18/05/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro desembarca para o acerto de contas com a Justiça

Recebido por gatos pingados em Brasília, ex-presidente aguarda intimação, inquéritos e risco de prisão

Publicado em 30/03/2023 1:39 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Eduardo Maretti (RBA) – Edição Semana On

Divulgação Fábio Pozzebom - Abr

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Um dos clichês de romances policiais é que culpados sempre voltam ao local do crime, seja para se gabar da tragédia ou rir das tentativas de encontrar o responsável. Coincidentemente, Bolsonaro volta, nesta quinta (30), dois dias após o Brasil ultrapassar 700 mil mortes por covid – marca que só foi alcançada graças a ele.

Desse total, 693 mil ocorreram durante o seu mandato. O Brasil, que é o 7º país em população foi o 2º em número de perdas humanas.

De acordo com o relatório final da CPI da Covid, o então presidente é culpado de prevaricação, epidemia com resultado de morte, emprego irregular de verba pública, charlatanismo, crime contra a humanidade, tudo por conta de suas ações e omissões na pandemia.

Destaque especial para a divulgação de mentiras que ajudaram a propagar a doença, como a vacina causar Aids, matar crianças e adolescentes e transformar pessoas em jacarés.

Ele enfiou goela abaixo da população remédios sem eficácia para o coronavírus com o objetivo de empurrar o Brasil de volta às ruas. Temia que as necessárias quarentenas, que salvaram vidas mesmo com a sabotagem presidencial, poderiam impactar a economia e, portanto, sua reeleição.

Se um cone, uma cadeira, um chihuahua, meia concha de praia ou uma vassoura estivessem no lugar de Bolsonaro comandando a República, menos mortes teriam ocorrido na pandemia (estimativas mais pessimistas de cientistas chegam a apontar 400 mil que poderiam ter sido salvos). Um cone, uma cadeira, um chihuahua, meia concha de praia ou uma vassoura não fariam nada, mas também não atrapalhariam o país, ao contrário de Jair.

A vassoura, por exemplo, não conseguiria articular governadores e prefeitos visando a um plano nacional de isolamento para salvar vidas. Mas Bolsonaro também não fez isso, pelo contrário, bombardeou qualquer tentativa nesse sentido. E a vassoura não tentaria furar o isolamento social, não teria ordenado o então ministro (sic) da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello a interromper a compra de vacinas, não teria chamado de mimimi o choro de quem perdeu parentes e amigos.

A vassoura não diria que “a morte é o destino de todo mundo”, nem faria piada com sintomas de falta de ar de doentes crônicos por covid, muito menos afirmaria que não é “coveiro” ao ser questionado por países que estavam melhores do que nós no combate à doença. A pandemia não poderia ter sido evitada, mas sim amenizada se o comportamento dele tivesse sido outro.

No cálculo eleitoral mórbido do presidente, o lamento pelos mortos não seria eleitoralmente estridente, pois os óbitos representam 0,32% da população. Para tanto, precisava da ajuda do esquecimento coletivo. Mas, ao sabotar o combate à pandemia, ele a estendeu por mais tempo, o que ajudou a minar ainda mais a economia. Com isso, a fome e a carestia custaram votos preciosos a ele.

Agora, Bolsonaro pode ser alvo de processos por causa da pandemia, sem a proteção do foro privilegiado. Pedir punição pelas mortes não é vingança, como seus seguidores afirmam. Não se pede o justiçamento aplicado pelos milicianos do Rio de Janeiro, tão defendidos por ele, com o reequilíbrio obtido na base da porrada, com as próprias mãos. O que se exige é Justiça dentro das “quatro linhas da Constituição”, como ele mesmo gosta tanto de repetir.

Fãs de Bolsonaro pagam mico no aeroporto de Brasília ao ignorar jornalismo

“Ei, Bolsonaro, cadê você, eu vim aqui só pra te ver.” Mas, ao final, não viram. Centenas de apoiadores do ex-presidente foram ao aeroporto de Brasília, na manhã desta quinta (30), para recepciona-lo após uma temporada de autoexílio nos Estados Unidos. Perderam a viagem.

