18/05/2024 - Edição 540

Poder

Comitê da ONU colocará pressão pelo fim de Lei de Anistia no Brasil

Publicado em 22/04/2022 12:00 -

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Membros do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) revelaram com exclusividade à coluna que avaliam recomendar ao Brasil que coloque um fim à Lei de Anistia no país, permitindo que crimes como o da tortura ou de desaparecimentos possam ser investigados.

Pela primeira vez em quase duas décadas, o órgão realiza um exame da situação de direitos humanos no Brasil e, nos próximos meses, chamará o governo para uma sabatina. A partir da coleta de informações e respostas dadas pelas autoridades, o Comitê apresentará suas recomendações.

Nas últimas semanas, o órgão sinalizou que, de fato, a questão do regime militar entre 1964 e 1985 está em foco, além de temas como violência policial, indígenas, movimento negro e a própria democracia.

No caso da recuperação do passado, a meta do órgão não é apenas escrever a história do país. Mas principalmente lidar com a questão da impunidade, até hoje sem uma resposta.

O Comitê não tem como obrigar um estado a seguir suas recomendações, uma realidade que a ONU vive em diversos setores. Mas um gesto neste sentido ampliaria a pressão política e o constrangimento internacional sobre o país.

No início de abril, num documento enviado ao Itamaraty e que já serve de indicação do que será o foco dos peritos, o Comitê da ONU pede ao governo "informações sobre o progresso feito para responsabilizar os autores de abusos históricos dos direitos humanos durante o período da ditadura militar (1964-1985), incluindo a elaboração da implementação concreta das recomendações da Comissão de Anistia e da Comissão Nacional da Verdade".

O pedido foi interpretado em Brasília como um sinal de que os peritos vão tentar reabrir o debate.

Para o governo Bolsonaro, o evento de 1964 não foi um golpe e mecanismos que existiam para examinar a questão da tortura foram minados, o que abriu um profundo mal-estar entre os departamentos de direitos humanos dos organismos internacionais e os corredores de Brasília.

O órgão ainda quer saber sobre as condenações obtidas por tais violações e os pagamentos de indenização feitos às vítimas, incluindo a reparação fornecida aos povos indígenas nos casos em que foram identificadas violações de seus direitos.

Outro aspecto do documento vai direto no centro do debate. O Comitê pede para que o governo comente "sobre a compatibilidade da Lei de Anistia de 1979 com as recomendações das comissões da verdade relevantes e as disposições das leis internacionais".

Peritos ouvidos pela coluna confirmaram que existe um consenso entre os juristas internacionais de que uma lei de anistia não pode ser usada para impedir a punição de crimes, como o da tortura.

Ao longo dos últimos três anos, o governo Bolsonaro passou a ser acusado por relatores da ONU de estar violando pactos internacionais e de tentar rescrever o passado do país, minimizando a tortura e outros crimes.

Em diferentes cartas, as entidades solicitaram um posicionamento do governo e criticaram o que acreditam que sejam graves violações de direitos humanos.

Essa não é a primeira vez que a Lei de Anistia aparece no debate na ONU. Mas, diante das novas revelações que confirmam a tortura no Brasil durante os Anos de Chumbo, o exame internacional ganha uma nova dimensão.

Em 2021, o Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados recomendou que a Lei de Anistia não possa ser usada para impedir que casos de crimes da ditadura militar (1964-1985) sejam investigados e punidos.

Entre as propostas, a entidade pede ao estado brasileiro:

(b) remover quaisquer impedimentos legais às investigações sobre os desaparecimentos forçados perpetrados durante o regime militar que ainda não cessaram, em particular no que diz respeito à aplicação da Lei de Anistia.

Dois anos antes, um documento elaborado pelo governo de Jair Bolsonaro sobre desaparecimentos forçados no Brasil simplesmente omitiu a existência da ditadura militar no país entre 1964 e 1985. O informe entregue pelo Itamaraty em junho de 2019 sobre a situação do crime de desaparecimento no país ainda deixa claro que defende que qualquer tipificação do crime no Brasil seja limitada pela Lei de Anistia.

Também chamou a atenção de peritos o fato de o governo insistir que, caso o desaparecimento forçado seja tipificado na lei brasileira, ele terá de se ater aos limites impostos pela Lei de Anistia. Ou seja, qualquer pessoa envolvida num tal ato não poderia ser punida. Um projeto de lei tramita neste sentido no Congresso.

Naquele momento, o Instituto Vladimir Herzog alertou a ONU sobre o caráter "extremamente grave e problemático" de apresentar a questão da tipificação do crime limitada à Lei de Anistia.

"É uma interpretação extremamente equivocada que está em absoluto desacordo com os regulamentos e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que postulam que as leis de anistia não podem e não devem ser aplicadas em casos de crimes como tortura e desaparecimento forçado", afirmou o instituto.

