18/05/2024 - Edição 540

Poder

Michelle e assessores batem cabeça para encontrar resposta sobre a crise das joias

O que a muamba da ex-primeira-dama e os escravizados do vinho têm em comum?

Publicado em 07/03/2023 11:21 - Julinho Bittencourt (Forum), Leonardo Sakamoto (UOL) - Edição Semana On

Divulgação Reprodução

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e assessores passaram a segunda-feira (6) que se seguiu à revelação das joias trazidas da Arábia Saudita e apreendidas pela Receita Federal na sede do PL, em Brasília, tentando encontrar uma versão factível para o escândalo.

Estavam com ela o ex-candidato a vice de Bolsonaro, Walter Braga Netto, que dá expediente no partido com assessores também militares. Além dele, à distância, também dava seus pitacos o ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Bolsonaro Fabio Wajngarten com o objetivo divulgar a versão dos Bolsonaro sobre o caso.

A ex-primeira-dama foi aconselhada, em um primeiro momento, a submergir para esperar a crise arrefecer. Apesar disso, ao longo do dia foram surgindo outras ideias, entre elas uma participação maior de Michelle na resposta pública às questões que surgiram após a revelação do episódio pelo jornal “O Estado de S. Paulo”.

Até o momento, sua única declaração sobre o episódio, publicada nas redes sociais, foi catastrófica. “Quer dizer que eu tenho tudo isso e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa impressa (sic) vexatória”, escreveu no Instagram.

Discutiu-se também a possibilidade de ela dar entrevista a um veículo de imprensa para marcar posição. Lideranças do PL sondadas a respeito foram contra, diante da avaliação de que qualquer atitude mais enfática poderia colocar no colo da ex-primeira-dama uma crise que, por enquanto, ainda é mais ligada ao próprio Bolsonaro.

Outra ideia foi que Bolsonaro fizesse uma live em tom enérgico, semelhante ao adotado em outros momentos de crise — como quando ele se defendeu após dizer que “pintou um clima” com meninas venezuelanas que visitou nos arredores de Brasília.

Mas a ideia também não vingou, e Wajngarten inclusive nega que ela tenha sido discutida.

A única coisa efetiva tem sido feita pelo próprio Wajngarten, que vem postando em suas redes sociais documentos internos do governo relacionados ao caso.

Ao fim e ao cabo, ninguém no núcleo duro bolsonarista sabe o que fazer com relação ao caso.

Enquanto isso, a Polícia Federal (PF) já abriu um inquérito para investigar o caso na Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários.

Michelle prova ter aprendido com Bolsonaro ao terceirizar culpa por joias

Quem deve estar celebrando o envolvimento de Michelle Bolsonaro no escândalo de apropriação ilegal de R$ 16,5 milhões em joias dadas pela Arábia Saudita é a parte da direita que disputa espaço com a ex-primeira-dama entre os conservadores.

Lançada pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, em janeiro, como possível candidata à Presidência da República, Michelle começaria a viajar o Brasil para se vender como opção ao conservadorismo religioso – mesmo que o machismo de Jair não morra de amores pela ideia.

Mas, se antes, ela já seria insistentemente lembrada do maridão que fugiu para a Flórida com medo de ser preso por fomentar um golpe de Estado, agora também será cobrada por ele ter pressionado servidores públicos a fim de liberar joias que seriam destinadas a ela na Receita Federal.

Michelle é uma dor de cabeça maior para a direita do que a esquerda, apesar do que o bolsonarismo-raiz tenta fazer crer. Primeiro, para os filhos de Jair, que se consideram os herdeiros políticos naturais do pai. Podem não sair candidatos a cargos do Poder Executivo em 2026, mas gostariam de pessoas que fossem leais a eles – o que não é o caso da madrasta.

Além deles, outros expoentes do bolsonarismo também esperam ganhar espaço com a provável inelegibilidade de Jair, uma vez que não existe vácuo de poder. Querem o ex-presidente como ícone, mas aposentado.

E a redução da influência política do ex-presidente devido aos sucessivos escândalos pode abrir espaço para uma reorganização do campo. A extrema direita espremeu nos últimos anos a direita democrática, que esperava se recompor nesta nova conjuntura. A presença de Michelle, com penetração entre evangélicos e um sobrenome de peso, dificulta o processo.

Desde que o escândalo das joias veio a público pelo jornal O Estado de S.Paulo, o bolsonarismo atua nas redes redes sociais para tentar convencer que nem Michelle, nem Jair, pretendia ficar com as joias, distorcendo documentos e contando mentiras. A ex-primeira-dama chegou a dar uma resposta péssima, ironizando que era rica e não sabia.

Agora, sentiu. Segundo a coluna de Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo, afirmou a interlocutores que o seu papel foi a de “mulher traída”, sendo a “última a saber”. Ou seja, que tudo foi feito sem que ela soubesse.

Considerando que estamos tratando de Jair, pode ser verdade. Mas, se não for, ela mostrará ser capaz de terceirizar responsabilidades, tendo portanto aprendido com o comportamento do marido durante os quatro anos de seu mandato. Ou seja, que está pronta para ser uma candidata do bolsonarismo.

