18/05/2024 - Edição 540

Poder

Do cheque de Queiroz à joia da Arábia, mutretas com Michelle sobem patamar

Gestão Bolsonaro conseguiu dar ao presente saudita uma aparência de suborno

Publicado em 06/03/2023 9:42 - Leonardo Sakamoto, Josias de Souza e Jamil Chade (UOL), Henrique Rodrigues (Fórum) – Edição Semana On

Divulgação Foto: Alan Santos/PR

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Pode-se dizer que o mandato de Jair alçou a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro a outro patamar. Antes, ela era envolvida em escândalos mambembes de desvio de dinheiro público, como os R$ 89 mil em cheques depositados em sua conta pelo faz-tudo Fabrício Queiroz. Agora, é o centro de um escândalo internacional com joias de R$ 16,5 milhões dadas pelo governo da Arábia Saudita em 2021, que a família Bolsonaro tentou trazer como seu item particular.

Ao invés de trazer as joias no próprio voo de volta ao Brasil, o que faria com que o caro presente fosse incorporado ao patrimônio do Estado brasileiro, a família Bolsonaro montou outro esquema: elas vieram muquiadas na mala de um militar que assessorava o então ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque. O escândalo foi revelado pelo jornal O Estado de S.Paulo.

Tipo a galera que mete uns eletrônicos escondidos nas cuecas para não pagar imposto no aeroporto. Mas a comparação para por aqui, porque seria o equivalente a esconder mais de 3 mil iPhones de topo de linha na mala.

A Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos apreendeu o mimo, exigindo que fossem pagos 50% de impostos mais 25% em multa para liberar o produto, declarados como um pertence da primeira-dama. Daí, a história piora, com Bolsonaro usando a estrutura do Estado brasileiro, o que inclui pressionar servidores e até usar aviões da FAB para transportar mensageiros, a fim de pressionar pela liberação. Graças à honestidade de funcionários da Receita, não conseguiram.

Após a apreensão, um ofício do gabinete da Presidência ao gabinete do ministro pede as joias “para análise quanto à incorporação ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.

A ascensão dos escândalos envolvendo Michelle foi meteórica. É só pensar que, anos atrás, ela se calava diante de R$ 89 mil em sua conta bancária.

A quebra de sigilo de Queiroz mostrou que ele depositou R$ 72 mil na conta da primeira-dama entre 2011 e 2018, conforme revelou, em 2020, a revista Crusoé. Sua esposa, Márcia de Aguiar, colocou mais R$ 17 mil – informação obtida pela Folha de S.Paulo. No total, R$ 89 mil.

De acordo com o Ministério Público do Rio de Janeiro, Queiroz era o operador do desvio de recursos públicos do gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro. O Coaf havia apontado, em 2018, um depósito de R$ 24 mil do faz-tudo para Michelle. Jair prontamente disse, naquele ano, que isso era parte da devolução de um empréstimo que ele fez ao amigo de longa data. Porém, nunca comprovou nada.

Questionado no dia 23 de agosto de 2020, por um repórter do jornal O Globo sobre os depósitos feitos por Queiroz na conta da primeira-dama, o presidente da República afirmou: “Minha vontade é encher tua boca com uma porrada“. Logo depois, chamou o jornalista de “safado”. Estava em frente a uma igreja, a Catedral Metropolitana de Brasília, quando fez a ameaça.

Michelle Bolsonaro, “lançada” pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, à Presidência da República em 2026 e hoje à frente do PL Mulher, usou uma velha tática do marido. Ou seja, diante de uma denúncia avassaladora, diga apenas que é fake news e culpe a mídia.

“Quer dizer que eu ‘tenho tudo isso’ e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo, hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa imprensa vexatória”, afirmou nas redes. A resposta, claro, não é para a sociedade como um todo, mas para o naco do rebanho do seu marido, que ainda acredita que a família é honesta.

Vai colar? Daí depende. A primeira-dama, que é evangélica, deve conhecer bem o capítulo 32 do livro de Êxodo, a parte da Bíblia em que os judeus construíram um bezerro de ouro para ser adorado após Moisés demorar em descer do Monte Sinai, onde estava recebendo os Dez Mandamentos.

