18/05/2024 - Edição 540

Poder

Diplomacia de Bolsonaro prejudicou brasileiros e violou leis

Sob o bolsonarismo, Itamaraty teve perseguição e hoje vive déficit de diplomatas

Publicado em 22/02/2023 8:49 - Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Arthur Max/AIG-MRE

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Num levantamento de mais de cem páginas do legado deixado pelo governo de Jair Bolsonaro na diplomacia brasileira, o grupo de trabalho instaurado pela equipe de transição, ainda em 2022, concluiu:

A política externa bolsonarista prejudicou os brasileiros e os interesses nacionais, além de ter violado a Constituição e ter transformado o país num fator de instabilidade regional.

As informações fazem parte do raio-x que foi produzido pelo grupo de trabalho e que, apesar de ter concluído sua função ainda em dezembro, não havia divulgado publicamente os resultados de sua análise.

Agora, o raio-x faz um resumo do que foi a diplomacia sob Bolsonaro.

A política externa do governo Bolsonaro pautou-se por decisão deliberada de isolamento, justificada por postura de negacionismo frente a desafios globais.

– Considerando que a política externa deriva da agenda interna, o desmantelamento de políticas internas afetou a substância e o alcance da atuação externa.

– A combinação entre o desmantelamento de políticas internas e o isolamento na política externa abalou a imagem internacional do país, que perdeu capacidade de fazer avançar seus interesses.

– Houve rompimento com posições tradicionais e, em alguns casos, foram promovidas pautas inconsistentes com mandamentos de ordem constitucional e legal;

Esse processo foi especialmente grave em áreas como meio ambiente, saúde, direitos humanos e integração regional;

“A política externa brasileira sob o governo Bolsonaro pode ser resumida a uma palavra: retrocesso”, disse o informe. Para o grupo, “ninguém foi capaz de descrever tão bem a nossa atual situação no mundo quanto o próprio ex-chanceler Ernesto Araújo, ao reivindicar a condição de pária para o Brasil”.

“Essa opção pelo isolamento foi ainda mais perniciosa se comparada ao período de maior prestígio internacional, com os governos Lula e Dilma. O universalismo assertivo, que buscava no mundo as oportunidades para a superação dos passivos socioeconômicos do país, foi substituído por isolamento reacionário, que vê no meio externo a fonte de conspirações que justificam posturas negacionistas e rupturas com a tradição diplomática brasileira no pós-redemocratização”, afirmou.

“Os prejuízos aos interesses brasileiros ficam evidentes em várias áreas, das quais se destacam de forma ilustrativa, pelo seu simbolismo, as de meio ambiente e clima, saúde, integração regional e direitos humanos”, disse.

Uma das áreas destacadas pelo informe é o setor ambiental, foco do Itamaraty por décadas.
“Esse legado foi dilapidado”, lamentou.

“Ao discursar na ONU, Bolsonaro insistiu na tese de que o país é “vítima de uma guerra de desinformação sobre Amazônia e Pantanal” e responsabilizou “índios e caboclos” pelas queimadas. O Brasil passou a hostilizar parceiros tradicionais como a Alemanha e a Noruega, por conta de desentendimentos na gestão do Fundo Amazônia, além de desistir de sediar a COP 25 do clima, prevista para ocorrer no Brasil em 2019″, disse.

“Houve, ademais, inúmeras manifestações de autoridades brasileiras colocando em dúvida a gravidade da crise ambiental, na contramão da comunidade científica representada pelo Painel Intergovernamental sobre a Mudança do Clima (IPCC). Compromissos anunciados pelo Brasil foram recebidos com ceticismo, à luz da deterioração dos indicadores ambientais do país”, avaliou o informe.

Diante dessa situação, na avaliação do grupo, a combinação entre o desmonte de políticas públicas, em nível interno, e o predomínio de visão isolacionista do mundo, no nível externo, “afetou a imagem do país e prejudicou a capacidade brasileira de influir sobre temas da agenda global”.

“Ao assumir posturas negacionistas, o Brasil perdeu protagonismo na diplomacia ambiental, colocou em xeque esforços multilaterais de contenção da pandemia e promoveu visão dos direitos humanos inconsistente com o ordenamento jurídico doméstico”, disse.

Os esforços de se distanciar da América Latina e de outras regiões em desenvolvimento também trouxeram repercussões.

“Em seu entorno, o país passou de catalisador de processos de integração a fator de instabilidade regional. A política para a África foi abandonada e pouca atenção foi dedicada a comunidades brasileiras no exterior”, insistiu.

O documento ainda sugeria dez medidas prioritárias para os 100 primeiros dias de governo, que visavam a “restaurar posicionamentos e recuperar espaços de atuação”.

As medidas incluíam:

– o regresso à UNASUL e à CELAC,

– a organização da cúpula dos países amazônicos,

– a retomada da política externa para a África,

– a preparação para a presidência brasileira do G20,

– o retorno ao Pacto Global para Migrações,

– a revisão das normativas de concessão de vistos humanitários a haitianos e afegãos,

– a formulação de marco legal para a cooperação técnica brasileira,

– a normalização do relacionamento com a Venezuela,

– a retirada do Brasil do Consenso de Genebra e, finalmente,

– a reposição de recursos humanos para viabilizar a execução da nova política externa brasileira pelo MRE.

