18/05/2024 - Edição 540

Poder

Exército decide acabar com mensagem de aniversário do golpe militar

Governo retomará recomendações da Comissão da Verdade sobre a ditadura

Publicado em 01/03/2023 11:07 - Yurick Luz (DCM), Congresso em Foco, Ricardo Noblat (Metrópoles), Josias de Souza e Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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O comandante do Exército, general Tomás Paiva, decidiu que neste ano não haverá a leitura da Ordem do Dia alusiva ao dia 31 de março, aniversário do golpe militar no Brasil. Ele foi escolhido para substituir o general Júlio César Arruda, demitido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

De acordo com informações da colunista Carla Araújo, do UOL, fontes da caserna afirmaram que a decisão de não divulgar uma mensagem pela data se deu pelo fato de que, segundo o novo comandante, “o normal era não existir”.

Tomás Paiva ainda tem dito aos seus subordinados que o momento é de “retomada da confiança” e busca de pacificação. A decisão, portanto, seria um aceno ao governo Lula.

Paiva também fez chegar ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes a informação de que não haveria resistência na cúpula do Exército a respeito das investigações de militares envolvidos nos atos terroristas promovidos por bolsonaristas em Brasília, no dia 8 de janeiro.

Vale destacar que após o fim da ditadura (1964-1985), a mensagem continuou a ser lida em quartéis e divulgada à sociedade. A Ordem do Dia, no entanto, deixou de ser lida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1995.

Durante os governos do presidente Lula (PT) foram publicadas Ordens do Dia em 2004, 2005 e 2006. Nos demais anos não houve essa divulgação. Na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) também não houve a leitura da mensagem. Já no primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, a mensagem de aniversário do golpe havia sido retomada.

“Instituição de Estado, apolítica e apartidária”

Tomás Paiva divulgou as diretrizes da sua gestão. No documento de 40 páginas, o comandante afirmou que deseja fortalecer a imagem do Exército como uma “instituição de Estado, apolítica e apartidária”.

“Os quadros da Força devem pautar suas ações pela legalidade e legitimidade, mantendo-se coesos e conscientes das servidões da profissão militar, cujas particularidades tornam os direitos e os deveres do cidadão fardado diferentes dos demais segmentos da sociedade”, escreveu o general.

O comandante destacou que o Exército se pauta pelo respeito à Constituição, afirmando que os integrantes da Força “trabalharão para que o Exército Brasileiro continue a cumprir suas missões previstas na Carta Magna, alinhado aos anseios da sociedade e aos valores e tradições nacionais”.

As diretrizes também apontam as mudanças climáticas como um dos desafios e que o “Exército continuará trabalhando para o aperfeiçoamento da gestão ambiental e para o desenvolvimento e a difusão de tecnologias que permitam estabelecer um modelo de aproveitamento sustentável das riquezas disponíveis, sobretudo na região amazônica, garantindo maior integração e proteção àquela área”.

A divulgação das diretrizes é praxe no início das gestões dos comandantes para apontar as prioridades, objetivos e premissas que orientarão a sua gestão. Paiva foi escolhido pelo presidente Lula (PT) no dia 21 de janeiro, substituindo o general Júlio César de Arruda. Arruda foi substituído após os atos golpistas de 8 de janeiro, realizados por bolsonaristas que se organizavam na frente dos quartéis do Exército.

Fogo amigo

Um suspiro de alívio foi compartilhado pelos integrantes do Alto Comando das Forças Armadas depois que o ministro Alexandre de Moraes, amparado em decisões anteriores dos seus pares, fixou a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar os acusados pela tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Há crimes que militares cometem e crimes militares. Os últimos, cabem à Justiça Militar julgá-los. A distinção é feita pelo artigo 124 da Constituição: membro das Forças Armadas responde a tribunais castrenses quando pratica delito definido pela legislação militar. Nos demais casos, responde à Justiça comum.

Atentar contra a democracia não é crime militar, não está previsto no Código Penal Militar, mas sim no Código Penal, ao qual estão sujeitos os que não vestem farda e os que a vestem. A democracia foi afrontada no 8 de janeiro, e o patrimônio público sofreu severos danos. Foram dois crimes, no mínimo. Punam-se os culpados.

