18/05/2024 - Edição 540

Poder

Lula perde a chance de peitar militares e segue recompensando a caserna

Assim como em 2009, presidente perde a chance de responsabilizar militares por seus crimes e acena diretamente para os quartéis

Publicado em 24/01/2024 9:25 - Orlando Calheiros (Intercept_Brasil), Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Se existe uma constante na política brasileira, é a de que não importa o que aconteça, os privilégios dos militares permanecem inabalados – inclusive o de não responder por seus crimes. Com o 8 de Janeiro, não poderia ser diferente.

Os privilégios dos militares não foram ameaçados nem mesmo por governos comandados por pessoas perseguidas e presas pelo regime da caserna. Caso dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff – que chegou a ser torturada pelos generais – e do atual presidente Lula.

Essa passividade diante dos militares, por vezes, é justificada pelo medo quase irracional do suposto poder político dos quartéis. Inclusive, chegando a se falar abertamente da possibilidade absurda de um novo golpe nos termos de 1964.

Isso é pura propaganda. Mito! Um que se baseia na força que os militares tinham em 1964, mas ignora mais de meio século se passou e que muita coisa aconteceu desde então. Por exemplo, o fim do regime militar.

Vamos voltar no tempo. O ano é 1978. Em uma de suas entrevistas mais conhecidas, o então futuro (e último) presidente da Ditadura Militar, João Figueiredo, afirmou categoricamente que, ao contrário das aspirações populares, o Brasil não estava preparado para se tornar uma “democracia plena”.

“Como o brasileiro pode votar bem, se ele não conhece noções de higiene?”, disse o general, que ainda acrescentou que não pretendia encerrar o AI-5, nem anistiar os exilados políticos brasileiros.

Falava em nome do regime. Óbvio. Era o porta-voz dos planos que a caserna tinha para o país. Planos que falharam.

No final daquele mesmo ano, ainda sob a presidência de Ernesto Geisel, o AI-5 foi extinto. No ano seguinte, e sob os auspícios do próprio Figueiredo, a Lei de Anistia foi enfim promulgada.

Ali, dava-se início a um ciclo de abertura política que culminaria na vitória expressiva da oposição e na eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência da República.

Figueiredo não compareceu à posse do novo presidente – comportamento que seria repetido em 2023, por Jair Bolsonaro – e saiu pela porta dos fundos do Planalto.

Foi assim que a Ditadura Militar brasileira se encerrou: de forma patética, com os militares retornando envergonhados para a caserna.

Ao menos em tese e em Brasília.

Meu ponto é: ao contrário do que normalmente se imagina, a abertura política do país não foi um processo inteiramente controlado pelos militares.

Pelo contrário. O movimento, iniciado ainda durante o governo Geisel, representava uma tentativa quase desesperada dos militares de se salvarem diante da derrocada iminente e inevitável do próprio regime.

O fato é que os militares não desejavam encerrar o regime nos anos 1980. Contudo, a situação periclitante da economia do país, com uma inflação média que ulrapassava a casa dos 220% ao ano, e a pressão pressão popular e de instituições estrangeiras fizeram com que os planos dos militares de permanecer no poder fossem gradualmente substituídos por uma longa negociação sobre como eles retornariam para os quartéis.

A própria Lei de Anistia era um sintoma disso. Os militares sabiam que a ditadura estava no fim e temiam ser punidos pelos crimes que cometeram. Cederam à oposição para que também fossem incluídos no processo.

Esse pacto permaneceu inabalado ao longo das décadas seguintes, negando ao Brasil o conhecimento do que se passou durante um dos períodos mais sombrios de sua história. Negando a centenas de famílias a misericórdia de descobrir o que realmente aconteceu com seus entes queridos “desaparecidos” pelo regime.

Corta para 2009.

Setores ligados aos direitos humanos pressionavam o governo Lula para que fosse, enfim, instaurada uma Comissão da Verdade para investigar os crimes cometidos pela ditadura.

No ano seguinte, o Brasil seria condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos justamente por sua passividade diante do regime militar.

Lula batia picos de popularidade. Era o auge dos governos petistas.

Cenário perfeito para, enfim, acabar com a impunidade dos generais.

Certo?

Errado.

Sob protestos de integrantes do próprio governo, Lula cedeu aos apelos dos generais e ordenou modificações no anteprojeto de lei que criaria a Comissão Nacional da Verdade, deixando claro que não se tratava de uma revisão da anistia concedida aos militares.

Criou-se, então, um precedente perigoso. As Forças Armadas enxergaram nesse recuo a certeza de que seguiriam impunes. E isso era um sinal claro de que poderiam – e deveriam – avançar sobre a sociedade a política brasileira para recuperar o seu prestígio e o protagonismo político perdido no ocaso da ditadura.

E é justamente desse movimento de reorganização política das Forças Armadas para influenciar a política nacional que emerge o apoio institucional e político da caserna ao então deputado federal Jair Bolsonaro.

