18/05/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro tira o corpo fora e culpa General Heleno por planos golpistas

Vídeo assombra pela banalidade que revestiu a reunião do golpe; inquérito revela desinformação para incentivar atos em quartéis

Publicado em 12/02/2024 11:09 - Leonardo Sakamoto, Josias de Souza e Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação PR

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Jair Bolsonaro jogou nas costas do general Augusto Heleno a responsabilidade pela proposta de espionagem à campanha eleitoral de Lula, em 2022, pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência), durante entrevista à TV Record. “É o trabalho da inteligência dele, que eu não tinha participação nenhuma”, disse.

Campeão de Arremesso de Responsabilidade à Distância, era esperado que o ex-presidente ganharia mais uma medalha na modalidade em meio à operação da Polícia Federal, da última quinta (8), que investiga o golpe de Estado que ele tentou dar. Mas, vale lembrar, o chefe era ele, que não fez nada diante da informação.

A reunião ministerial de 5 de julho de 2022 ficará para a História como a primeira do gênero em que um golpe de Estado foi discutido de frente para as câmeras, reforçando a tênue fronteira entre a autoconfiança e a burrice no bolsonarismo. Nela, Heleno contou que pretendia infiltrar agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) nas campanhas de Lula e Bolsonaro.

“O problema todo disso é se fazer qualquer coisa. Se houver qualquer acusação de infiltração desse elemento da Abin em qualquer um dos lados…”, disse o general antes de ser interrompido por Jair, que pediu para o assunto ser tratado de forma privada na sala dos dois.

“Ah, mas o monitoramento era dos dois lados.” Sim, pequeno gafanhoto, mas um desses lados, justamente o que planejava a espionagem, não só sabia que estaria sendo arapongado, como também daria a palavra final sobre o uso do conteúdo.

Não há registro de que Bolsonaro repreendeu imediatamente e publicamente o general por propor espionar a campanha do adversário, o que seria o correto a ser feito. Afinal, ele era o presidente da República e superior de Heleno, tinha essa responsabilidade. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional levou bronca apenas porque resolveu tratar do assunto na reunião.

Jair até deu uma passadinha de pano no aliado: “Não vejo nada demais naquilo. O Heleno queria se estender sobre o assunto, eu falei que não era o caso de ficar entrando em detalhes. Vai fazer uma operação, faça. A Abin tem esse poder de fazer operações e preservar as pessoas até”, disse.

A Agência pode muita coisa, mas não tudo – como espionar ilegalmente milhares de pessoas durante os primeiros anos do governo Bolsonaro, o que foi descoberto por investigação da PF.

O general Heleno ainda foi mais fundo, após levar o pito, talvez pra mostrar que não estavam de brincadeira:

“O segundo ponto é que não tem VAR nas eleições. Não vai ter segunda chamada na eleição, não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa, é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”, afirmou na reunião.

E, não contente, foi além: “Vai chegar um ponto em que não vamos poder mais falar, vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e determinadas pessoas, isso para mim é muito claro”.

Bolsonaro atribuiu a terceiros a responsabilidade pelas mortes na pandemia, pelos problemas na economia, pelas mortes nas chuvas na Bahia, pelo escândalo das joias da Arábia. Não é de se estranhar que adote o mesmo comportamento agora.

Se Augusto Heleno precisa ser investigado pelo que propôs, Bolsonaro tem que responder por aquilo que não fez, que impedir que a Abin fosse usada como instrumento para um grupo político se perpetuar no poder. Mas, claro, que este parágrafo é apenas um exercício de retórica fútil porque era o grupo dele que tentava se perpetuar. E sequestrar instituições para seu uso pessoal foi exatamente a sua meta desde seu primeiro dia de governo.

Vídeo assombra pela banalidade que revestiu a reunião do golpe

Nada foi mais assombroso na reunião de 5 de julho de 2022 do que a normalidade que revestiu o debate sobre o golpe. Escândalos costumam brotar de acontecimentos que provocam espanto, ferindo a rotina como uma lâmina afiada. Na conversa do Palácio do Planalto, o que feriu foi a normalidade. Bolsonaro expôs ao ministério sua estratégia para subverter o resultado das urnas. E o absurdo foi recebido pelo primeiro escalão do governo com uma doce, persuasiva, admirável naturalidade.

Todos os brasileiros deveriam reservar um naco do recesso carnavalesco para assistir ao vídeo, que está disponível acima. Sugere-se ao espectador um exercício singelo: percorrer a filmagem abstraindo as declarações antidemocráticas de Bolsonaro e os flertes dos seus auxiliares mais notáveis com a ilegalidade.

Ignorem-se as vulgaridades do capitão, ou o strip-tease moral dos generais Augusto Heleno (GSI), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa) e Mário Fernandes (número 2 da Secretaria-Geral da Presidência), ou o apagão ético de Anderson Torres (Justiça) e Wagner Rosário (CGU). Fixe-se a atenção no que acontece entre uma barbaridade e outra. Estava sobre a mesa o golpe. E nenhum dos presentes esboçou surpresa.

Se o encontro ministerial fosse um banquete e Bolsonaro servisse uma ratazana ensopada, nenhum dos ministros faria a concessão de um ponto de exclamação. O cardápio é golpe? Pois que seja antes da abertura das urnas, sugeriu o general Heleno. “Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. Ninguém se opôs.

O alvo é o TSE? Pois convém intensificar a “guerra”, movimentando as Forças Armadas da “linha de contato” para o início da “operação” de contestação às urnas, sugeriu o general Paulo Sérgio. Nenhuma contestação.

O objetivo é deter Lula? Pois “a gente precisa atuar agora”, insuflou Anderson Torres, “porque todos vamos se foder (sic)”. Nem sinal de objeção.

Há o risco de repetir 64? “É muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país, para que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior da conturbação no ‘the day after’, deu de ombros o general Mário Fernandes. De novo, não se ouviu uma reles contradita.

“O TCU já soltou o relatório dizendo que as urnas são seguras”, avisou Wagner Rosário, levantando a bola para Bolsonaro cortar a cabeça de Bruno Dantas, autor do documento: “Olhem pra minha cara, por favor. Todo mundo olhou pra minha cara? Acho que não tem bobo aqui.”

A atmosfera de normalidade que permeou o encontro instilou nas cenas uma impressão perturbadora: se Bolsonaro mandasse servir o ensopado de ratazana entre uma aberração retórica e outra, alguém talvez erguesse a voz: “Capricha na pimenta!”.

No limite, o ambiente capturado pelo vídeo do Planalto evoca uma expressão cunhada pela filósofa alemã Hannah Arendet. Ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, ela enxergou no comportamento do personagem traços de uma “banalidade do mal”.

Assim como os auxiliares de Bolsonaro, Eichmann era tido como bom funcionário, um exemplar cumpridor de ordens. Durante o seu julgamento, em Jerusalém, Eichmann contou que, quando os chefes da SS, a polícia nazista, foram convocados para planejar a implementação da “solução final” —a execução dos judeus— realizaram uma reunião de trabalho de uma hora e meia.

Ao final do fatídico encontro, disse Eichmann no banco dos réus, foram servidos aperitivos e um almoço. Nas palavras do servidor de mostruário do regime nazista, foi “uma pequena e íntima reunião social”. Nada mais normal.

O pedaço do encontro do Planalto captado pela filmagem durou uma hora e 33 minutos. Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, entrou mudo e saiu calado. Suponha-se que, ao retornar ao Ministério da Economia, um assessor lhe perguntasse: “Como foi a reunião?” Guedes talvez respondesse: “Nada de novo”.

Não seria despropositado supor que Marcelo Queiroga, então ministro da Saúde, tenha engolido um antiácido, para evitar os efeitos gástricos dos cafezinhos que sorveu enquanto silenciou para o absurdo. Ou que Joaquim Álvaro Pereira Leite, então titular do Meio Ambiente, tenha retornado impassível à pasta do Meio Ambiente após testemunhar as tramoias palacianas para subverter o ambiente inteiro. Ou que José Carlos Oliveira (Trabalho), tenha parado numa padaria para se abastecer pão e leite antes de se entregar ao repouso doméstico. Ou…

Nenhum espelho reflete melhor a imagem de um homem do que as suas palavras. Durante a reunião ministerial do golpe, houve dois momentos em que os oradores pressentiram que não conspiravam apenas contra a democracia, mas contra a própria autoimagem.

O general Paulo Sérgio, titular da Defesa, disse a alturas tantas considerar conveniente que “os comentários fiquem entre a gente”. Wagner Rosário, o chefe da Controladoria, teve a ilusão de que poderia fugir ao controle social impunemente: “A reunião está sendo gravada?”, indagou.

O general Braga Netto acenou negativamente com o dedo. Bolsonaro assegurou a Rosário que mandara gravar apenas sua exposição inicial. Graças a uma cilada do destino, o delator Mauro Cid guardou no seu computador a íntegra das imagens. Capturada pela Polícia Federal, a peça foi jogada no ventilador por Alexandre de Moraes.

Presenteado com a possibilidade de comprovar a normalidade que permeou o ocaso de Bolsonaro, o brasileiro é empurrado, por assim dizer, para a conclusão de que algo de muito anormal precisa ocorrer para restabelecer a sanidade nacional. A imposição de um lote de sentenças criminais que interrompam o ciclo de impunidade de Bolsonaro e dos seus cúmplices seria um bom começo.

Inquérito revela produção de desinformação para incentivar atos em quartéis

As investigações conduzidas pela Polícia Federal, e que estão descritas na decisão do ministro Alexandre de Moraes, revelam que a produção de desinformação pelo governo de Jair Bolsonaro era meticulosamente organizada, inclusive para incentivar os atos diante dos quartéis pelo Brasil depois das eleições de 2022.

Tudo aposta que havia plano, meta e recursos para a desestabilização social.

Os ataques contra a democracia, portanto, não eram involuntários. O que existia era uma produção e uso da mentira como instrumento da política e do poder.

Premeditada, a desinformação era a estratégia de ação, misturando tanto aliados na imprensa tradicional, blogueiros e verdadeiros núcleos e equipes.

Durante os quatro anos de Bolsonaro, a mentira matou e ampliou um mal-estar profundo. Afonso Borges cunhou o termo “Anos Malditos” para designar o período que atravessamos, “sob a égide do nacionalismo, ignorância e beligerância”.

Se a propaganda se mistura com a história da política, o que o inquérito revela é como ela era a aposta para justificar um golpe de estado. Nos diálogos, os próprios suspeitos admitiam que não tinham encontrado sinais de fraude nas urnas brasileiras, tese reforçada por Bolsonaro desde que fazia campanha, em 2018. Mas isso era irrelevante. A notícia da vulnerabilidade à fraude seria produzida.

Um dos trechos da peça de acusação revela, em parte, como era a rota da mentira, tanto para permitir que ela influenciasse a opinião pública, como nutrisse ações legais.

Uma desinformação com o potencial para desestruturar sociedades, abalar eleições, mudar o rumo de países, criar rupturas entre membros de uma família e instalar o ódio. Sempre com um objetivo: o poder.

O caso citado no inquérito se refere a uma suposta descoberta de vulnerabilidades das urnas eletrônicas.

A PF apontou para a existência de um “Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral” durante as investigações. O grupo composto por nomes como Mauro Cid, Fernando Cerimedo e Anderson Torres tinha como função a “produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de estado, conforme exposto no tópico ‘Das Medidas para Desacreditar o Processo Eleitoral’ constante na presente representação”.

Cerimedo, que atuou na campanha do argentino Javier Milei, e os demais membros teriam ainda produzido e divulgado “estudos”, sempre com a meta de “estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e de instalações das Forças Armadas”.

Segundo a investigação, a “divulgação (por parte de Cerimedo) em uma live de notícias fraudulentas sobre uma suposta investigação a respeito das eleições brasileiras e constatação de disparidades entre a distribuição de votos nas urnas eletrônicas mais novas e mais antigas (que implicariam anomalia favorável ao candidato de número 13 nas urnas fabricadas antes do ano de 2020) é exemplo de tal estratégia ilícita e antidemocrática”.

A conclusão da PF é de que existiria uma “ação coordenada dos integrantes do grupo criminoso para amplificação das falsas narrativas que construíram e replicavam acerca do sistema eleitoral brasileiro”.

A cronologia dos fatos apresentados demonstra que os investigados utilizaram, de forma coordenada, diversos meios para disseminar informações falsas sobre o processo eleitoral brasileiro.

A rota da desinformação funcionaria da seguinte forma:

1 Um material apresentando falsas vulnerabilidades nas urnas eletrônicas produzidas antes de 2020 foi elaborado pelo grupo, inclusive com o auxílio do que Cid chamou de “nosso pessoal”, se referindo a especialistas na área de informática (incluindo hackers).

2 Seguindo a estratégia de difusão por multicanais, o material é repassado para o argentino Fernando Cerimedo, que disseminou o conteúdo falso em uma live realizada em 4 de novembro de 2022.

3 O conteúdo da live foi resumido e propagado por vários integrantes da organização, inclusive por militares.

4 Em seguida, visando burlar as ordens judiciais de bloqueio, os investigados disponibilizaram o conteúdo em servidores localizados fora do país. Identificou-se ainda que o mesmo conteúdo também estava contido no documento nominado “bolsonaro min defesa 06.11- semifinal.docx”, endereçado ao General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, então ministro da Defesa, e encaminhado por Mauro Cid ao General Braga Netto, por WhatsApp.

5 A última etapa foi a “Representação Eleitoral para Verificação Extraordinária”, apresentada pelo Partido Liberal no dia 22 de novembro de 2022.

A tal representação foi indeferida pelo TSE por ser “ostensivamente atentatório ao Estado Democrático de Direito e realizado de maneira inconsequente com a finalidade de incentivar movimentos criminosos e antidemocráticos que, inclusive, com graves ameaças e violência vem obstruindo diversos rodovias e vias públicos em todo o Brasil”.

“No entanto, mesmo os investigados tendo ciência da chance remota de êxito, a estratégia adotada teve a finalidade de servir de fundamento para a tentativa de execução do golpe de Estado, que estava em curso desde novembro de 2022”, alerta o STF.

A decisão conclui que “a contestação formal ao resultado das eleições por um partido político, juntamente com a disseminação da narrativa falsa por meio de influenciadores digitais e alguns integrantes da mídia tradicional, com forte penetração em parcela da população ligada à direita do espectro político manteve o discurso de uma atuação do Poder Judiciário, especialmente do STF e do TSE, ilícita, extrapolando os limites constitucionais, com a finalidade de impedir a reeleição do então Presidente Jair Bolsonaro, indicando para seus seguidores o esgotamento dos instrumentos legais para reversão do resultado, devendo-se adotar uma outra forma de ação mais contundente, diante das ‘arbitrariedades’ do poder Judiciário”.


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