Sob Bolsonaro, Itamaraty teve perseguição e hoje vive déficit de diplomatas

O Brasil não tem o número de diplomatas suficientes sequer para ocupar de forma adequada as embaixadas que conta pelo mundo e, enquanto a intensificação da política internacional ganha novas dimensões, o país atravessa um momento de encolhimento de seu corpo diplomático e corte de verbas.

O alerta faz parte do informe preparado pelo grupo de trabalho que atuou na transição do governo de Luiz Inácio Lula da Silva em temas relacionados com política externa. O documento produzido pelo grupo estava sendo mantido em sigilo e, nesta quinta-feira, foi publicado.

O raio-x concluiu que existe uma “insuficiência de recursos humanos e concursos para as carreiras de diplomata, oficial de chancelaria e assistente de chancelaria”. Mas também alerta para uma perseguição contra diplomatas sob a gestão de Jair Bolsonaro.

De acordo com o documento, o Serviço Exterior Brasileiro conta com 2978 servidores na ativa. “O Ministério das Relações Exteriores conta com 1.561 diplomatas, 777 oficiais de chancelaria e 394 assistentes de chancelaria, além de 246 funcionários do Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPEs)” disse.

Mas a constatação é de que, “ao longo dos últimos anos, o MRE tem enfrentado redução significativa do número de servidores, especialmente administrativos, o que impõe sérios desafios para assegurar o atendimento das crescentes demandas institucionais do ministério”.

A Secretaria de Gestão Administrativa do Itamaraty estima que o déficit de servidores é de 538 diplomatas, 1.116 oficiais de chancelaria e 761 assistentes de chancelaria.

“Nesse sentido, cumpre observar que, nos últimos dez anos, houve redução líquida na força de trabalho do ministério de mais de 700 servidores administrativos”, afirmou o documento.

“Essa drástica redução do número de servidores ocorre de forma inversamente proporcional ao crescimento das representações diplomáticas brasileiras ao redor do mundo. Em 2003, havia 136 postos no exterior, ao passo que atualmente há 216 representações”, destacou.

Uma das formas para equacionar o déficit de diplomatas ampliar o número de vagas propostas em concursos, o que dependeria de autorização do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão”.

Mas o informe é categórico, inclusive alertando para a falta de diversidade do corpo diplomático.

“O atual quadro de funcionários do Serviço Exterior Brasileiro (SEB) é insuficiente para alavancar a retomada do protagonismo internacional do país e a composição atual do corpo de servidores não reflete adequadamente a diversidade da população brasileira”, disse.

De acordo com o grupo, não há dados sobre a proporção de negros entre servidores e, em um universo de 1500 diplomatas, apenas 23% são mulheres.

“O Programa de Ação Afirmativa do MRE foi afetado pela perda de parcerias com SEPPIR, CNPq e Fundação Palmares”, disse. “Apenas 30% das mulheres diplomatas atingem o topo da carreira, em comparação com 53,8% dos homens”, completou.

Corte de verbas

O documento também alerta para o corte de recursos na diplomacia nacional. Segundo o raio-x, no Projeto de Lei Orçamentária para 2023, o Ministério das Relações Exteriores foi contemplado com R$ 2,2 bilhões para suas operações. O orçamento total do Itamaraty corresponde a apenas 0,1% do Orçamento Geral da União.

“A dotação atual é cerca de R$ 700 milhões inferior ao orçamento empenhado em 2015, quando os valores são corrigidos pela inflação. Além disso, cerca de 80% das despesas do ministério são executadas no exterior e estão, portanto, sujeitas à variação cambial. A depreciação cambial nos últimos anos, com expressiva queda do real frente ao dólar (e.g. taxa de câmbio média de 2014 foi de R$ 2.35/USD; de 2019 foi de R$ 3,94/USD e em 2022 está em torno de R$ 5,15/USD) indica, na prática, desde 2014, redução de cerca de 25% no orçamento do MRE em dólares”, alertou.

Para que os contratos possam acontecer, a equipe de transição destacou que seriam necessários pelo menos R$ 600 milhões para permitir que os trabalhos possam ocorrer.

Caça às bruxas

De acordo com o documento, o Ministério das Relações Exteriores “não ficou imune à ofensiva do bolsonarismo contra as instituições do Estado brasileiro”.

“A ausência de motivação e o medo estão presentes nos corredores do ministério. Instaurou-se atmosfera de “caça às bruxas” já nos primeiros dias da gestão Bolsonaro, pautada pela intolerância e pela aversão ao contraditório no seio do órgão”, disse.

“Sob a égide de fundar um “novo Itamaraty”, toda uma geração de experientes embaixadores foi colocada de lado ou enviada para órbitas mais externas da ação diplomática brasileira”, destacou.

“Os diplomatas mais jovens tampouco foram poupados. São vários os casos de perseguição motivados por critérios completamente alheios ao desempenho funcional, como a participação em governos anteriores, simpatia por partidos progressistas, parentesco com integrantes de legendas de oposição, postagens em redes sociais consideradas críticas às políticas atuais, entre outros”, completou.

