Poder
Publicado em 03/05/2019 12:00 -
Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.
A proposta anunciada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), de dar um tipo de salvo-conduto para proprietários rurais atirarem em quem invadir suas terras esbarra na Constituição, segundo especialistas.
Na prática, porém, a ausência de punição em casos de assassinatos motivados por conflitos agrários no Brasil já é realidade: levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) indica que só 8% desses crimes foram levados a julgamento em mais de três décadas.
Bolsonaro afirmou no último dia 29 que pretende enviar ao Congresso um projeto para isentar de punição proprietários rurais que reagirem ao terem suas terras invadidas. O anúncio foi feito para um público de ruralistas na Agrishow, em Ribeirão Preto (SP).
Pelo Código Penal, a chamada exclusão de ilicitude é prevista para qualquer cidadão em casos de legítima defesa ou de cumprimento de dever legal, por exemplo. A lei determina, no entanto, que quem atira pode responder por eventual "excesso".
Nesta terça-feira (30), Bolsonaro disse em entrevista à Band que é um direito do fazendeiro atirar, mas que "tem que ter legislação bastante rígida para quem porventura usa arma de forma irregular".
Cinco especialistas dizem que a proposta do presidente, nos moldes como foi anunciada, é inconstitucional. Ainda que ela fosse aprovada como emenda à Constituição, eles avaliam que poderia ser derrubada no Supremo Tribunal Federal.
"Não posso dar uma carta-branca para qualquer proprietário rural atirar. Estaria criando uma exceção ao direito fundamental à vida", afirma Carlos Reverbel, professor de direito constitucional da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
É o que também pensa a especialista em direito penal da FGV-SP Maíra Zapater. Ela afirma que, embora a Constituição garanta tanto o direito à vida quanto o à propriedade, o primeiro tem peso muito maior na Carta Magna.
"Não existe equivalência entre propriedade privada e vida, então você não pode sacrificar uma vida a pretexto de proteção de propriedade. Juridicamente isso não é viável."
Silvana Batini, da FGV-RJ, afirma que a lei já prevê que a força possa ser usada em situações de invasão, mas que cabe à Justiça avaliar cada caso e decidir se isso foi feito de forma proporcional e razoável.
"Pode ser que você precise atirar, numa situação limite, mas não se pode criar essa autorização genérica e abstrata. Hoje, pela legislação, não é impossível o emprego de arma para proteger a propriedade. O que não é possível é estabelecer o uso da arma a priori", afirma.
Reverbel, da UFRGS, exemplifica: um juiz poderia aplicar a exclusão de ilicitude em situação de assalto armado noturno a uma fazenda, por exemplo, mas negar em uma invasão diurna e sem violência.
Embora a propriedade seja considerada um direito fundamental, a Constituição admite restrições, como em caso de não atendimento da função social. Em relação ao direito à vida, a única restrição da Carta Magna é em caso de guerra.
Ruben Siqueira, coordenador nacional da CPT, diz que a proposta de Bolsonaro agrava a situação de violência no campo, para a qual a Justiça raramente oferece resposta. "O que ele está propondo é legitimar o que já existe na prática. Já se mata no campo desse jeito."
Levantamento da comissão aponta que, entre 1985 e 2018, houve 1.466 episódios de assassinatos relacionados a questões fundiárias no país, com 1.938 mortos. Só 8% (117) dos casos registrados no período, contudo, foram levados a julgamento —33 mandantes e 101 executores foram condenados.
O salvo-conduto aos fazendeiros é questionado também pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que alega invadir propriedades improdutivas. Na campanha, Bolsonaro disse que as ações do grupo seriam enquadradas como terrorismo.
"Hoje em dia, os que contratam pistoleiros, ou seja, os mandantes, já não são condenados pelas mortes no campo", diz João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST.
O deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS), ligado ao agronegócio e integrante da base de Bolsonaro na Câmara, defende a proposta. "O que o presidente está querendo dizer não é que poderá matar, mas para o ladrão não ir assaltar. É uma lei mais dura, um aviso de 'não vai lá que pode morrer'", afirma.
Para ele, a lei se aplicaria não apenas a invasões que exigem reforma agrária, mas a roubos de defensivos agrícolas, tratores e de animais. "Não temos policial para mandar para o interior. O ladrão sabe que não tem segurança e que os produtos que existem são de alto valor", defende Goergen.
Do ponto de vista do sociólogo Marcos Rolim, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), porém, a proposta do presidente também é rechaçada. “Aceitar a lógica do projeto seria o mesmo que assegurar aos índios o direito de matar grileiros, mineradores e madeireiros que invadem áreas demarcadas. A propriedade rural deve ser assegurada pelo estado a quem compete, também, assegurar que ela cumpra sua função social”, opinou.
Se a ideia de Bolsonaro fosse aprovada, a exclusão de ilicitude poderia ser usada em casos em que há dolo, ou seja, intenção de matar. “É absurdo porque se prevalecer esse entendimento, alguém pode chamar uma pessoa até sua propriedade e matá-la na sua chegada. Cria muito mais violência e possibilidade de mortes por vingança”, opina o advogado Mateus Marques, mestre em Ciências Criminais pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Procuradas, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) não comentarem a proposta de Bolsonaro. O governo também não respondeu aos questionamentos.
Maia diz ser contra projeto
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou não concordar com a proposta do governo Jair Bolsonaro de dar salvo-conduto a donos de terra que atirarem em quem tentar invadir suas propriedades.
"Não concordo. Ele conversou comigo sobre a posse estendida no campo [permitir o porte de arma não só na casa, mas em toda o perímetro da propriedade rural], isso eu concordo e acho que a maioria das pessoas concorda. O outro assunto ele não tratou comigo", afirmou.
Maia não quis dizer se dará ou não prioridade a eventual projeto de salvo-conduto vindo do Executivo, se limitando a dizer ser contra a proposta.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, fez um breve comentário sobre o assunto, afirmando que a promessa do presidente ainda é uma discussão prematura. "São questões que estão sendo discutidas dentro do governo. Antes de ter no papel exatamente o que vai se propor, quais são os limites do que vai se propor e tal, é muito prematura essa discussão", afirmou.
Para virar lei, tanto o projeto de extensão da posse para todo o perímetro da propriedade quanto eventual salvo-conduto precisam ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.
Nem Bolsonaro nem o governo disseram de que forma a proposta será enviada à Câmara, se por meio de projeto de lei ou por proposta de Emenda à Constituição. Nesse último caso, é preciso o apoio de pelo menos 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores para aprovação.
"Bolsonaro quer mandar projeto para Câmara que isenta de punição proprietários rurais que atirarem em invasores de suas áreas. É autorização para permitir que os ruralistas façam a Justiça pelas próprias mãos e sem punição. Quer desencadear a guerra no campo", escreveu nas redes sociais o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP).
"Bolsonaro, defensor da ditadura militar e do crime de tortura, pede democracia na Venezuela. Enquanto isso, aqui estimula o genocídio de pobres na cidade e no campo com licença para matar dada a policiais e ruralistas", criticou o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP).
Jerônimo Goergen (PP-RS), deputado federal ligado ao agronegócio e integrante da base do governo, defendeu a proposta. "O que o presidente está querendo dizer não é que poderá matar, mas para o ladrão não ir assaltar. É uma lei mais dura, um aviso de 'não vai lá que pode morrer.'"
Para ele, a lei se aplicaria não apenas a invasões de terra para pressionar o governo pela desapropriação da área para a reforma agrária, mas a roubos de defensivos agrícolas, tratores e de animais.
Juiz e carrasco
A não punição em caso de um ataque à vida de um proprietário rural ou urbano, sua família e empregados já configura legítima defesa e está prevista em lei. Traduzindo: se o dono perceber que sua vida está ameaçada, será inocentado se usar da força para se defender. Pois seria a vida dele ou de seus familiares ao invés da vida da outra pessoa. Claro, respeitado a proporcionalidade desse uso da força, limitada ao suficiente para cessar a agressão.
Outra coisa: a lei já prevê que invasão ou ocupação de uma propriedade possa ser impedida com uma reação à altura. Ou seja, em casos em que não há atentado para a vida, não se pode atentar contra a vida.
"O Estado permite ao indivíduo reagir, em casos excepcionais, quando ele não está lá para defendê-lo. Mas a reação deve seguir parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade e seja o suficiente apenas para cessar a agressão", explica Alamiro Velludo Salvador Netto, advogado criminalista e professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. "Contudo, permitir que alguém reaja de forma excessiva é transferir poder do Estado ao cidadão não apenas para se proteger, mas também julgar e punir."
"Não existe legítima defesa da propriedade. Hoje, pode-se tomar medidas para não entrar na propriedade, mas sem cometer excesso", reforça o advogado criminalista Alexandre Martins, que atua na defesa de movimentos sociais.
Ele dá como exemplo o caso do segurança do supermercado Extra, que matou o jovem negro Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, em fevereiro deste ano, no Rio de Janeiro. O segurança poderia ter optado por deter Pedro de outra forma, ao invés de dar um mata-leão e jogado todo seu peso sobre ele a ponto de sufocá-lo.
Bolsonaro desconsiderou a questão do excesso e deixou em aberto as reações possíveis vinda de um "cidadão de bem" como sendo legais. Nem no pacote legislativo contra o crime organizado e a corrupção, apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, há essa previsão. Nele, o "excesso doloso" pode ser justificável se causado por "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". O que, lembre-se, vem sendo criticado duramente por juristas e especialistas em segurança por facilitar a letalidade de agentes públicos e sua impunidade.
Hoje, em caso de ocupação, a polícia é chamada para executar um flagrante. Se ela já estiver consolidada, a Justiça deve decidir a reintegração de posse diante do crime de esbulho possessório (tirar a posse de alguém sobre alguma coisa).
O presidente Bolsonaro disse na Agrishow que "a propriedade é sagrada e ponto final". Do ponto de vista da Constituição Federal, que ele jurou defender ao tomar posse, a declaração está errada. A propriedade é um direito, previsto inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas não é absoluta, depende de cumprir sua função social. E o direito à vida relativiza sim o direito à propriedade, pois o bem tutelado é mais importante. Vale considerar, ademais, que nem a propriedade é subtraída em ocupações e sim a posse – e isso é reversível por decisão legal. A morte, não.
Por fim, uma coisa é a invasão de domicílio, outra é a ocupação de um imóvel abandonado que não é residência dos proprietários. São coisas diferentes não só do ponto de vista legal, mas também simbólico.
A aprovação de uma medida como essa é difícil, mesmo considerando um Congresso Nacional conservador e poderia esbarrar no Supremo Tribunal Federal. Mas o problema é que o cidadão comum, influenciado pela declaração presidencial, pode acreditar que já passou a ser permitido. E aí reside o diabo.
Grilagem de terras
As propriedades improdutivas ocupadas por movimentos sociais com o objetivo de pressionar pela reforma agrária não são páreo para o total de áreas, historicamente, griladas por grandes produtores no país. Terras que pertencem ao patrimônio público e que são usadas para a produção animal ou agrícola e a extração vegetal e mineral. Há municípios da Amazônia Legal em que, para contemplar todos os títulos falsos de terra presentes em cartórios em sua área, teriam que ser três, quatro vezes maiores.
No Brasil, protestos contra pessoas ou empresas que grilam terras ou ocupam territórios indígenas e quilombolas são contidos pela forças públicas enquanto tentativas de retirá-los de lá são negadas, não raro, pela Justiça, mesmo em casos de evidente grilagem. Isso sem contar que os políticos que defendem a alteração da lei para considerar "terrorismo" a ocupação de imóveis rurais e urbanos por sem-terras e sem-tetos são os mesmos que comemoram a aprovação de anistias para grandes invasores de terras. Como a medida provisória transformada na lei 13.465/2017 pelo Congresso Nacional e sancionada por Michel Temer que estabelece novas regras para a regularização fundiária urbana e rural e trata de grilagem a partir de áreas da União.
Através dela, tornou-se possível regularizar o roubo de terras públicas de até 2,5 mil hectares, pagando apenas uma pequena parte do seu valor real. Cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) haviam apontado que essa "regularização" significaria perda de cerca de R$ 20 bilhões somente na Amazônia. O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5771, pedindo ao Supremo Tribunal Federal que suspenda a lei. De acordo com a ação, que está em trâmite, ela elevará o número de mortes em razão de conflitos fundiários. De acordo com Janot, a medida "autoriza transferência em massa de bens públicos para pessoas de média e alta renda, visando a satisfação de interesses particulares, em claro prejuízo à população mais necessitada".
Parte da bancada ruralista no Congresso Nacional, além de ampliar a anistia para grilagem, também deseja mudar as regras da demarcação de territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, "flexibilizar" as regras de licenciamento para a implantação de grandes empreendimentos, mudar mais regras para permitir o uso de agrotóxicos, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo – isso sem contar o perdão de mais de R$ 10 bilhões em dívidas para a Previdência e Seguridade Social rural. A redução da presença do Estado em áreas de expansão agropecuária e extrativista significa aumento no número de mortes e desastres sociais e ambientais.
Enquanto isso, o Estado desmonta a estrutura de fiscalização ambiental e fundiária. Para não causar problemas para aqueles que são os maiores e verdadeiros invasores de terra do país.
Deixe um comentário