O ministro-brigadeiro Joseli Parente Camelo, futuro presidente do Superior Tribunal Militar, reconheceu o acerto da decisão de Moraes. Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, também, embora tenham preferido guardar silêncio. Livraram-se do abacaxi de investigar e punir alguns dos seus subordinados.

Haverá chiadeira entre os de sempre – militares da reserva, frequentadores de clubes militares ou de mesas de jogo de dominó que, à falta do que fazer e saudosos da ditadura, não se conformam com a derrota de Bolsonaro e a eleição de Lula. Mas de quantas legiões eles dispõem? Sem tropas, valem pouco ou nada.

O comandante do Exército, general Tomás Miguel Paiva, telefonou anteontem para o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. A mesma fala que o levou a ser indicado para o cargo voltou a reverberar e a lhe criar problemas. Em reunião com oficiais do Comando Militar do Sudeste, em 18 de janeiro, ele disse: “Não dá para falar com certeza que houve qualquer tipo de irregularidade [na eleição]. Infelizmente, foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas aconteceu”.

Paiva se diz vítima de fogo amigo. Alguém gravou seu discurso e postou em grupos de WhatsApp. A Monteiro, assegurou que o trecho destacado foi tirado de contexto e que ele não teve a intenção de ofender Lula. Naquela ocasião, ele também afirmou:

“A diferença nunca foi tão pequena, mas o cara fala assim: ‘General, teve fraude’. Nós participamos de todo o processo de fiscalização, fizemos relatório, fizemos tudo. Constatou-se fraude? Não. Estou falando para vocês. A gente constatou fraude? Não.”

“Este processo eleitoral que elegeu o atual presidente e que não elegeu o ex-presidente foi o mesmo processo eleitoral que elegeu majoritariamente um Congresso conservador. Elegeu majoritariamente governadores conservadores”.

“Imagina se a gente tivesse enveredado para uma aventura. A gente não sobreviveria como país. A moeda explodiria, a gente ia levar a um bloqueio econômico jamais visto. Aí sim iria virar um pária e o nosso povo viveria as consequências. Teria sangue na rua. Ou vocês acham que o povo iria ficar parado?”

A conversa de Paiva com os oficiais durou 50 minutos. Ele leu notícias sobre planos do PT de promover uma reforma nas Forças Armadas. E disse que é preciso contê-los e preservar o Exército: “Faz parte da cadeia de comando segurar para que isso não ocorra. Agora fica mais difícil, mas nós vamos segurar, porque o Brasil precisa das Forças Armadas. Da nossa postura, da nossa coesão, da nossa manutenção dos valores, da crença na hierarquia e disciplina, do nosso profissionalismo, depende a força política do comandante e dos comandantes de Força para obstar qualquer tipo de tentativa de querer nos jogar para o enquadramento”.

As Forças Armadas são de direita e, por ora, bolsonaristas. Uma vez que não pisem fora das quatro linhas da Constituição, tudo bem, ou menos mal.

Análise

Em condições normais, a celebração do aniversário de 59 anos do golpe militar no próximo dia 31 de março seria um insulto. Depois da intentona bolsonarista de 8 de janeiro, a divulgação de mensagens autocongratulatórias dos comandantes das Forças Armadas adicionaria à ofensa uma inaceitável dose de escárnio.

Nesse contexto, a decisão do comandante do Exército, general Tomás Paiva, de eliminar do calendário a veiculação de um texto alusivo ao golpe não é apenas conveniente, mas imperiosa. Espera-se que os comandantes da Marinha e da Aeronáutica façam o mesmo.

Lula foi leniente com o insulto durante o seu primeiro mandato. Comandava o Exército na época o general Francisco Albuquerque. Em 2004, Albuquerque enalteceu a ditadura e contestou evidências de que militares assassinaram adversários. Foi mantido no cargo. Caiu o superior hierárquico, o então ministro da Defesa José Viegas Filho. Foi substituído pelo vice-presidente José Alencar.

Em 2006, Alencar teve que se desincompatibilizar do cargo de ministro para disputar a reeleição na chapa de Lula. Substituiu-o Waldir Pires, ex-ministro do governo João Goulart, deposto pelo golpe. O general Francisco Albuquerque não se deu por achado.