Se quiser sair candidata, Michelle vai ter mais alguns anos para tentar provar de que não adora bezerros de ouro. Por enquanto, temos uma ex-primeira-dama envolvida em um esquema que, secretamente, tentou dar um golpe na Receita para ficar com ouro enquanto, publicamente, se mostra como alguém que segue à risca as leis da Terra e dos céus.

Gestão Bolsonaro conseguiu dar ao presente saudita uma aparência de suborno

As aparências, como se sabe, enganam. As coisas nem sempre são tão ruins quanto parecem. Elas podem ser piores. É o que sucede no caso das joias de R$ 16,5 milhões enviadas ao Brasil em outubro de 2021 pela ditadura saudita por intermédio do então ministro das Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque. Avacalharam-se todos os ritos. Um presente milionário ganhou aparência de suborno.

Em circunstâncias republicanas, o anel, o colar, o relógio e o par de brincos seriam registrados num formulário preenchido em muitas vias. A descrição apresentaria as peças como presentes do Reino da Arábia Saudita à República Federativa do Brasil. Os diamantes embarcariam em mala diplomática. E desembarcariam no Brasil como bens de propriedade da União, isentos de tributação.

Percorrendo os atalhos da gestão Bolsonaro, as joias foram enfiadas na mochila de Marcos André dos Santos Soeiro, um assessor militar de terceiro escalão do Ministério de Minas e Energia. Voaram em avião de carreira. Ao pousar em Guarulhos, o portador dos diamantes pegou a fila dos viajantes que não têm “nada a declarar” às autoridades alfandegárias. Foi fisgado pelo aparelho de raio-x da Receita Federal. Deu no que está dando.

Antes de noticiar a encrenca, o Estadão foi ouvir o almirante Bento Albuquerque. Em conversa gravada, ele disse que as joias seriam para Michelle Bolsonaro. Alegou que desconhecia a natureza do presente. Embora atenda às conveniências, a versão é desconexa.

Falta nexo ao blábláblá do desconhecimento porque nem mesmo num conto das arábias alguém daria um presente de R$ 16,5 milhões sem informar ao portador o valor da mercadoria a ser transportada. A menção a Michelle soou conveniente porque a Constituição não atribui funções de Estado à primeira-dama. Seria mais fácil sustentar a tese segundo a qual os diamantes seriam propriedade privada.

Bolsonaro sempre cultivou a pretensão de manter relações privilegiadas com o ditador saudita, o príncipe Mohammed bin Salman. Visitou-o em outubro de 2019. Antes do encontro, disse a jornalistas: “Acho que todo mundo gostaria de passar uma tarde com o príncipe, principalmente vocês mulheres. Vou ter essa oportunidade hoje. Nós dois temos certa afinidade.”

Depois da conversa, Bolsonaro declarou: “A forma como o príncipe herdeiro tem me tratado, e eu também no tocante a ele… É como se fôssemos velhos conhecidos ou até mesmo irmãos. Isso me orgulha.” Quer dizer: do ponto de vista de Bolsonaro, as joias seriam o presente de uma espécie de cunhadão multimilionário que Michelle jamais terá.

Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro anunciou que Mohammed bin Salman, seu “irmão” por afinidade, visitaria o Brasil. Dizia-se que a viagem ocorreria em março. Depois, foi empurrada para maio. O eleitor brasileiro acabou retirando o capitão da Presidência antes que ele fosse visitado pelo “cunhadão” árabe da primeira-dama. Ficou-se sabendo, porém, que era grande o interesse do regime saudita no Brasil.

Informou-se, por exemplo, que um fundo de investimento soberano do reino da Arábia Saudita, o Fundo de Investimento Público, dono de uma carteira de investimentos estimada em US$ 500 bilhões, planejava investir algo como US$ 10 bilhões no Brasil.

Ou seja: a ditadura saudita tinha mais de 16 milhões de razões para mimar o casal Bolsonaro. Em 2021, quando os diamentes foram embarcados na mochila do assessor do almirante Bento Albuquerque, o projeto de reeleição do capitão ainda não havia saído dos trilhos. Mimá-lo ainda poderia ser bom para os negócios.

Lavrado em 26 outubro de 2021 na alfândega do aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, o auto de infração da Receita Federal anota que o então ministro Bento Albuquerque recebeu a seguinte orientação: “…Para que os bens fossem considerados de propriedade da União, fruto de presentes do Reino da Arábia Saudita para a República Federativa do Brasil, o Ministério de Minas e Energia deveria pleitear formalmente o reconhecimento desta condição…”

Dois dias depois da apreensão, o então chefe de gabinete do Ministério de Minas e Energia, José Roberto Bueno Junior, enviou ofício ao setor que cuida do acervo oficial da Presidência da República. Anotou no documento: “Se faz necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”.

No dia seguinte, 29 de outubro de 2021, o chefe de gabinete de Bento Albuquerque recebeu resposta assinada por Marcelo da Silva Vieira, então chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República. O texto continha uma obviedade e uma brecha.

No trecho óbvio, o funcionário do Planalto anotou que era preciso registrar os presentes num formulário oficial. No outro trecho, o servidor escreveu que, consumado o encaminhamento das joias, seria feita uma “análise quanto à incorporação ao acervo privado do presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”. Abriu-se uma brecha para que os diamantes virassem “acervo privado” do clã Bolsonaro.

Em nota divulgada depois que as joias viraram escândalo, a Receita Federal informou que a conversão do presente saudita em patrimônio da União “exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida”. O texto foi categórico: “Isso não aconteceu neste caso.”

Ainda refugiado na Flórida, Bolsonaro declarou: “Eu estava no Brasil quando esse presente foi ofertado lá nos Emirados Árabes para o ministro das Minas e Energia. O assessor dele trouxe, em um avião de carreira, e ficou na alfândega. Eu não fiquei sabendo. Dois, três dias depois, a Presidência notificou a alfândega que era para ir para o acervo.”

Tudo muda no Brasil, exceto a desfaçatez. Não importa a natureza nem a dimen$ão do escândalo. Bolsonaro sempre reage à maneira do avestruz. Espremido pela realidade, enfia a cabeça no cinismo.

Marisa recebeu joias milionárias, mas agiu bem diferente de Michelle Bolsonaro

O escandaloso caso protagonizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ao tentar entrar no Brasil, enganando a Receita Federal, com joias avaliadas em R$ 16,5 milhões, “recebidas como presente” pela ex-primeira-dama Michelle, das mãos da monarquia absoluta da Arábia Saudita durante uma viagem de Estado, o que é crime pela legislação brasileira, uma vez que os objetos valiosíssimos deveriam ser cedidos ao acervo da Presidência da República, mostra as diferenças gritantes existentes no trato com a coisa pública entre o líder de extrema direita que deixou o Palácio do Planalto há pouco mais de dois meses e seus antecessores.

No final de 2003, quando Lula estava prestes a completar o primeiro ano de seu primeiro mandato, a então primeira-dama Marisa Letícia acompanhou o petista numa viagem oficial aos Emirados Árabes Unidos. Lá, num evento apenas para mulheres, a então esposa do presidente brasileiro recebeu joias caríssimas da esposa do xeique Zayed bin Sultan Al Nahyan, o fundador dos Emirados Árabes, Fátima, erroneamente chamada pela imprensa brasileira de “rainha”.

Com absoluta consciência de que não ficaria com aquela fortuna em ouro, diamantes e pedras preciosas, Marisa Letícia ainda assim não recusou o “presente”, já que o ato poderia ser considerado um insulto aos governantes locais. Ela recolheu os objetos, repassou ao protocolo de Estado que acompanhava o casal presidencial brasileiro e imediatamente explicou aos assessores as razões para não ter recusado o “mimo”.

Dias depois, o Palácio do Planalto anunciou o destino das joias, que obviamente não ficariam com a então primeira-dama por uma questão de probidade e de ética. Tudo foi relatado por uma matéria do jornal Folha de S.Paulo, de 13 de dezembro de 2003, escrita pelo repórter Wilson Silveira. Curiosamente o texto ainda mantém acento agudo no vocábulo “jóia”, o que viria a mudar anos depois com a Reforma Ortográfica.

“A primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva decidiu abrir mão das jóias que ganhou de presente no sábado passado da rainha Fátima, dos Emirados Árabes, durante jantar oferecido às mulheres que integravam a comitiva oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na viagem ao Oriente Médio. Segundo o Planalto, desde o momento em que recebeu as jóias, Marisa sabia que não ficaria com elas, mas não poderia recusar o presente porque, além de ser um gesto mal-educado, poderia criar um incidente diplomático. A assessoria do Planalto argumentou que Marisa se encontrava em país estrangeiro, de cultura diferente da republicana, e não poderia explicar o motivo pelo qual não poderia aceitar o presente. O destino das jóias será anunciado formalmente pelo Palácio do Planalto e uma explicação deverá ser enviada por via diplomática aos Emirados Árabes. Segundo o Planalto, ela não vai recusar as jóias, que já foram aceitas. Simplesmente não as considera um presente pessoal, e sim um presente para o país. No momento, a primeira-dama estuda uma forma de se desfazer do presente sem ferir suscetibilidades do casal real dos Emirados Árabes, onde ela e Lula foram recebidos com deferência conferida a poucos estrangeiros”, reportou Silveira à Folha no “longínquo” ano de 2003.

Investimento saudita anunciado por Bolsonaro nunca ocorreu, diz relatório

Apesar de ter sido presenteado meses depois com pedras preciosas no valor de R$ 16,5 milhões para sua esposa, Jair Bolsonaro fracassou em conseguir resultados concretos de sua viagem para a Arábia Saudita, ainda no início do governo.

Num documento que examinou a política externa brasileira nos quatro anos de Bolsonaro e produzido pela equipe de transição no Itamaraty, a constatação foi de que os anúncios feitos na época de que os sauditas investiriam no país jamais foram traduzidos em realidade.

O informe admite que houve “aprofundamento das relações com países do Golfo”. Mas deixa claro que a situação das viagens aos sauditas não resultou em ganhos para o país.

“No caso dessa aproximação, o investimento político (duas missões presidenciais) não se traduziu na atração de investimentos alardeada pelo governo Bolsonaro. Com a Arábia Saudita, os investimentos não se concretizaram e as exportações brasileiras têm enfrentado restrições, sobretudo no setor de proteína animal”, disse.

Naquele momento, Bolsonaro chegou a falar que estava voltando ao Brasil com a promessa de investimentos.

Numa coletiva de imprensa no final de outubro de 2019, os então ministros da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, anunciaram que a Arábia Saudita decidiu investir 10 bilhões de dólares no Brasil.

Isso aconteceria supostamente por meio do fundo soberano do país, alimentado pela receita do petróleo. Naquele momento, o tom era de mostrar que existia uma suposta confiança internacional em relação a Bolsonaro, algo que jamais se confirmou.

“Ao longo da última década, não teve nada parecido com isso”, disse Onyx. Para ele, o fundo era uma “confirmação gigantesca” da retomada da confiança externa no país.

Um dos maiores potenciais de aumento de exportações de carnes brasileiras, o mercado saudita não promoveu a abertura desejada.

Na mesma viagem, Bolsonaro disse que se considerava como “quase irmão” do príncipe saudita, Mohammed bin Salman, acusado de graves violações de direitos humanos e de ter ordenado a morte de um jornalista.

No documento da equipe de transição, a análise aponta que atração de investimentos emiratis e cataris, por outro lado, mostrou-se mais bem-sucedida.

No levantamento, o grupo ainda criticou a forma pela qual o Brasil se alinhou aos interesses de Israel, afetando a capacidade de o país se manter como um interlocutor na região.

“A partir de 2019, as relações do Brasil com Israel estiveram associadas à inflexão nas posições históricas do Brasil acerca da questão do Oriente Médio, refletida em votos favoráveis a posicionamentos israelenses em organismos internacionais, notadamente na Assembleia Geral da ONU e no Conselho de Direitos Humanos, mas com reflexo também na AIEA”, afirmou.

“Tal curso de ação, adotado sem contrapartida, contribuiu para minar a credibilidade e o papel do Brasil como ator com influência nos dossiês médio-orientais e não resultou em benefícios na relação com Tel Aviv, que já era intensa antes dessa inflexão”, disse.

“Ao contrário, os padrões de votação e a possibilidade de transferência da embaixada em Israel para Jerusalém, anunciada durante a campanha presidencial pelo então candidato Bolsonaro, provocaram atrito junto à Autoridade Palestina e outros países árabes”, alertou.

“Motivaram, também, moções condenatórias da Liga dos Estados Árabes (LEA) e o cancelamento, pelo Egito, de visita que o então chanceler Aloysio Nunes faria ao Cairo, logo após as eleições de 2018. A exclusão da Palestina do roteiro das duas viagens presidenciais ao Oriente Médio também gerou mal-estar com os palestinos”, completou.


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