"Como já apresentado pela Comissão Nacional da Verdade em sua recomendação, o Estado brasileiro deve proceder com a determinação da responsabilidade criminal, civil e/ou administrativa dos agentes públicos que praticaram graves violações de direitos humanos", insiste a entidade."É urgente que o país enfrente uma vergonhosa e imperdoável história de impunidade para os crimes da ditadura."

Carta do jornalista Jamil Chade ao general Mourão: investigar o passado é nossa garantia de futuro

General Mourão,

Com uma risada, o senhor humilhou a democracia e esnobou a possibilidade de uma investigação sobre crimes cometidos pelo estado, alegando que aquilo fazia parte da história. Que isso tudo já teria passado.

Quando as marcas da tortura ainda estão frescas na alma, passou para quem?

Quando estamos presenciando no século 21 atos que rimam com aqueles de 1964, de qual história estamos falando?

Sim, aquelas vozes nos áudios que revelam a tortura durante o regime militar já morreram. Mas não as vozes das vítimas e nem a da liberdade.

Lidar com o passado é um direito de uma sociedade. De fato, ao optar por não olhar para crimes do passado, o senhor está cometendo uma violação de direitos: a negação da Justiça.

Lidar com o passado não é apenas para passá-lo a limpo. Mas um dos instrumentos mais poderosos para prevenir atrocidades futuras. Pelo mundo, um dos melhores índices de previsão de violência numa sociedade é como ela lidou com atrocidades no passado. Nisso, nosso passado nos condena.

Na África, Europa, América Latina e em tantas outras regiões do mundo, reconhecer e investigar o passado serve como alicerce para garantir a resiliência de uma nação contra eventuais crimes.

Países mais propensos a viver períodos de turbulência, golpes e opressão são justamente aqueles que, em tempos de paz, não criaram os mecanismos necessários para monitorar violações de direitos humanos. Nisso, nosso presente também nos condena.

Investigar o passado não serve apenas para ampliar os detalhes em livros de história sobre algo que ficou para trás. E sim para criar uma consciência clara de uma recusa a ceder diante da opressão e censura.

Investigar o passado é sinalizar a uma sociedade que existe uma aposta clara de que o futuro nos reserva dias melhores.

Durante o período de ditaduras, a desumanização foi uma das estratégias mais profundamente adotadas para minar qualquer resistência. Hoje, recuperar a verdade é o único caminho para humanizar uma sociedade.

Reconhecer os crimes do passado é parte fundamental de nosso futuro. Dar nomes aos criminosos, explicar os mecanismos de tortura e as estratégias de silenciamento são pilares de um processo lento de construção de um estado de direito.

General, o senhor sugeriu que não há o que apurar, já que os supostos suspeitos não estão vivos.

A investigação de um crime do estado, entretanto, não faz sentido apenas se o acusado está vivo. Ela é uma exigência sempre que a democracia estiver viva.

E vamos lutar diariamente para que ela não faça parte do passado. Caso contrário, nosso futuro nos condenará.

Saudações democráticas

Jamil

Vozes do STM sobre tortura gritam que a ditadura militar não foi gripezinha

O Brasil já teve um presidente que saiu da vida para entrar na história. Bolsonaro sai da história para cair na vida. Se dependesse do capitão, a história seria apenas um conjunto de mentiras rigorosamente verdadeiras. Nesse contexto, as vozes que mencionam a tortura nas 10 mil horas de gravações das sessões do Superior Tribunal Militar servem para recordar aos brasileiros que o mito é apenas um mitômano.

As gravações cobrem o período de 1975 a 1985 —dez dos 21 anos de ditadura. Vieram à luz graças a uma requisição judicial feita pelo advogado Fernando Augusto Fernandes em 2006. O material caiu nas mãos do historiador Carlos Fico em 2017. Por uma trapaça da sorte, ele decidiu ceder trechos de julgamentos em que a Corte militar analisou casos de tortura à jornalista Míriam Leitão, uma torturada que a família Bolsonaro trata com ironia e deboche.

Não é que as gravações revelam o desconhecido. O material apenas reforça algo que já restou fartamente demonstrado: a tortura foi uma política de Estado durante a ditadura. Os torturadores cumpriam determinações de seus superiores. Em 2013, arrastado a contragosto para um depoimento na Comissão da Verdade, o coronel Carlos Brilhante Ustra disse o seguinte: "Quem deveria estar aqui é o Exército brasileiro, não eu".

Decorridos 37 anos do fim da ditadura, o governo civil mais militar da história submete os brasileiros a duas novas modalidades de tortura. Numa, Bolsonaro chama o torturador Ustra de "herói" e seu filho Eduardo debocha de vítimas da tortura. Noutra, o Ministério da Defesa celebra o golpe militar de 1964 como "marco histórico da evolução política brasileira". Num ambiente assim, os áudios do Superior Tribunal Militar são úteis porque gritam para a sociedade que a ditadura não foi a gripezinha que o negacionismo historiográfico de Bolsonaro tenta fazer crer.


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