18/05/2024 - Edição 540

Poder

Maestria de Luana Araújo na CPI realça a mediocridade da gestão Bolsonaro

Publicado em 04/06/2021 12:00 -

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Em depoimento à CPI da Covid, a médica Luana Araújo revelou-se a mais competente gestora da crise sanitária que o governo Bolsonaro jamais terá. Desnomeada apenas dez dias depois de ter sido selecionada pelo ministro Marcelo Queiroga (Saúde), a doutora virou protagonista de um raríssimo caso de desnomeação por excesso de talento. E Queiroga ficou muito parecido com os antecessores Henrique Mandetta e Nelson Teich, que buscaram a porta de saída por falta de autonomia para gerir a Saúde.

Expressando-se em linguajar técnico, didático e cortês, Luana respondeu às perguntas dos senadores com maestria. Sobre o debate a respeito de um hipotético tratamento precoce da covid com medicamentos ineficazes como a cloroquina, a doutora disse: "Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Ainda estamos discutindo uma coisa sem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de qual borda da terra plana vamos pular."

Esquivou-se das provocações com classe e firmeza. "Autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação", afirmou, por exemplo, sobre a liberdade dos médicos de receitar medicamentos ineficazes. "A autonomia precisa ser defendida, sim. Mas com base em alguns pilares. No pilar da plausibilidade teórica do uso daquela medicação, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, no pilar da ética e no pilar da responsabilização. Quando junta tudo isso, você tem direito a uma autonomia e precisa fazer o melhor para seu paciente."

Os dois depoimentos ouvidos pela CPI da Covid nesta semana iluminaram o paradoxo que leva o governo Bolsonaro a gastar mais tempo e energia ao falar dos problemas sanitários do que ao enfrentá-los. Os senadores inquiriram duas médicas. Na terça, a oncologista Nise Yamaguchi. Nesta quarta, Luana. Entusiasta da cloroquina, Nise fez a cabeça de Bolsonaro sem ocupar cargo no governo. Avessa à cloroquina, Luana teve a cabeça levada à bandeja antes de esquentar a poltrona de secretária de Enfrentamento à Covid.

As teorias de Nise Yamaguchi coincidem com a prática antissanitária do presidente. Estão assentadas num tripé: cloroquina, imunidade de rebanho e ceticismo em relação às vacinas. Parte desse receituário produziu a queda de dois ministros da Saúde: o ortopedista Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich. O cardiologista Queiroga foi nomeado por Bolsonaro no pressuposto de que a Saúde voltaria a ser administrada segundo critérios técnicos, depois da ocupação militar promovida pelo general Eduardo Pazuello.

A doutora Luana foi escolhida na suposição de que Queiroga teria autonomia para compor uma equipe técnica. Convocada à CPI para explicar por que deixou o governo tão prematuramente, Luana declarou que desconhece o motivo. Dias atrás, Queiroga deu uma pista do que sucedeu. O ministro declarou que a ex-quase-futura-secretária é uma "pessoa qualificada" para exercer "qualquer função pública", mas foi desnomeada porque além da "validação técnica" era necessário obter uma "validação política" do nome dela. "Vivemos num regime presidencialista", disse o ministro.

Antes de ser selecionada, Luana havia chamado de "neocurandeirismo" a prescrição de cloroquina para tratar da Covid. Escreveu nas redes sociais que a insistência num remédio que a ciência já carimbou de ineficaz coloca o Brasil "na vanguarda da estupidez mundial."

No depoimento desta quarta, Luana foi instada a comentar uma sequência de declarações esdrúxulas de Bolsonaro sobre a pandemia. As frases negacionistas do presidente foram exibidas num telão. A doutora teve o discernimento de reprovar o inaceitável sem descer do púlpito técnico para o chão escorregadio da política.

"Não é possível ouvir uma declaração ou um conjunto de declarações de quem quer que seja, não estou personalizando na figura do presidente, sem sofrer um impacto quase que emocional. A mim, como médica infectologista, epidemiologista, educadora em saúde, isso me suscita que eu preciso trabalhar mais, que eu preciso informar melhor as pessoas. A mim me parece que falta informação de qualidade. Quando obtém informação de qualidade, não é mais esse tipo de comportamento que a gente espera que aconteça. Então, a mim me dói."

Marcelo Queiroga será reinquirido pela CPI na próxima terça-feira. Terá de explicar por que desnomeou Luana Araújo. Suspeita-se que o quarto ministro da Saúde da gestão Bolsonaro não dispõe da autonomia que imaginou ter recebido do presidente. É uma pena. A essa altura, esperava-se que já estivesse entendido que um governante que se rodeia de assessores mais competentes do que ele é mais competente do que eles.

Nise e os ministros paralelos

A CPI da Covid não fez justiça à médica Nise Yamaguchi. Os senadores trataram a depoente com descortesia. Enxergaram nela uma reles integrante de um gabinete paralelo de assessoramento de Bolsonaro na pandemia. Engano. As teorias de Nise coincidem 100% com a prática antissanitária do presidente da República —da louvação à cloroquina à defesa da imunidade de rebanho, passando pelo ceticismo em relação às vacinas. Aos olhos de Bolsonaro, Henrique Mandetta e Nelson Teich é que eram ministros paralelos.

Quem acompanhou o depoimento de Nise ficou autorizado a suspeitar que Mandetta e Teich integravam um segundo time. A doutora era a verdadeira chefe da Saúde. Muitos senadores duvidaram quando Nise negou que tivesse recebido convite do presidente para ser ministra. Não era necessário. Madame dava as cartas de fato. A poltrona de ministra era o último lugar em que ela queria ser vista.

Como eminência parda, Nise teve todos os privilégios do poder na área da Saúde com uma vantagem que Mandetta e Teich não tiveram: a de ser um poder presumido, que nunca passou por um processo de fritura nem precisou explicar por que todas as suas teses deram errado. O cargo de ministra seria um rebaixamento para Nise.

Mandetta e Teich deixaram o Ministério da Saúde queixando-se de que Bolsonaro não lhes dava ouvidos. Falaram à CPI do incômodo que sentiram com a pressão de Bolsonaro para inundar o SUS de cloroquina e afins. Mandetta contou ter participado de reunião em que se discutiu no Planalto o teor de um decreto presidencial que enfiaria na bula da cloroquina o tratamento contra a Covid.

O almirante Antonio Barra Torres, presidente da Anvisa, ecoou Mandetta na CPI. Ele colocou Nise Yamaguchi na reunião da bula. Disse ter sido ríspido com ela ao rebater a pretensão de reescrever as prescrições do remédio. Espremida na CPI, Nise esforçou-se para negar a existência de um gabinete paralelo.

A pretexto de rebater a acusação de que tentou bulir na bula, Nise entregou aos senadores um documento que reforça a suspeita. Trata-se da minuta de um decreto presidencial. Previa a distribuição em toda a rede do SUS de três medicamentos para utilização no tratamento da covid: cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina.

Nise disse ter recebido o documento de outro médico que esteve na reunião: Luciano Dias de Azevedo. Teve a preocupação de autenticar a papelada em cartório. Juntou à minuta mensagens que trocou com colega via WhatsApp. Depois de ler o texto, a doutora escreveu para o interlocutor: "Oi Luciano, este decreto não pode ser feito assim, porque não é assim que regulamenta a pesquisa clínica. Tem normas próprias. Exporia muito o presidente".

Para que o decreto presidencial sobre a disseminação da cloroquina tivesse validade, seria necessário modificar a bula. "Deixei bem claro que eu jamais escreveria uma bula por decreto e não seria essa a minha função", disse Nise à CPI. "Discuti a RDC (Resolução de Diretoria Colegiada), da Anvisa, que era uma nota informativa, onde eles falavam sobre a inserção de medicamentos em época de pandemia."

Bolsonaro não precisou editar o decreto. Mandetta foi empurrado para a porta de saída. Teich saiu por conta própria. Convertido em ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello baixou nota técnica que expandiu o uso da cloroquina, de ineficácia comprovada, no tratamento da Covid.

O governo de Bolsonaro apressou-se em distribuir cloroquina pelo SUS. E retardou a aquisição de vacinas. Deu no que está dando. A gestão informal de Nise Yamaguchi desce à crônica do desastre sanitário brasileiro como mais uma idiossincrasia letal do governo de um presidente esquisito.


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