Alguns literalmente, já que saíram de suas cidades para celebrar o “mito”, que havia se refugiado em um condomínio fechado próximo à Disney, para evitar responsabilização criminal após a perda de seu foro privilegiado. Como aquela que viria por conta dos atos golpistas de 8 de janeiro, quando seus seguidores vandalizaram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Seguindo um protocolo para ex-presidentes, Bolsonaro foi escoltado do avião direto para fora do aeroporto, usando uma saída lateral, sem se encontrar com apoiadores.

Como apontou Leonardo Martins, no UOL, alguns se frustraram (“Pô, cheguei aqui 4h, 5h da manhã. Por que ele não quer falar com o povo?” e “A gente tinha certeza que ele ia descer”), outros aceitaram (“Não deixaram ele descer aqui? Nem a gente queriam que viesse aqui, fomos boicotados, viemos andando. Não acho que é culpa dele não”) e há os que vieram pela farra (“Eu já sabia que não ia descer aqui pela segurança. Eu vim pela festa, pelas pessoas aqui”).

Os frustrados, que chegaram a perguntar ao deputado Eduardo Bolsonaro, que passou por lá, “cadê seu pai?” e “onde está Bolsonaro?”, não estariam surpreendidos caso se informassem também pela imprensa e não apenas por redes sociais e grupos de mensagens bolsonaristas.

Se não tivessem extirpado o consumo de notícias de veículos de comunicação, orientados pelo próprio presidente, alguns fãs do ex-presidente teriam poupado gastos e tempo com o deslocamento inútil. Pelo menos aqueles que não estavam lá só pela farra.

Saberiam que a Polícia Federal e o governo do Distrito Federal haviam estabelecido um esquema de segurança especial para chegada de Jair a fim de evitar tumulto no aeroporto. Esquema que foi parcialmente cumprido, uma vez que a entrada dos apoiadores no saguão estava proibida para evitar transtornos com os passageiros.

No registro da Folha de S.Paulo, uma bolsonarista perguntava no aeroporto “onde eu vou pra abraçar meu presidente?”, decepcionada com a notícia de que não veria Jair. Ela questionou se reportagem era “bolsonarista” porque não queria contato com quem não fosse.

Nos últimos dias, a coluna teve acesso a mensagens de grupos bolsonaristas conclamando os seguidores a irem recepcionar o mito no desembarque.

É provável que, caso não houvesse o esquema de segurança da PF, não seriam centenas, mas milhares para celebrar o retorno “triunfal” de alguém que permaneceu fora do país não para organizar a oposição, mas por medo de ser preso. E, agora, volta por receio de perder influência quando viu a estatura política de sua esposa ganhar corpo e antigos aliados relativizarem publicamente a possibilidade de ele ser firmar como “o líder da oposição”.

A presença de muitos apoiadores de Jair no saguão do aeroporto expõe a existência de um “bolsoverso”, um universo paralelo em que o rebanho do ex-presidente se alimenta apenas das informações que ele fornece.

O cenário que Aviv Ovadya, então chefe de tecnologia do Centro de Responsabilidade para Mídias Sociais do conceituado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), chamou de “Infocalipse” pode ameaçar a democracia por aqui, da mesma forma como está fazendo em outras partes do mundo. Se você não acredita em fatos e na razão e se guia apenas por falsidades e emoções, como vai tomar decisões racionais envolvendo sua vida e a da sua comunidade?

Conectar esse grupo de volta à sociedade é fundamental para termos um país. Tarefa que fica mais difícil com a volta de Jair.

Brasil ainda não sabe se trata Bolsonaro como bandido ou tiozão excêntrico

O retorno de Bolsonaro trouxe à tona um problema que estava exilado há três meses na terra do Pateta. Ninguém sabe muito bem como tratar o personagem. O governo de Brasília e as autoridades aeroportuárias se equiparam para recepcionar Bolsonaro como um tiozão excêntrico que volta para casa porque, afinal, ele mora aqui. A Polícia Federal dispensou ao personagem um tratamento de bandido.

