18/05/2024 - Edição 540

Poder

Com Carluxo como alvo da PF, Abin Paralela se encontra com Gabinete do Ódio

Federal detectou que Carlos Bolsonaro recebia da Abin detalhes sobre inquéritos

Publicado em 29/01/2024 9:33 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Orlando Calheiros (Intercept_Brasil) – Edição Semana On

Divulgação

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O vereador Carlos Bolsonaro, filho 02 do ex-presidente Jair Bolsonaro, é alvo de uma operação da Polícia Federal, nesta segunda (29), sobre pessoas que teriam sido destinatárias de informações produzidas por espionagem ilegal durante o governo de seu pai. Dessa forma, a Abin Paralela se encontra com o Gabinete do Ódio.

Agentes da PF realizaram mandados de busca e apreensão na residência do vereador (no mesmo condomínio Vivendas da Barra, onde seu pai também tem casa) e no seu gabinete, na Câmara do Rio. É difícil imaginar que a paranoia de Carluxo manteria material ilegal em sua casa ou trabalho, mas sua equipe pode não ter sido tão cuidadosa.

Comentei aqui logo após a operação que teve como alvo o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência, o deputado federal Alexandre Ramagem, na semana passada, que a óbvia conexão surgiria mais cedo ou mais tarde. Afinal, o governo Bolsonaro não ficaria satisfeito em espionar seus desafetos apenas para proteção pessoal. Eles usariam as informações como munição de forma sistemática.

Rodrigo Maia deu elementos para confirmar essa suspeita quando afirmou ao UOL que desconfiava estar sendo monitorado quando presidente da Câmara dos Deputados, uma vez que suas reuniões eram alvo de ataques de bolsonaristas radicais nas redes sociais tão logo aconteciam. O que aponta que tanto ele quanto os seus interlocutores eram monitorados.

A PF vem revelando como funcionava a máquina de espionagem de Jair Bolsonaro entre 2019 e 2022. Pelas informações até o momento, já podemos dizer que esse é um dos maiores escândalos desde o fim da ditadura militar. E estamos apenas no começo, porque essa investigação é apenas sobre o software israelense First Mile, usado para monitorar o deslocamento.

E grampos em celulares? E a espionagem usando órgão públicos, como a Receita Federal?

Bolsonaro já havia instalado o Gabinete do Ódio nas dependências do Palácio do Planalto, com pessoas pagas pelo erário para atacar adversários políticos, partidos, juízes, jornalistas, como apontaram depoimentos na CPMI das Fake News. Atribuiu-se a Carlos Bolsonaro a responsabilidade pela montagem e coordenação do tal gabinete, mesmo que não tivesse cargo oficial no governo de seu pai.

Em sua delação premiada, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-faz-tudo de Jair, confirmou que três assessores presidenciais usavam essa estrutura no Planalto para produzir conteúdo difundido pelo bolsonarismo nas redes sociais e aplicativos de mensagens para atacar instituições.

O Gabinete do Ódio, segundo ele, era formado por Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz subordinados a Carlos Bolsonaro, que ditava o que deveria ser produzido

A PF pode mostrar como a estrutura de ataque a pessoas vistas como entraves aos planos do bolsonarismo era abastecida por outra estrutura que atropelava garantias constitucionais e liberdades individuais, esvaziando a privacidade e fazendo arapongagem na vida pessoal e profissional de milhares de brasileiros.

Isso comprovaria, mais uma vez, que vivemos sob um governo de características autoritárias, que vigiava a todos e, ao primeiro sinal de algo que poderia ir contra seus interesses, acionava suas milícias digitais visando a neutralizar a “ameaça” a fim de garantir a sua perpetuação no poder.

Essa constatação não é exatamente surpreendente. Quando ele ainda era candidato à Presidência da República, em 2018, os que tinham apreço pela democracia avisaram que ele dobraria as leis e as instituições do Estado brasileiro às suas próprias necessidades.

Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, isso ficou explícito. “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”, disse ele.

Ele falava sério quando disse “não estamos aqui pra brincadeira”. Ao longo de seu mandato, enfraqueceu ou sequestrou instituições públicas do Poder Executivo voltadas ao monitoramento e controle. Pior: dobrou órgãos à sua vontade, como a Polícia Rodoviária Federal – que ajudou em ações golpistas ao dificultar a votação de eleitores de Lula e fazer vistas grossas ao golpismo nas estradas.

É conhecida a preocupação de Jair com o filho 02, estrategista de suas redes digitais e que não conta com foro privilegiado ao contrários dos irmãos Flávio e Eduardo. Essa preocupação deve ter subido um pouco mais nesta segunda. Com isso, os aliados do ex-presidente devem dobrar a artilharia contra a PF, o MPF e o STF. Exercem, dessa forma, seu direito de espernear diante da percepção de que o cerco da lei está se fechando.

Com pai e filhos, clã Bolsonaro gabaritou no escândalo da Abin

Todo escândalo tem um prazo de maturação. No caso da espionagem bolsonarista, havia pus no fim do túnel pelo menos desde 2020. Em março daquele ano, o ex-ministro palaciano Gustavo Bebianno revelou o plano de Carlos Bolsonaro para criar uma Abin paralela. No mês seguinte, o próprio Bolsonaro declarou em reunião ministerial, que dispunha de sistema de inteligência “particular”. Só agora, com quatro anos de atraso, a Polícia Federal tocou a campainha dos endereços de Carluxo. Bolsonaro ainda aguarda na fila.

Bebianno morreu poucos dias depois de jogar os planos do Zero Dois no ventilador. Depois disso, a engrenagem de informação do Estado foi desvirtuada para perseguir adversários e proteger a família real. Além de bisbilhotar desafetos de Bolsonaro, a Abin foi acionada para socorrer o primogênito Flávio Bolsonaro na encrenca da rachadinha e o novato Jair Renan num caso tráfico de influência.

Avalizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, a presença de Carluxo no rol dos encrencados ganha o noticiário menos de 24 horas depois de Bolsonaro ter declarado numa live que “a tal Abin paralela” é ficção. A manifestação foi ao ar no domingo, a partir de Angra dos Reis, onde Bolsonaro tira férias do ócio na companhia dos filhos Flávio, Eduardo e Carlos. Boa hora para uma reunião familiar na praia.

Ao chegar à família Bolsonaro, a PF injeta lógica na investigação. Na semana passada, foram varejados endereços do deputado Alexandre Ramagem. O material coletado clandestinamente na época em que Ramagem comandava a Abin tinha como destinatários finais Bolsonaro e a Carluxo, gerente da rede de ódio a serviço do pai nas plataformas digitais. Com pai e filhos, o clã Bolsonaro gabaritou no escândalo da Abin.]

Abin paralela repete estruturas de espionagem clandestina da ditadura

No final da década de 1950, o embaixador brasileiro Manuel Pio Corrêia, montou no Itamaraty uma estrutura clandestina de espionagem para monitorar e investigar cidadãos brasileiros e estrangeiros supostamente envolvidos em atividades comunistas. A estrutura era tão secreta que seguiu funcionando à revelia do presidente João Goulart.

Anos mais tarde, em 1966, sob os auspícios da Ditadura Militar e seu famigerado Sistema Nacional de Informações, o SNI, a estrutura de espionagem montada pelo embaixador foi então “oficializada” e recebeu o nome de Centro de Informações do Exterior, ou apenas CIEx.

A função do órgão também seria de espionagem: ele monitorava cidadãos brasileiros no exterior, especialmente exilados políticos, e as atividades de “subversivos” estrangeiros no país.

Mas eles foram além: em conluio com outras ditaduras do Cone Sul, participaram do planejamento e execução de sequestros de opositores políticos brasileiros e estrangeiros – tanto em solo nacional, quanto no exterior.

Estima-se que o órgão de espionagem esteja, direta ou indiretamente, envolvido em pelo menos 68 casos de desaparecimentos forçados ou assassinatos de brasileiros por agentes da Ditadura Militar. O número de vítimas estrangeiras é desconhecido.

Leitores atentos devem ter notado que escrevi “oficializado” entre aspas, pois o CIEx nunca constou na estrutura formal do Itamaraty. Tanto que, apesar de inúmeros relatos, a sua existência só foi comprovada em 2008.

E havia um motivo para isso. A estrutura de espionagem totalmente clandestina do órgão permitia que seus agentes da ditadura agissem de forma sorrateira. Na maioria dos casos, totalmente indetectável, inclusive por agentes de outros órgãos de inteligência do país.

E essa máquina era voltada não apenas contra os opositores da ditadura, mas também contra seus próprios aliados: embaixadores, políticos, empresários, artistas, etc.

A vigilância do CIEx recaía sobre todos. Por isso mesmo, seus trabalhos não estavam sujeitos às normas internas do Itamaraty ou da própria Constituição.