O que a muamba de joia de Michelle e os escravizados do vinho têm em comum?

O que a tentativa de apropriação de patrimônio público pela família Bolsonaro através do contrabando de joias no valor de R$ 16,5 milhões e o resgate de 207 escravizados na produção do vinho em Bento Gonçalves (RS) têm em comum? Ambos são escândalos nacionais cuja descoberta só foi possível graças à estabilidade funcional de servidores públicos.

A estabilidade, tão criticada por aqueles que acreditam que a massa dos servidores públicos é feita de “parasitas” (termo usado, aliás, pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, para designar a categoria em 2020), reduz o medo de retaliações dos poderes político e econômico diante do cumprimento da lei.

Se não houvesse estabilidade funcional, qual seria o destino do servidor da Receita Federal Marco Antonio Santanna ao receber, em 29 de dezembro do ano passado, a visita do primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira, incumbido por Jair Bolsonaro de tentar, pela última vez, retirar as joias que ficaram retidas em outubro do ano anterior, e se negar a entregá-las?

O sargento tentou colocar o servidor no telefone com um “coronel”, coisa que ele não aceitou. Depois, recebeu ligação de Júlio César Gomes, que chefiava a Receita, mas manteve o cumprimento da lei. Sem a garantia de que pudesse cumprir seu dever, Santanna poderia ter sido demitido e as joias não estariam hoje no cofre da Receita no Aeroporto de Guarulhos, mas no cofre de Michelle e Jair, no condomínio Vivendas da Barra.

A mesma lógica guia o combate à escravidão contemporânea desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, em 1995, formados por auditores fiscais do trabalho, procuradores do Trabalho, agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, defensores públicos da Defensoria Pública da União, entre outros órgãos.

Sem a estabilidade funcional, os servidores não teriam como bater de frente com interesses econômicos e políticos em um país em que o “você sabe com quem está falando?” não é um sintoma de alguém acometido de demência por doença, mas de pessoas que desenvolveram demência social.

O caso das vinícolas colocou Aurora, Garibaldi e Salton no foco. Mas outras empresas já foram envolvidas direta ou indiretamente com trabalho escravo, como Zara, Animale, M.Officer, MRV, OAS, Odebrecht, Cutrale, Citrosuco, Cosan, Nespresso, Starbucks, JBS, Marfrig, Minerva, entre tantas outras. Em alguns casos, as empresas aceitam a responsabilização. Em outros, não.

De acordo com fiscais e procuradores com os quais a coluna conversou, foram muitas as tentativas nos últimos 28 anos de pressionar funcionários públicos para que não registrassem o caso como trabalho escravo.

Alguns ficaram amplamente conhecidos. No maior resgate de escravizados da história recente do país, 1.064 pessoas foram retiradas da fazenda Pagrisa, em Ulianópolis (PA), em junho de 2007. Na sequência, senadores ruralistas fizeram uma visita a essa usina de cana para dar apoio à empresa e atacar a fiscalização.

Na época, a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho suspendeu outras ações de resgate programadas sob a justificativa de que a ação política havia instalado um clima de insegurança. Houve indignação pública quanto à tentativa de interferência no resgate de gente escravizada e, com isso, garantido aos grupos de fiscalização que suas ações continuavam protegidas por lei.

Vale lembrar que os auditores fiscais do trabalho que atuam na zona rural têm sido vítimas de violência por parte de descontentes com as autuações. O caso mais famoso foi a Chacina de Unaí, que executou quatro servidores, em 28 de janeiro de 2004, a mando de Antério e Norberto Mânica, grandes produtores de feijão.

O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional) disse em nota, no domingo (5), que o auditor que apreendeu as joias teve atuação “exemplar”.

“Esse episódio revela, por um lado, que garantias constitucionais do funcionalismo público, por exemplo a estabilidade, bem como as prerrogativas específicas dos auditores fiscais, tornam possível o combate a ilícitos e constituem garantia à sociedade de que a lei será aplicada a todos, independentemente de cargos, funções ou poder”, afirmou. Fato.

A sociedade celebra a “coragem” ou a “perseverança” de servidores públicos envolvidos no combate a situações escandalosas, como um presidente tentar trazer uma R$ 16,5 milhões em joias usando militares como mulas para fugir do risco dos presentes dados pela ditadura da Arábia Saudita ficarem com o Estado e não com ele, ou como o resgate de 207 pessoas da escravidão que atuavam na carga e descarga de uvas e que eram tratados com violência que incluía o uso de armas de choques, spray de pimenta e cassetetes.

Mas, não raro, deixa-se de lado que isso é possível graças à legislação que garante estabilidade funcional.

Na época em que a Reforma Administrativa foi apresentada pelo governo Jair Bolsonaro, a defesa do fim da estabilidade foi colocada na mesa. Se ele tivesse sido reeleito, a independência de quem garante o cumprimento da lei seria uma das primeiras coisas a irem à forca.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *