27/04/2024 - Edição 540

Poder

Fascismo húngaro é modelo para Bolsonaro

'Cartilha' extremista de Orbán é promovida por bolsonaristas no Brasil

Publicado em 27/03/2024 10:16 - Jamil Chade (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles) – Edição Semana On

Divulgação Attila Kisbendedek/AFP

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Há mais de uma década no poder, o húngaro Viktor Orbán se transformou em fonte de inspiração aos bolsonaristas. Nesta semana, o jornal The New York Times revelou a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro na embaixada húngara, em Brasília, no que poderia ser uma tentativa de fugir da Justiça.

Mas a relação entre os dois líderes revela o papel que Orbán teve na construção das estratégias de poder por parte da extrema direita brasileira.

Num evento realizado no Brasil, em junho 2022, o deputado Eduardo Bolsonaro deixou claro que a Hungria de Viktor Orbán era o exemplo a ser seguido e apresentou uma espécie de guia para que a extrema direita chegue ao poder e se mantenha forte.

Em sua palestra, de pouco mais de 40 minutos, o deputado mostrou a um público ultraconservador os “feitos” de seu aliado em Budapeste. Mas, acima de tudo, usou seus ensinamentos como uma cartilha a ser seguida.

O deputado chamou a Hungria de Orbán de “um exemplo de sucesso, de muito sucesso”. “Temos algo a aprender com ele”, disse.

O evento – o CPAC (Conservative Political Action Conference) – é uma espécie de Meca da extrema direita mundial, reunindo movimentos europeus, Javier Milei, Bolsonaro e amplamente financiada pelos ultraconservadores americanos que formam a base de apoio de Donald Trump.

Em 3 de maio de 2022, Orbán já havia apresentado em outro evento do CPAC as doze lições para “o sucesso dos cristãos conversadores”.

Coube a Eduardo Bolsonaro assumir a apresentação da cartilha no Brasil, explicando a necessidade de dar uma resposta à “esquerda” e ao Judiciário que defende “direitos humanos que protege o vagabundo”.

Hungria: pária no cenário internacional, central para o bolsonarismo

Orbán, no poder desde 2010, transformou a Hungria num campo de testes da extrema direita. Ao longo dos anos, controlou o Judiciário, Parlamento e imprensa, além de fechar qualquer espaço para a participação da sociedade civil na formulação de políticas. Foi denunciado pela UE, mas jamais abriu mão de seu projeto e passou a ser chamado de o “líder autocrático mais sofisticado da Europa”.

Insignificante para o comércio brasileiro, marginal no debate geopolítico, pária dentro da Europa e com um peso irrisório no palco internacional, a Hungria passou a ser estratégica aos interesses do movimento de extrema-direita brasileiro.

Regras de Orbán: Jogar com suas próprias regras

A primeira das regras a ser seguida é de que líderes devem “jogar com suas próprias regras”. Na explicação de Orbán, trata-se de uma estratégia de lidar com os problemas, sem aceitar as soluções e direções “impostas por outros”.

“É por isso que não devemos nos desencorajar ao recebermos gritos, ao sermos rotulados como incapazes ou ao sermos tratados como desordeiros no exterior”, disse o húngaro. “De fato, é suspeito se nada disso acontecer. Observe que qualquer um que jogue de acordo com as regras de seus oponentes certamente perderá”, disse.

Outro ponto do receituário é implementar o conservadorismo nacional na política interna. “As igrejas e as famílias devem ser apoiadas porque são os blocos de construção de uma nação”, disse ele.

Uma imprensa para chamar de sua e a ‘revolução das tias do zap’

A cartilha também faz uma referência direta à necessidade de que esse movimento de extrema direita tenha “sua própria imprensa”. Ao apresentar as propostas no Brasil, Eduardo Bolsonaro usou exemplos de matérias do UOL para mostrar como era necessário que seu movimento tivesse seus próprios canais, principalmente nas redes sociais.

“Aqui é a parte que eu mais gosto”, disse o deputado. “Orbán apanhava muito da imprensa esquerdista. E como foi mudada? Milionários compraram (esses meios) ou abriram os seus. Então, o que era crítica passou a dar voz a sua visão de mundo”, explicou.

Ele ainda destacou o papel “das tias do zap”, que estariam questionando a imprensa. “As tias do zap tiram o sono desses caras (da imprensa). São elas que estão fazendo a verdadeira revolução”, completou.

Ao apresentar sua própria cartilha, em abril de 2022, Orbán foi claro sobre a importância da imprensa. “Precisamos ter a mídia porque só podemos mostrar a insanidade da esquerda progressista se tivermos a mídia para nos ajudar”, disse. “A opinião da esquerda só parece ser majoritária porque a mídia a ajuda a amplificar suas vozes”, alertou.

Segundo ele, “o problema” é que a mídia ocidental “está alinhada com a visão de esquerda”. “Aqueles que ensinavam repórteres nas universidades já professavam princípios progressistas de esquerda”, justificou o húngaro.

Eduardo Bolsonaro já tinha viajado para Budapeste em 2019 e, após um encontro com Orbán, disse que aprendeu com o húngaro “principalmente sobre cultura e trato com imprensa sem politicamente correto”.

Fé e amigos

O receituário não esquece ainda da necessidade de que um povo tenha “fé”. “Se alguém não acredita no Julgamento Final, acha que pode fazer tudo o que estiver ao seu alcance”, disse Orbán. “Sua falta de fé é, portanto, perigosa”, afirmou o primeiro-ministro Orbán.

O húngaro ainda propõe que lideranças da extrema direita “façam amigos”. “Nossos adversários, os liberais progressistas e os neomarxistas, estão sempre unidos”, alertou. “Eles se apoiam uns aos outros”, disse.

“Os conservadores, por outro lado, são capazes de brigar entre si sobre a menor das questões, disse o primeiro-ministro. “E então nos perguntamos como nossos adversários conseguem nos cercar”, concluiu.

Em fevereiro, ele colocou em prática essa aliança, recebendo Bolsonaro em sua embaixada por dois dias.

Escândalos levam milhares a pedir renúncia de Orbán

Abalado por escândalos de corrupção e acusações de interferência no Judiciário, o líder da extrema direita e primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, enfrentou na noite de terça-feira (26) protestos em Budapeste. Milhares de húngaros pediam que o chefe de governo renunciasse.

O protesto ocorre depois que um ex-aliado publicou áudios de conversas entre os conselheiros mais próximos de Orbán, sugerindo modificações em acusações na Justiça e no Ministério Público. As suspeitas apontam para uma suposta tentativa do governo de interferir na Justiça.

Na noite de ontem, os manifestantes realizaram uma passeata, sob os gritos de “renuncie, renuncie”. Muitos caminhavam com tochas.

‘Estamos fartos’

O responsável pela publicação dos áudios é Peter Magyar, ex-marido de Judit Varga, ex-ministra da Justiça de Orbán. Em suas redes sociais, ele revelou uma gravação ocorrida ainda em sua casa, na qual membros do governo tentavam manobrar procuradores diante de um caso que envolvia outros aliados do primeiro-ministro.

O casal era, porém, a imagem da família perfeita e conservadora que a extrema direita tenta implantar na Hungria.

A crise ocorre num momento tenso para o primeiro-ministro — dois de seus principais aliados caíram.

Em fevereiro, a presidente Katalin Novak e a própria Varga renunciaram por apoiarem a decisão de conceder perdão a um homem envolvido em um escândalo de abuso sexual infantil em abril de 2023. O vice-diretor de um orfanato estatal, que havia sido preso por encobrir uma série de abusos sexuais contra crianças, foi perdoado no ano passado — mas isso só se tornou conhecido no início de fevereiro.

Naquele momento, milhares de pessoas tomaram as ruas. Orbán justificou que apenas ficou sabendo pela imprensa.

Desta vez, durante os protestos, Magyar não escondeu que tem pretensões políticas. “Viemos dizer para aquelas pessoas no poder que estamos fartos”, disse o ex-membro do partido do primeiro-ministro.

Bolsonaristas tentaram comprar instrumento de espionagem usado por Orbán

Aliados de Bolsonaro, tentaram adquirir as mesmas tecnologias de espionagem que o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán usou contra opositores.

A relação entre os dois líderes ganhou um novo capítulo nesta semana, depois de o jornal The New York Times revelar que Bolsonaro permaneceu por duas noites na embaixada da Hungria, em fevereiro 2024, levantando a suspeita de que estaria tentando evitar uma eventual prisão. Além de uma ampla agenda política que aproximou o brasileiro e o primeiro-ministro, fontes diplomáticas revelam que houve uma “coincidência” de estratégias no setor da espionagem.

A tática usada em Budapeste era de resgatar o que era conhecido na União Soviética como “kompromats”, histórias inventadas contra inimigos. Para montar um esquema de difamação, o governo Orbán se valeu do uso da ferramenta de espionagem Pegasus contra jornalistas e personalidades públicas.

O software foi o mesmo que Carlos Bolsonaro tentou negociar para que fosse adquirido no Brasil em 2021. Se concretizado, o Pegasus teria a função de alimentar com informações externas ao governo a chamada “Abin paralela”. Além de hackear celulares, o Pegasus também possui um sistema para invasão de computadores.

Mas a licitação para a aquisição de uma ferramenta de espionagem revelou uma briga interna entre o alto comando militar e Carlos Bolsonaro.

Nos EUA, o Departamento de Comércio colocou em sua “lista vermelha” a empresa israelense NSO Group, fabricante Pegasus.

No caso do uso da tecnologia pela Hungria, foi revelado ainda em 2021 que Orbán teria colocado em sua mira 300 ativistas, jornalistas e opositores.