Um apoio que se mostrou crucial para a sua eleição. Afinal, Bolsonaro era relativamente desconhecido para a maioria da população brasileira. Mas as Forças Armadas não.

Corta agora para 2022.

Bolsonaro é derrotado nas urnas. Seu governo, amplamente integrado por militares, incluindo-se aí os seus vices, é rejeitado pela maioria da população brasileira. Como em 1985, a despeito de tudo, os militares foram incapazes de eleger o seu indicado.

Em parte porque, em pouco tempo, os escândalos e casos de corrupção de sua administração vieram à tona, muitos deles envolvendo os próprios militares – e estamos aqui falando de oficiais de alta patente –, como o caso das joias e o superfaturamento de compras de Viagra para as tropas.

Para melhorar ainda mais o cenário, ficou evidente a participação de integrantes das Forças Armadas nos recentes atentados contra a democracia no país, como o bloqueio das estradas durante o segundo turno da eleição presidencial e o 8 de Janeiro.

O resultado não poderia ser outro: os militares viram a sua popularidade e confiança atingindo os menores índices da série histórica, despencando até mesmo entre os antigos apoiadores de Jair Bolsonaro.

Segundo pesquisa da Genial/Quaest publicada em agosto de 2023, em poucos meses, o índice de apoiadores do ex-presidente que alegavam “confiar muito” nos militares caiu de 61% para 40%. Na população geral, a queda foi de 43% para 33%.

Em 2022, os militares perderam mais do que a eleição. Eles perderam a confiança dos brasileiros.

Esse parecia ser o momento ideal para finalmente enquadrá-los pelos crimes do passado, pela ditadura, pelo que ocorreu durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, pelo 8 de Janeiro….

Sem anistia, certo?

Infelizmente, essa não parece ser a intenção do governo Lula. Mais uma vez, o presidente tenta conciliar os interesses da caserna, lhe garantindo não apenas a impunidade, mas a manutenção da sua presença no Executivo, preservando seus espaços tradicionais, como o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional.

Fora alguns acenos políticos evidentes, como o engavetamento do projeto que acaba com a pensão dos filhos de militares e a inclusão do setor da defesa como um dos maiores destinatários do orçamento do novo PAC.

Isso é mais do que anistia. É recompensa.

De fato, não importa o que aconteça, os privilégios dos militares permanecem inabalados.

Risco de promoção de Mauro Cid leva o Exército ao mundo da Lua

Desde julho de 1969, quando os astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin pousaram a Apolo 11 na superfície lunar, apenas outros quatro países conseguiram chegar à Lua além dos Estados Unidos: a ex-União Soviética, a China, a Índia e, na última sexta-feira, o Japão. Reportagem da Folha revela que o Brasil está na bica de ingressar, metaforicamente, nesse seleto grupo de nações. Com uma vantagem. As missões espaciais mais recentes, como a japonesa, não são tripuladas. O Exército brasileiro vai ao mundo da Lua com Mauro Cid.

Sem alarde, trava-se nas fileiras do Exército uma corrida pelas promoções a coronel. Estão na fila os integrantes da turma de 2000 da Academia Militar das Agulhas Negras. Lidera o pelotão o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. A definição ocorrerá em 30 de abril. Até lá, a menos que a Procuradoria-Geral da República denuncie Cid e o Supremo o converta em réu, não são negligenciáveis as chances de que o tenente-coronel suba um degrau na carreira militar.

Enrolado em traficâncias que vão da gestão de recursos espúrios da família Bolsonaro à venda de joias da República, passando pela falsificação de cartões de vacina e pela cumplicidade na armação da tentativa de golpe, Cid puxou quatro meses de cana. Em setembro do ano passado, graças à celebração de um acordo de delação, o tenente-coronel foi premiado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes com uma liberdade provisória.

A abertura da cela veio junto com um lote de medidas cautelares que converteram o investigado numa aberração funcional. Afastado de suas funções, Mauro Cid teve que instalar um GPS entre a batata de perna e o pé direito. Transformado em arrastador de tornozeleira eletrônica, o ex-faz-tudo de Bolsonaro perdeu o posto de adjunto da Chefia de Preparo do Comando de Operações Terrestres, no Quartel-General de Brasília. Mas manteve o contracheque de mais de R$ 26 mil mensais. Em bom português, ganha sem trabalhar.

Durante os quatro anos da Presidência de Bolsonaro, Cid foi remunerado para subverter as funções de ajudante de ordens. Nos quatro meses em que desfrutou do encarceramento especial, recebeu pelo exercício do ócio de prisioneiro. Libertado, passou a usufruir de recompensa pecuniária para desfilar uma tornozeleira diante dos olhares de contribuintes indefesos. Descobre-se agora que Cid pode ser alçado ao setor de operações lunares do Exército.

Alega-se que Cid está protegido pelo princípio constitucional da presunção de inocência. Nessa versão, só a conversão do personagem em réu o retiraria da fila de promoção. Apenas uma sentença condenatória definitiva levaria o Exército a abrir o procedimento administrativo para expulsar Cid de suas fileiras.