De acordo com o levantamento, o Itamaraty foi submetido a um “insulamento” que tem “contribuído de forma decisiva para o descolamento do seu corpo funcional dos grandes temas que marcam o cotidiano do país”.

“O ministério é, hoje, ator solitário, impermeável ao intercâmbio com as organizações da sociedade civil, com os partidos políticos, com a academia, com os entes federativos e com toda a diversidade de forças que compõem o Poder Legislativo”, constata.

“Reverter essa situação será tarefa árdua que tem início com a recuperação de um dos principais patrimônios do Estado brasileiro: o resgate de uma diplomacia profissional, retirando-a do clima de apatia e conformismo, por meio do retorno à arena pública, do fim das perseguições de seus membros e da maior diversidade de seu corpo funcional”, completou.

Sem reciprocidade, governo Lula avalia volta de vistos para americanos

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva estuda a possibilidade de voltar a aplicar vistos de turistas aos cidadãos americanos, revertendo uma decisão de que havia sido tomada em 2019 pelo então presidente Jair Bolsonaro e que jamais foi retribuída pela Casa Branca aos brasileiros.

O governo solicitou ao Itamaraty uma avaliação interna sobre o impacto que a medida teve para o fluxo de turistas no Brasil. As primeiras indicações são de que:

– o gesto de Bolsonaro teve um efeito mínimo na entrada de americanos no país em 2019;

– a concessão não mudou de forma significativa a realidade do turismo no Brasil.

Diante da pandemia em 2020 e 2021, os dados não podem ser conclusivos. Mas o governo vai examinar se ainda faz sentido manter a concessão, principalmente diante da imposição americana de vistos aos brasileiros.

Na diplomacia, tais gestos ocorrem de forma recíproca. Países fecham acordos pelos quais seus nacionais podem circular entre os dois locais, respeitando as mesmas regras de vistos.

A equipe de transição do governo Lula, que trabalhou sobre política externa nos últimos dois meses de 2022, propôs formalmente que o Brasil volte a exigir vistos de turistas para americanos, canadenses, australianos e japoneses.

As informações fazem parte do raio-x que foi produzido pela transição. Apesar de ter concluído sua função ainda em dezembro, o grupo de trabalho não havia divulgado publicamente os resultados de sua análise.

O raio-x faz um resumo do que foi a diplomacia sob Bolsonaro

Uma das propostas do grupo é para que, nos cem primeiros dias do governo, diversos atos de política externa de Jair Bolsonaro fossem revogados.

Um deles seria o decreto de março de 2019 que dispensa visto de visita para os nacionais da Austrália, do Canadá, dos EUA e do Japão.

Na avaliação do grupo, “a norma vigente vai de encontro ao princípio da reciprocidade”. Ou seja: os brasileiros continuam precisando de vistos para entrar nesses países, apesar da oferta feita por Bolsonaro.

“Ademais, não há dados que indiquem qualquer tipo de ganho com o atual regime de isenção. Ao contrário, o decreto implica perda significativa de recursos de renda consular”, destacou.

O grupo pede que isso seja revogado nos primeiros cem dias de governo. Mas admite que isso “demandará adaptação das repartições consulares atingidas”.

Haitianos e afegãos podem ter situação reavaliada no Brasil

No mesmo documento, a equipe de transição sugeriu a revogação do sistema de entrada de haitianos e afegãos, alertando que o modelo adotado era insustentável.

“A situação de haitianos e afegãos é crítica”, diz. “No caso do Haiti, a sustentabilidade da política de vistos, nos primeiros meses de governo, dependerá da situação de segurança para funcionamento da embaixada e do volume de demandas relacionadas a pedidos de reunião familiar, que têm prioridade legal. No caso do Afeganistão, será necessária atenção à capacidade de processamento de pedidos e de acolhida local”, destacou.

Uma das críticas se refere à portaria de setembro de 2021, que estabelece regras para acolhida humanitária para nacionais afegãos.

O Brasil é o único país que continua a emitir vistos humanitários em grande escala para afegãos.”

“Em razão da escassez de opções de acolhida em terceiros países, a demanda pelo visto brasileiro tem sido bem superior ao que se havia estimado. Apenas na Embaixada em Teerã há 7 mil agendamentos pendentes”, disse.

“Além das dificuldades de processamento de pedidos de visto, a acolhida impõe desafios à União e aos entes federados, de modo que se torna necessária a edição de novo instrumento mais adequado às realidades brasileira e do refugiado”, alerta.

Para o grupo, a “demanda de vistos torna a manutenção do atual regime insustentável”. “Faz-se necessária a edição de nova Portaria que dê termo ao regime anterior e estabeleça as novas regras de entrada no país de refugiados afegãos”, completa.

O grupo também solicitou a revogação de uma portaria de abril de 2022 que determinava regras para acolhida humanitária para nacionais haitianos.

“Faz-se necessária a edição de nova Portaria que dê termo ao regime anterior e estabeleça o novo regime de acolhida no país de haitianos”, defendeu.

 


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