18/05/2024 - Edição 540

Poder

Líder da bancada evangélica estupra Constituição, lógica e paciência alheia

Tudo em nome de Deus, da pátria e da família...

Publicado em 27/02/2023 9:36 - Josias de Souza (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação AL Tocantins

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Foram três violações numa única entrevista. Falando à Folha, o deputado Eli Borges (PL-TO), novo líder da bancada evangélica, estuprou a Constituição, a lógica e a paciência alheia. Tudo em nome de Deus, da pátria e da família.

O estupro ao texto constitucional ocorreu no trecho da conversa em que o deputado disse não ter enxergado “nada de errado” no “clamor” bolsonarista por uma intervenção dos militares contra a eleição de Lula. Afinal, disse ele, “está muito claro” na Constituição que “as Forças Armadas exercem um papel de atender ao clamor popular”. Engano. As forças foram armadas para defender a democracia, não o contrário.

A violação à Carta Magna foi acrescida de um atentado à lógica no pedaço da conversa em que, após defender o “direito constitucional” dos golpistas de clamar por uma virada de mesa, o deputado enxergou “cristofobia” no enredo da escola de samba Gaviões da Fiel: “Em nome do Pai, dos Filhos, dos Espíritos e dos Santos”. Para ele, a escola confundiu liberdade de expressão com “libertinagem”. Subiu o tom: “Queremos respeito ao nosso culto”.

É como se o deputado enxergasse a respeitabilidade como uma espécie de leão-de-chácara espiritual. Na tabuleta do inciso 6º do artigo 5º da Constituição está escrito que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos”. Mas Eli Borges acha que só as suas crenças têm direito de participar da celebração.

Identificado no perfil da Câmara como agropecuarista e pastor, o novo líder dos evangélicos abusou da paciência alheia ao defender que o Congresso modifique a legislação para proibir todas as formas de interrupção da gravidez. Hoje, o aborto é permitido no Brasil em três hipóteses, quando a gravidez é resultante de um estupro, quando há risco de morte para a mulher ou quando o feto for anencéfalo.

O deputado avalia que nem mesmo nos casos de estupro o aborto é aceitável. A certa altura, o pastor soou como porta-voz dos fetos: “Será que ela [a criança] também deveria falar no processo, dizendo: ‘Olha, não tenho culpa de nada, sou uma vida, tenho direito de nascer’? É importante pensarmos que tem essa figurinha lá, que a mãe emprestou sua barriga para que ela nasça.”

O que falta ao líder dos evangélicos é um encontro com alguém como a diarista aposentada Josefina Júlia dos Santos. Em 1997, Josefina ergueu a voz contra o então ministro da Saúde do governo FHC, Carlos Albuquerque. O doutor queria impedir que hospitais do SUS realizassem abortos. Josefina discordou. E expõe suas razões numa entrevista publicada na mesma Folha que abriu espaço para o deputado evangélico.

Carlos Albuquerque conhecia o estupro de ouvir dizer. Josefina já havia encarado o flagelo de frente. Sua filha, deficiente mental, fora violentada em 1991. Grávida, teve de abortar num hospital do SUS. Josefina disse que a proibição defendida pelo ministro traria prejuízos apenas às mulheres pobres. “As que têm condições vão lá e fazem [o aborto] quietinhas”.

Espírita, Carlos engrossava o coro entoado por pastores como Eli Borges e bispos católicos. O ministro dizia que todo aborto é um assassinato. Católica, Josefina formulou indagações singelas: “Será que já teve um episódio desses com alguém da família deles? Será que alguém já viveu isso na pele? Eu vivi e sei como é. É muito difícil”.

Está cada vez mais difícil ouvir falar em Deus, pátria e família sem reprimir um sorriso interior. Sempre que alguém esbraveja a tríade predileta do fascismo e do bolsonarismo, uma voz no fundo da consciência avisa: “Farsante!” Tudo está tão impregnado de oportunismo que o Todo-Poderoso, debruçado sobre um parapeito de nuvens, deve recorrer de vez em quando ao célebre epíteto do Evangelho: “Raça de víboras!”.

Ressentidos: aprovação do governo Lula vai mal entre os evangélicos

A primeira pesquisa de opinião Genial-Quaest deste ano mostra que o governo Lula vai mal entre os evangélicos. Talvez pior do que imaginasse. E nem por isso o governo faz acenos para eles.

Ou é ressentimento ou simplesmente desatenção. Os líderes das principais denominações evangélicas, e seus rebanhos, votaram em massa em Bolsonaro para elegê-lo e reelegê-lo.

Enquanto, segundo a pesquisa, apenas 15% dos brasileiros sem religião avaliam negativamente o governo, e 16% dos que se dizem católicos, entre os evangélicos são 30%.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *