18/05/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro quer sua corrupção investigada só em 100 anos por historiadores

Publicado em 19/04/2022 12:00 -

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Criada em 2011, a lei de acesso à informação (LAI) prevê que é dever do Estado garantir o direito à informação ao cidadão, e que os dados devem ser disponibilizados de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Entretanto, o caminho para obter informações através da LAI sobre a Presidência da República tem sido pedregoso e barrado pelo muro do sigilo com uma frequência maior que em governos anteriores.

De acordo com dados do Painel de Acesso a Informação, mantido pela Controladoria Geral da União (CGU), a alegação de sigilo como negativa às solicitações de informações através do portal Fala.BR, aumentou 663,08% durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) em relação ao governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Se durante o período petista apenas 2,6% dos acessos à informação foram negados sob a justificativa de sigilo, sob Bolsonaro o percentual saltou para 19,84%.  O governo Temer também usou o mesmo argumento para negar 18,57% dos pedidos de informação durante a sua gestão.

“É preocupante quando você tem quase 20% de acessos negados sob alegação de sigilo de um conjunto de pedidos de informação via LAI. É um subterfúgio para driblar a transparência”, alerta o pesquisador e consultor internacional em temas de transparência e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro (Banco Mundial, UNODC, PNUD, Transparency International), Fabiano Angélico. “Por princípio, a informação é de domínio público, o sigilo é que é a exceção. É como quando usam a lei geral de proteção de dados (LGPD) para negar um pedido de informação via LAI. A lógica, no caso, é proteger os dados pessoais do cidadão comum. O que está acontecendo é o contrário, é o poderoso sendo protegido do cidadão. O que eles têm tanto a esconder?”

Bruno Morassutti, advogado e cofundador da agência de dados Fiquem Sabendo, especializada na lei de acesso à informação, faz coro com Angélico sobre o uso indiscriminado da negativa por sigilo.

“A percepção geral é que a aplicação da LAI está mais restrita e pedir informação sobre a cúpula do governo está mais difícil”, analisa Morassutti. “Porém, o sigilo serve para proteger o Estado e a pessoa comum. O servidor público não é uma pessoa comum, portanto, seus atos devem ter transparência.”

100 anos de sigilo

Da carteira de vacinação a registro de acesso dos filhos ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro levantou o véu do sigilo às informações por 100 anos. No mais recente caso, o Gabinete de Segurança  (GSI) negou acesso ao jornal O Globo, via LAI,  às informações sobre as visitas dos pastores lobistas envolvidos no escândalo do Ministério da Educação (MEC) que só poderão vir à luz em 2122. A alegação: informação não pode ser divulgada porque coloca em risco a vida do presidente e de seus familiares.

Para justificar o sigilo de um século, Bolsonaro alega que a informação pública conteria informações pessoais para se enquadrar no artigo 31 da lei 12527/2011 (LAI), que prevê que  “informações pessoais, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem […]terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção.”

“Esse é um tipo de sigilo que não está submetido à Comissão Mista de Reavaliação de Informações que atua como última instância recursal administrativa na análise de negativas de acesso à informação”, explica Bruno Morassutti sobre a CMRI cujas atribuições também estão ligadas ao tratamento e à classificação de informações sigilosas.

Em reação à manobra do presidente Jair Bolsonaro para restringir informações solicitadas via LAI, o líder da minoria no Senado, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) declarou ao Congresso em Foco que governos sérios e comprometidos com a transparência e com o eleitor não têm o que esconder da população.

“O Brasil é governado por um presidente pródigo em escândalos de corrupção. Para evitar que as suas falcatruas  venham à público, ele decreta sigilo para abafar a realidade  dos fatos”, declara o parlamentar potiguar. “Não há em nossa história recente nenhum presidente que se compare a ele no uso desse recurso. Bolsonaro vai passar para a história como um dos piores e mais mentirosos políticos de nossa geração.”

Bolsonaro quer sua corrupção investigada só em 100 anos por historiadores

O governo federal negou acesso às informações sobre as visitas ao Palácio do Planalto de Gilmar dos Santos e Arilton Moura – os pastores amigos de Jair Bolsonaro que cobravam pedágio em ouro de prefeitos para acesso aos fundos bilionários do Ministério da Educação.

A área do general Augusto Heleno (aquele que cantava "se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão", na campanha de 2018) foi a responsável por bloquear o pedido do jornal O Globo sob a justificativa de não comprometer a segurança do presidente. O que não disse, contudo, é que é a segurança eleitoral que está em jogo.

O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional está protegendo os votos do chefe, considerando que as informações sobre as reuniões entre os religiosos e Bolsonaro ou seus assessores poderiam ajudar a instalar uma CPI do MEC.

O presidente foi questionado no Twitter sobre a razão de impor sigilo de 100 anos em assuntos espinhosos e polêmicos de seu mandato. Seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro, que comanda a equipe que cuida das redes sociais do pai, respondeu: "em 100 anos, saberá".

O escárnio vem da certeza de que nada vai acontecer com o governo se sonegar informação pública de interesse público.

Não é a primeira vez que o Planalto impõe sigilo a informações sobre suas entradas e saídas. Por um século, não saberemos nada sobre as visitas de Carlos Bolsonaro e do deputado federal Eduardo Bolsonaro, por exemplo, à sede do Poder Executivo.

A Secretaria-Geral da Presidência alegou à revista Crusoé, em julho do ano passado, que isso diz respeito "à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do senhor presidente da República". Alegar intimidade é afirmar que o palácio é um playground para seus filhos brincarem de política.

Bolsonaro diz que não se vacinou contra a covid-19, mas baixou sigilo sobre sua carteira de vacinação por 100 anos. Como ele se ama demais, a chance de não ter se imunizado contra a doença é quase nula.

Mas a informação seria terrível para seus seguidores mais radicais, muitos deles negacionistas e terraplanistas, que pulam no abismo para defende-lo. Eles acreditaram quando o presidente disse que vacinas matavam crianças, produziam barba em mulheres e transformavam pessoas em jacarés. Imagina descobrir que foram tratados como massa de manobra ideológica e que seu próprio líder levou uma Pfizer no braço?

Bolsonaro gosta da passagem bíblica do "Conhecereis a verdade e ela vos libertará" (Evangelho de João, capítulo 8, versículo 32). Só não diz que a verdade é ele quem constrói.

Como o famoso mito do "estamos há três anos e três meses sem corrupção no governo federal", marca celebrada com pedidos de propina para imunizantes no Ministério da Saúde, compra de Viagra muito acima do preço pelo Ministério da Defesa e sobrepreço em licitações de ônibus escolares rurais e kits de robótica no Ministério da Educação.

Sigilo sobre os encontros de pastores com Bolsonaro vale por uma confissão

Bolsonaro é um defensor da transparência. Para os outros. Às voltas com perversões em que são desviadas verbas de um orçamento secreto, achou que seria uma boa ideia decretar o sigilo sobre os encontros que manteve no Planalto com os pastores que achacavam prefeitos no MEC.

Num escândalo em que a voz de um ministro soa numa gravação atribuindo o pastoreio nos cofres da Educação a um "pedido especial" do presidente da República, o segredo vale como confissão de culpa.

Todo orçamento de R$ 55 bilhões que Bolsonaro entregou ao centrão no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação não daria para vestir a desculpa esfarrapada que o chefe da Segurança Institucional, general Augusto Heleno, inventou.

Valendo-se da Lei de Acesso à Informação, o jornal O Globo solicitou ao planalto os dados sobre as visitas dos pastores lobistas Arilton Moura e Gilmar Santos a Bolsonaro. O gabinete do general Heleno disse que o pedido não pode ser atendido porque a divulgação das informações colocaria em risco a segurança do presidente e dos seus familiares.

Quer dizer: na versão do general, a revelação de encontros mantidos com um par de interlocutores evangélicos na sede do governo, em horário de trabalho, constitui um risco à integridade física de Bolsonaro e de todo o clã presidencial. A alegação é intrigante, preocupante e desmoralizante.

A desculpa intriga porque revela a presença no Planalto de um general que confunde jornalismo com terrorismo.

Preocupa porque passa a impressão de que a segurança da principal autoridade do país está entregue a um gabinete de aloprados.

Desmoraliza porque sinaliza que o discurso segundo o qual Bolsonaro comanda um governo sem corrupção não resiste a uma análise da agenda de compromissos do presidente.

O comportamento do Planalto não orna com a moralidade. Não combina nem mesmo com o versículo multiuso que Bolsonaro extraiu do Evangelho de João —"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". O presidente está preso à verdade por grilhões de barbante.


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