18/05/2024 - Edição 540

Poder

O Estadão forçou elo entre Flávio Dino e o Comando Vermelho para alimentar o bolsonarismo

Jornal sustentou ligação entre Flávio Dino e Luciane Barbosa, esposa de líder do Comando Vermelho, com informações distorcidas e não checadas

Publicado em 20/11/2023 10:49 - João Filho (Intercept_Brasil), RBA – Edição Semana On

Divulgação Ilustração: Intercept_Brasil

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Desde o início do ano, o ministro da Justiça, Flávio Dino, vem sofrendo falsas acusações de associação ao crime organizado. As mentiras nascem no submundo da extrema direita organizada na internet e passam a ser alimentadas pelos obscuros parlamentares do bolsonarismo. Segundo a ficção bolsonarista, Dino visitou o Complexo da Maré em março deste ano sem escolta policial –  o que seria impossível sem a anuência dos líderes do crime organizado que dominam a região.

A verdade é que Dino foi ao maior complexo de favelas do Rio de Janeiro para participar do lançamento de um boletim com dados sobre violência escoltado pela Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal.

Mesmo com a mentira sendo desmascarada, a narrativa de que o atual governo petista tem fortes ligações com o crime organizado permanece de pé. Até hoje, durante as inúmeras sessões em que tem participado na Câmara e no Senado, Dino vem sendo confrontado por parlamentares bolsonaristas que reavivam essa acusação caluniosa, protegidos pela imunidade parlamentar. Eles têm a consciência de que estão mentindo, mas continuam porque têm a missão de criar o conteúdo que irá alimentar as redes sociais da sua base eleitoral.

Dali saem os cortes de vídeos dos bolsonaristas repetindo a falsa acusação, com uma edição bem arquitetada para que a ideia se consolide no imaginário de quem assiste. É um roteiro já manjado, mas que continua bastante efetivo.

Nesta semana, presenciamos mais um episódio de como a imprensa profissional pode contribuir para alimentar essa rede de fake news. A narrativa que associa o governo ao crime organizado ganhou um presentinho do Estadão. O jornal não fabricou os fatos como fazem os bolsominions, mas juntou um punhado de verdades, introduziu uma mentirinha e colocou dentro de uma embalagem feita sob medida para legitimar a grande mentira: a ideia de que os petistas do governo estão de mãos dadas com o crime. Vejamos a manchete: “Ministério da Justiça recebeu mulher de líder do Comando Vermelho para duas reuniões”. Isso, de fato, aconteceu e deve ser noticiado. Mas, do jeito que está colocada, a manchete dá a entender que o governo sabia que estava se reunindo com alguém ligado à alta cúpula do Comando Vermelho para tratar de assuntos do interesse da facção.

E nós sabemos que, em tempos de redes sociais, a maior parte da população se informa por manchetes. Para quem tem certeza que Dino é parceiro do crime organizado, essa manchete traz a peça que faltava para completar o quebra-cabeça. O fato é que Luciane Barbosa, mulher de um líder do Comando Vermelho no Amazonas, participou de encontros relativos aos direitos da população carcerária. Não há qualquer indício de que ela tenha tratado de assuntos de interesse da facção.

Ela não foi convidada pelo governo federal, mas indicada pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Amazonas. Além de participar de eventos no Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, ela esteve também no CNJ e na Câmara. Curiosamente, o presidente do CNJ, Luís Roberto Barroso, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, não tiveram seus nomes associados ao Comando Vermelho como os ministros Flávio Dino e Sílvio Almeida. O alvo escolhido para receber a chamuscada é claro.

O subtítulo da reportagem continua: “Ministério da Justiça confirma ter recebido Luciana Barbosa, mas disse que não sabia quem ela era. ‘Dama do tráfico amazonense’, como é conhecida, foi condenada por associação ao Comando Vermelho”. Trata-se daquele velho clichê do mau jornalismo: é possível contar uma mentira falando apenas verdades.

Mas, nesse caso, temos duas mentirinhas embutidas entre as verdades. Uma é a de que a mulher já estava condenada por associação ao tráfico quando participou de encontros no Ministério da Justiça. Com uma simples busca pelo nome completo de Luciana no Google, o jornalista Leandro Demori descobriu que ela não havia sido condenada na época em que esteve no Ministério da Justiça. Pelo contrário, naquele momento ela havia sido absolvida por falta de provas.

Ou seja, ela esteve no Ministério da Justiça como legítima representante da defesa dos direitos da população carcerária. Ser parente de preso não é crime. Só em outubro ela seria condenada em segunda instância, mas recorreu e responderá ao resto do processo em liberdade. Até o trânsito em julgado, Luciana continua sendo uma cidadã inocente com plenos direitos.