A suspeita de grupos de direitos humanos, como a Anistia Internacional, é de que a informação coletada servia também para criar campanhas de difamação. Dois casos ganharam ampla repercussão, por meio de um sistema sofisticado.

Um deles seria uma suposta fraude por parte da deputada Karalin Cseh, acusada de ter embolsado recursos da UE. O processo na Justiça jamais caminhou. Mas a jovem médica passou a ser bombardeada por insultos e até a divulgação de fotos sugerindo um comportamento inadequado para as famílias mais conservadoras do país.

Em uma outra história, o prefeito de Budapeste e que faz parte da oposição é acusado de estar tentando vender prédios e bens públicos, principalmente para empresários estrangeiros e fundações ligadas aos grupos de centro-esquerda na Alemanha.

Num dos casos, um adesivo fazendo referência de apoio ao islamismo foi grudado no carro de um opositor, e imediatamente a imprensa simpática ao líder populista estava no local para veicular a imagem da suposta aproximação entre o político e grupos de estrangeiros.

A imprensa aliada ao regime também faz parte da campanha. Num dos jornais, supostas gravações publicadas em trechos cortados revelariam como ONGs financiadas por George Soros estariam manipulando a imprensa internacional contra o governo. Horas depois, o próprio governo disseminou a notícia, enquanto Orbán recorreu a uma rádio de um dos aliados para denunciar as “mentiras” que a imprensa divulga sobre ele, em coordenação com ONGs estrangeiras.

Relatos ainda apresentados o Parlamento Europeu acusam o governo húngaro de tentar controlar rádios, televisões e jornais, foi um passo fundamental para a erosão da democracia.

Segundo os depoimentos levados ao Parlamento, um dos métodos usados é o de gravar jornalistas e membros de ONGs para, depois, usar frases e declarações de forma distorcida. Num dos casos, um ativista foi contatado por um doador interessado em fornecer dinheiro para apoiar a sociedade civil. Outras ofertas incluem “consultoria” com salários importantes, além de pedidos para palestras.

Mas, nas conversas, os relatos apontam que o que seria um primeiro contato logo se transformava em entrevistas gravadas secretamente, para arrancar frases das pessoas que seriam alvos de campanha de difamação.

Bolsonaro escolhe entre o martírio e o exílio

Alguém já perguntou a Bolsonaro se ele quer ser preso para tentar se tornar mártir ou se prefere pedir asilo para escapar à prisão? Os dois dias do recente carnaval que ele dormiu, comeu e bebeu dentro da embaixada da Hungria não trouxeram resposta a essa pergunta, nem mesmo para ele.

Bolsonaro sabe que, pelo menos no seu caso, o direito de ir e vir garantido pela Constituição está com os dias contados. E que somente o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e a maioria dos seus pares,fazem uma ideia de quando ele finalmente será preso, mas não revelam.

Inevitável que seja preso. Nos seus quase 30 anos como deputado federal, nos quatro como presidente da República e, no mínimo, nas primeiras semanas de 2023, Bolsonaro só pensou numa coisa: derrubar a democracia no Brasil e instalar no seu lugar um regime autoritário, disfarçado ou não.

Uma vez, nos anos 1980, ele foi preso e não gostou da experiência – quem gostaria? Planejava explodir bombas em quartéis insatisfeito com o salário que recebia. Protegido pela linha dura do Exército, concordou em despir a farda em troca da patente de capitão e de um soldo maior.

Mais de uma vez ao longo do seu (des)governo, Bolsonaro disse que jamais seria preso outra vez, e que só morto conseguiriam retirá-lo do poder. Era imexível, imbrochável e irremovível. Imbrochável, não sei se é, mas depois de removido do poder, o medo mora ao seu lado e lhe faz a cama.

Antes tido como terrorista, Nelson Mandela virou mártir na prisão e dali saiu para se eleger presidente da África do Sul e ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Hitler foi preso por tentar dar um golpe de Estado. Escreveu um livro, saiu da prisão, construiu um partido e se elegeu chanceler da Alemanha.

Dilma foi presa e torturada pela ditadura militar de 64. Retomou a militância política e se elegeu presidente duas vezes. Lula foi preso quando o PT ainda engatinhava. Foi novamente preso depois de se eleger e se reeleger presidente. Governa pela terceira vez, de olho na quarta.

Seja pela idade avançada e a saúde que inspira cuidados, seja por estar oito anos inelegível, uma vez que venha a ser condenado à pena superior a dos golpistas recolhidos à Penitenciária da Papuda, Bolsonaro seguirá apostando na política? Quem acampará em sua memória?

Ele não leva jeito. Perdeu a oportunidade de pedir asilo à Hungria para escapar da prisão. Se Donald Trump derrotar Joe Biden e Bolsonaro estiver solto, o destino do capitão inativo poderá ser mais ameno. Em Budapeste, faz frio e neva. Em Orlando, na Flórida, o sol brilha.


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