Entretanto, nem mesmo o expurgo definitivo retiraria Cid de dentro dos cofres públicos. A família do militar continuaria recebendo pensão em valor proporcional ao tempo de “serviço” do ex-ajudante de ordens.

Fica cada vez mais nítido que a legislação que ampara os militares até na delinquência precisa ser submetida a uma lufada de ar fresco. Num Brasil em que a Justiça tarda, mas não chega, o trânsito em julgado não é senão um ponto inatingível do calendário. Num país menos ilógico, a ausência de condenação definitiva jamais seria obstáculo para a fixação de punições intermediárias, compatíveis com a evolução do processo.

No início da investigação, Cid era um mero um suspeito. A perícia realizada no seu celular empurrou para dentro do inquérito que corre no Supremo um sólido conjunto de indícios de culpa. A admissão voluntária de participação nas malfeitorias bolsonaristas guindou Cid à condição de réu confesso. O acordo de delação converteu-o num culpado à espera da definição do prêmio judicial que pode atenuar sua pena.

Nesse contexto, a inocência presumida é um direito esmaecido. Algo que não orna com a preservação do contracheque. A simples cogitação de promoção do militar é um acinte. Sua efetivação no posto de coronel seria um escárnio. Na eleição presidencial de 2022, a maioria do eleitorado decidiu retirar o Brasil da rota que leva ao universo da Terra plana. Não é concebível que, sob Lula, o Exército conduza o país ao mundo da Lua.

Forças Armadas brasileiras sentam praça no machismo

O documento protocolado pela Advocacia-Geral da União no Supremo Tribunal Federal para defender a restrição à participação de mulheres em determinados postos das carreiras militares é um monumento à dissimulação da cumplicidade do governo Lula com o atraso das corporações fardadas. Ao fornecer os argumentos que fundamentaram a posição do Planalto, as Forças Armadas sentaram praça no machismo.

O Exército alegou que a “fisiologia feminina” impede o ingresso de mulheres em armas cujos integrantes se envolvem em situações de combate, como cavalaria, infantaria e engenharia. Endossando todos os estereótipos associados ao hipotético “sexo frágil”, alegou-se que, na “zona de combate”, as mulheres não teriam estrutura para suportar o “esforço físico e mental” exigido dos “combatentes profissionais”.

Impregnado de misoginia, esse tipo de lero-lero foi superado nos Estados Unidos há 11 anos. Em 2013, sob Barack Obama, o Pentágono revogou a proibição à presença de mulheres na linha de frente dos combates. Em decisão histórica, fixou prazo de três anos para que as Forças Armadas americanas assegurassem a igualdade dos sexos nas suas fileiras.

Em dezembro de 2015, o então secretário de Defesa dos Estados Unidos, Ash Carter, anunciou que as mulheres passariam a ter acesso a todos os empregos das Forças Armadas, inclusive os postos de combate. Sem ignorar as diferenças físicas, Carter foi ao ponto:

“Há um número significativo de mulheres que podem passar por controles físicos rigorosos, da mesma forma que muitos homens não podem fazê-lo. Temos que aproveitar as vantagens de cada indivíduo capaz de superar os nossos padrões.”

A macheza do Exército brasileiro, incorporada ao texto enviado ao Supremo pela AGU, dissimula o preconceito sob camuflagem paternal. Sustenta que mulheres já admitidas na Força precisariam “aguardar mais alguns anos”, pois não haveria informações seguras a respeito das “consequências da atividade militar sobre a saúde física e mental” das fardas femininas.

Foi como se um alto-comando 100% feito de testosterona dissesse, com outras palavras, mais ou menos o seguinte: “Em situação de combate, as mulheres teriam ataques de nervos. Ainda não foi encontrado um antídoto contra o chilique.”

Na mesma toada, a Aeronáutica informou que adota “providências” para “colher, analisar e monitorar dados que possam subsidiar de forma segura futuras políticas de inclusão de mulheres” em todos os postos. Faz isso sem descuidar “da salvaguarda da integridade física e psicológica” de suas militares.

Numa evidência da importância da presença de mulheres no front, deve-se a subprocuradora Elizeta Ramos o questionamento da hipocrisia fardada. Ela protocolou no Supremo três ações —uma para cada Força— no período em que ocupou interinamente o posto de procuradora-geral da República, na transição de Augusto Aras para Paulo Gonet.

Elizeta anotou nas ações que “não há fundamento razoável e constitucional” capaz de “justificar a restrição da participação feminina em corporações militares.” Pediu ao Supremo que acabe com a restrição do direito fundamental das mulheres, “sob pena da configuração de manifesto tratamento discriminatório e preconceituoso.” Num instante em que as Forças Armadas devem à sociedade respostas sobre o flerte de alguns dos seus oficiais com o golpismo de Bolsonaro, o alistamento no machismo potencializa o atraso.


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