A outra mentira embutida no subtítulo é a de que a mulher é “conhecida como ‘Dama do Tráfico amazonense”. Absolutamente ninguém no Amazonas já havia ouvido falar na “Dama do Tráfico”. Confrontado no Twitter, um dos repórteres que assinam a matéria admitiu que a alcunha foi criada por uma fonte. “Achei peculiar e coloquei no texto”, afirmou antes deletar o tweet. Ou seja, o Estadão bancou a partir de uma única fonte  ao dizer que ela era conhecida assim. O estrago já estava feito. O apelido “Dama do Tráfico” passou a estampar as manchetes dos principais portais de notícias ao lado dos nomes de Flávio Dino e Sílvio Almeida.  A alcunha é mais um presentinho que parece ter sido feito sob medida para cair na boca do bolsonarismo.

A reportagem do Estadão acionou o gatilho da metralhadora de chorume da extrema direita. A partir dela, várias mentiras impulsionadas por políticos bolsonaristas passaram a circular nas redes e obrigaram o governo a ficar se explicando. O factóide gerou uma série de sub-factóides.  Vereador paulistano e ex-MBL, Fernando Holiday postou uma foto de Flávio Dino abraçado com uma mulher que seria a “Dama do Tráfico”. Era uma invenção, claro, a mulher que aparece na foto é uma humorista. O deputado Gustavo Gayer, que está com uma comitiva de bolsonaristas em Washington, afirmou que “o mundo vai saber que o Brasil está sendo presidido pelo crime organizado”.

A coisa foi longe. Deputados como Kim Kataguiri — aquele que defende o direito dos nazistas alemães se organizarem em partidos na Alemanha pós Holocausto —  estão se movimentando para pedir o impeachment de Flávio Dino e Sílvio Almeida. Esse é o tamanho da crise que foi fabricada e colocada no colo do governo a partir de uma reportagem maliciosa, para dizer o mínimo.

A associação do governo petista com o crime organizado não está mais apenas nas fake news do submundo digital bolsonarista. Agora essa mentira ganhou um verniz de credibilidade do jornalismo profissional.

Má fé

A editora-chefe de Política do jornal o Estado de S.Paulo, Andreza Matais, foi denunciada no Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal (MPT-DF). De acordo com o documento registrado, a jornalista “assediou e obrigou repórteres recém-contratados” a publicar uma matéria relacionando o ministro da Justiça, Flávio Dino, com uma mulher classificada como “dama do tráfico do Amazonas”. A informação é da Fórum.

“Somos colaboradores do jornal Estadão e queremos denunciar aqui que a editora-chefe de política do Estadão (jornal Estado de S. Paulo), Andreza Matais, assediou e obrigou repórteres recém-contratados por ela (todos no ano de 2023) a preparar e publicar uma reportagem enviesada que foi previamente concebida por ela para denunciar supostas ligações do ministro da Justiça, Flávio Dino, com uma mulher apresentada jocosamente como ‘dama do tráfico do Amazonas’”, diz trecho da denúncia, sempre de acordo com a Fórum.

O documento, registrado como uma Notícia Fato no MPT-DF, acrescenta que Andreza Matais tinha objetivo pessoal oculto de “revigorar a candidatura do ministro Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), de quem Andreza se diz ‘amiga pessoal’ e ‘devedora’ à vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).” Flávio Dino também é cotado para assumir na Suprema Corte a vaga da ex-ministra Rosa Weber.

A Notícia Fato afirma, ainda, que a editora-chefe de Política do Estadão “submeteu a condições degradantes e humilhantes repórteres envolvidos na fabricação do ‘escândalo da dama do tráfico’. Recém-contratados, oriundos de cidades fora de Brasília, os jornalistas não tiveram alternativas que não fossem cumprir as ordens arbitrárias e enviesadas da chefe. Em paralelo, foram submetidos a jornadas degradantes sem contabilização ou pagamento de horas extras, como denunciado anteriormente, e com o emprego de recursos e objetivos escusos na prática diária do jornalismo, protegido constitucionalmente”.

Dessa maneira, os denunciantes solicitam ao Ministério Público que investigue se Andreza Matais “praticou ilegalidades trabalhistas e profissionais”. Também é solicitado que se investigue se o jornal Estadão “violou leis de imprensa, pois o conteúdo também foi e é amplamente veiculado e turbinado por concessão estatal: rádio Eldorado, controlada pela família dona do Estadão. Solicitamos que essa denúncia seja anexada à notícia de fato”.

Nega e nega

Procurada pela reportagem da Fórum, Andreza Matais negou tudo. “A denúncia é improcedente e a direção de jornalismo já encaminhou o caso para o jurídico, que tomará as providências cabíveis”, declarou. A presidência do Tribunal de Contas da União também foi procurada e respondeu afirmando que “o presidente do Tribunal de Contas da União, Ministro Bruno Dantas, desconhece completamente os fatos e adotará providências legais contra a difamação criminosamente perpetrada em portal do MPT e divulgada como se documento oficial fosse”.


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