Em 31 de março daquele ano, dia da posse de Waldir Pires na Defesa, Albuquerque divulgou mensagem dizendo que o Exército “orgulha-se do passado.” Foi poupado por Lula novamente. O general só foi trocado em 2007, depois da reeleição.

Presa e torturada durante a ditadura, Dilma Rousseff proibiu as notas festivas das Forças Armadas no dia do golpe. Admirador confesso do torturador Brilhante Ustra, Bolsonaro transformou a celebração do regime militar numa festa ininterrupta. Deu no 8 de janeiro.

O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes acaba de decidir que os militares suspeitos de contribuir para o quebra-quebra golpista, por ação ou omissão, serão julgados na Suprema Corte, não na Justiça Militar. Contra esse pano de fundo, festejar um golpe de Estado seria deboche inaceitável.

Governo retomará recomendações da Comissão da Verdade sobre a ditadura

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva anunciou hoje na ONU que irá recuperar as 29 recomendações apresentadas pela Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes da ditadura, para avaliar se elas estão sendo cumpridas e de que maneira poderá implementar as ações sugeridas.

A declaração foi dada pelo ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, num evento organizado pelo governo brasileiro com representantes de todo o mundo. Numa sala lotada com embaixadores estrangeiros em Genebra, o chefe da pasta acusou o governo de Jair Bolsonaro de “glorificar a morte”.

“No que tange ao legado da Comissão Nacional da Verdade, o ministério está estruturando uma coordenação especializada para diagnosticar o cumprimento das recomendações publicadas no relatório final da comissão em 2014”, disse.

Segundo ele, as 29 recomendações visam “promover a adoção de medidas e politicas publicas para prevenir as violações de direitos e assegurar a não repetição e promover a reconciliação nacional”.

“Trata-se de um documento de estado fundamental parta a transição brasileira”, afirmou.

Ao UOL, o ministro explicou que as medidas “fazem parte de um processo de transição de fato para a democracia”. “As recomendações não são estranhas ao que determina a Constituição”, garantiu. “Muito do que vivemos no Brasil nos últimos quatro anos é por não ter lidado de maneira correta com as questões de memória e justiça”, disse.

As recomendações

Dois de dois anos de trabalho, a Comissão criada no governo de Dilma Rousseff apresentou propostas sobre como o estado brasileiro deveria lidar com as consequências da ditadura. Mas sua implementação foi amplamente asfixiada nos anos seguintes.

Na ONU, Bolsonaro chegou ainda a escrever cartas negando que um golpe tivesse ocorrido em 1964 no Brasil e elogiou ditadores como Augusto Pinochet e Alfredo Stroessner.

Entre as medidas recomendadas, a Comissão pede:

– O reconhecimento por parte das Forças Armadas de sua responsabilidade institucional pelos abusos ocorridos entre a ditadura.

– Punição de agentes públicos que tenham cometido tortura e assassinatos

– Colocar um fim às comemorações do golpe militar de 1964

– Modificar currículo das academias militares e policiais para reforçar pontos como democracia e direitos humanos, além do reforço de valores democráticos na educação nacional.

– Dignificação do sistema prisional e instituição de ouvidorias do sistema penitenciário

– Desmilitarização das polícias militares estaduais e fim da Justiça Militar estadual

– Manutenção da busca por corpos e preservação da memória

– Ampliação a abertura dos arquivos militares

Fim das comemorações

Silvio Almeida ainda aplaudiu a sinalização por parte das Forças Armadas de que não haverá, em 2023, uma comemoração da data de 31 de março, dia do golpe de 1964. Durante o governo de Bolsonaro, a ação havia sido retomada e foi amplamente criticada por movimentos de direitos humanos e até pela ONU.

“Não há o que se comemorar. Só lamentar. Isso mostra que o Brasil parece ganhar uma certa estabilidade institucional”, disse Silvio Almeida.

Ele ainda reforçou que o governo vai recuperar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, desmontada por Bolsonaro.

“Se o Brasil não encontrar mais ninguém, não importa. O Brasil tem o deve de ficar procurando. Esse é um dever ético e político que assume com os brasileiros que não querem mais ver isso ocorrer”, disse.

Para ele, essas ações devem servir de símbolo do dever de reparação e prestação de contas com comunidade internacional.


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