Esse departamento de espionagem seguia quase que exclusivamente as determinações de seus diretores, que se reportavam diretamente ao comandante do SNI. Este, por sua vez, estava subordinado diretamente ao então presidente da República.

E o CIEx não estava isolado nessa atividade. Outros órgãos de inteligência, como o Centro de informações do Exército, o CIE do, o Centro de Informações da Marinha, o CENIMAR, e o Centro de Informações da Aeronáutica, CISA, e o próprio SNI, seguiam o mesmo padrão de atuação por meio de estruturas clandestinas implementadas nos órgãos oficiais.

Estruturas clandestinas que se reportavam, mais uma vez, ao presidente da República. Estruturas que culminavam – vejam só – nos chamados “centros clandestinos de tortura e detenção” da ditadura.

Mas que também alimentavam a política nacional com informações, inclusive falsas, favorecendo aliados do regime e prejudicando aqueles que, por um motivo ou outro, eram considerados “problemáticos” pelos militares.

E aqui atingimos o ponto crucial, pois a história, ao que parece, se repetiu. Um inquérito da Polícia Federal revela que talvez estejamos diante de uma estrutura semelhante no caso da Abin paralela.

Segundo a investigação, entre os anos de 2019 e 2022, o deputado federal Alexandre Ramagem, na época diretor-geral da Abin, montou na instituição uma verdadeira estrutura clandestina de espionagem de cidadãos brasileiros com o único intuito de favorecer o então presidente Jair Bolsonaro.

Essa estrutura foi utilizada para monitorar e produzir informações a respeito de seus opositores políticos, incluindo-se aí jornalistas, e para alimentar, por meio de relatórios apócrifos, narrativas falsas que circulavam nas redes sociais.

Mas isso não é tudo. Segundo o mesmo inquérito, a estrutura clandestina de espionagem foi utilizada para ajudar os advogados de defesa do senador Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas e até para monitorar os amigos dos filhos do ex-presidente.

Com efeito, havia na Abin uma estrutura paralela, muito semelhante às ramas clandestinas dos órgãos de inteligência da ditadura.

E, a exemplo delas, havia também nessa Abin paralela uma estrutura cujo funcionamento não estava sujeito às normas internas e aos trâmites costumeiros da instituição, tampouco à Constituição.

Segundo o inquérito policial, tudo isso era feito de forma deliberada para que essa operação dissimulada não pudesse ser rastreada e denunciada por outros servidores.

Não por coincidência, consta no inquérito que todas essas ações foram executadas por policiais federais de confiança de Alexandre Ramagem. Este, por sua vez, é notoriamente um homem de confiança da família Bolsonaro.

Aqui surgem algumas questões importantes.

A primeira é a mais óbvia: quem na hierarquia do governo poderia ordenar a criação dessa Abin paralela? No passado, as ramas clandestinas da ditadura se remetiam ao presidente da República. E essa?

A segunda é que é fundamental compreender se essa estrutura de espionagem clandestina deixou de atuar após as eleições de 2022, ou se seguiu, como o antigo aparato de vigilância montado pelo embaixador Pio Corrêa, agindo à revelia do atual presidente.

A Polícia Federal, inclusive, investiga se Alexandre Ramagem continuou sendo municiado com informações privilegiadas após seu afastamento da direção-geral da Abin.

A terceira talvez seja a mais urgente: compreender se essa é a única estrutura de espionagem clandestina criada durante o governo Bolsonaro ou se existem outras.

E digo isso lembrando especialmente de algumas denúncias sobre aquisições suspeitas de ferramentas de vigilância pelo Exército Brasileiro, da Cellebrite UFED, e das tentativas de aquisição do sistema Pegasus e Sherlock pelo vereador Carlos Bolsonaro.

O que eles pretendiam com isso?

Encerro o texto com esses questionamentos, mas também com a certeza de que estamos diante de um dos maiores escândalos do governo Bolsonaro. Talvez o maior até o momento.

A existência de uma estrutura clandestina de espionagem não é um evento trivial. Pelo contrário, é um sinal claro de que se desenhava no coração do Executivo um estado de exceção.

Regimes autoritários como a Ditadura Militar não nascem da noite para o dia e não se sustentam no vento. Eles nascem e se sustentam por meio de estruturas clandestinas como o antigo CIEx, o SNI, e o DOI-CODI.

Estruturas clandestinas como essa Abin paralela.


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