ele continuou a destilar preconceito e, agora, é premiado com a Comissão de Educação, em meio a uma estratégia do PL de colocar bolsonaristas ruidosos para presidir colegiados, gerando barulho com polêmicas – o que é ouro em ano eleitoral.

Com isso, a cúpula da Câmara e o seu partido lhe garante, proteção para rasgar a Constituição quantas vezes desejar. Dessa forma, o parlamento se mostrou não como a Casa da Mãe Joana ou do Pai Lira, mas o parquinho de Nikolas. E, nesse playground, as mulheres só colocam luz no mundo sendo mães.

Em tempo: Tem uma série de TV sobre uma sociedade em que mulheres são reduzidas à função de gado reprodutor, ou seja, de úteros ambulantes. A premiada Handmaid’s Tale se passa num futuro distópico em que os Estados Unidos se tornaram um estado teocrático cristão controlado por ultraconservadores. A questão é que, ao que tudo indica, o futuro espreita logo ali.


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