O esquema de segurança camuflou a imposição de limites à movimentação de Bolsonaro sob uma retórica de polidez protocolar. Por precaução, optou-se por empurrar o viajante para uma porta lateral e conter os admiradores, para que não o estimulassem a fazer os truques que lhe renderam na família a fama de “mito”.

A tolerância vigiada concede a Bolsonaro uma respeitabilidade democrática que os responsáveis pelos inquéritos e processos que o envolvem sabem que ele não merece. Muitos imaginam que, com a provável decretação de sua inelegibilidade, o capitão estará dormindo antes do início da festa de 2026, provavelmente com um sobrinho-neto —ou com o Valdemar Costa Neto— no colo.

A Polícia Federal sabe que o tiozão tem o hábito de roubar as joias da penteadeira. Por isso, apressou-se em intimá-lo para depor no caso dos diamantes da Arábia Saudita já na próxima quarta-feira. Simultaneamente, o Tribunal de Contas da União determinou a devolução do rolex e dos outros objetos de luxo desencavados na penúltima descoberta da imprensa.

Bolsonaro revelou-se um personagem complexo. Os quatro anos de sua Presidência mostraram que ele não serve de exemplo. E o quebra-quebra de 8 de janeiro o transformou num fantástico aviso. Nesse contexto, oferecer cordialidade e condescendência a quem merece interrogatório pode ser um erro capital.

Intimação, inquéritos e risco de prisão estão à espera de Bolsonaro

Até o momento não se conhece nenhum pedido de prisão contra Jair Bolsonaro. No entanto, o ex-presidente é objeto de inúmeros inquéritos e acusações. Apenas pelo escândalo das joias, a Polícia Federal (PF) já o intimou a depor em 5 de abril.

Uma das implicações mais importantes também é recente. A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), incluiu o ex-chefe de governo no inquérito 4.921. O processo corre em segredo de justiça e apura sua suposta contribuição para o ataque às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro.

Para os procuradores que assinam o pedido, o ex-presidente passou a ser passível de investigação quando postou um vídeo no dia 10 de janeiro. Mesmo após os atos golpistas em Brasília, classificados como terroristas por Moraes, ele continuou disseminando informação mentirosa sobre o pleito. Depois apagou a postagem.

Nos inquéritos do STF sobre o 8 de janeiro, a Corte pode enquadrar os investigados em sete crimes:

– Abolição violenta do Estado Democrático de Direito;

– Golpe de Estado;

– Dano qualificado;

– Associação criminosa;

– Incitação ao crime;

– Destruição; e

– Deterioração ou inutilização de bem especialmente protegido.

O vídeo foi divulgado depois dos ataques, mas os procuradores acreditam que pode haver conexão fática entre a invasão dos prédios na Praça dos Três Poderes e o comportamento de Bolsonaro desde seus ataques incessantes ao processo eleitoral.

“Prisão não seria surpresa”

Considerando a conduta de Bolsonaro a partir do início de seu mandato, o advogado criminalista Luiz Fernando Pacheco considera, em tese, que o ex-presidente pode ser preso. Mas avalia como importante que sejam respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

“Porém, os fatos pelos quais ele é acusado, praticados à vista de toda a nação, principalmente tendo em vista ele ter fugido do país no dia 30 de dezembro, e do exterior estimular a loucura de um golpe de Estado, tudo isso recomendaria sua prisão preventiva para garantir a ordem pública”, diz Pacheco. “Para mim não seria surpresa.”

Apesar disso, enquanto o ex-governante não desembarcar no país, o advogado considera que, com seu comportamento errático, ele pode nem vir. “Se vier, acho que corre sério risco de ser preso.” De acordo com Pacheco, um magistrado, por exemplo o próprio Alexandre de Moraes, poderia decretar a prisão de Bolsonaro a pedido do Ministério Público Federal, no âmbito de inquérito que corre no STF.

Já o professor de Direito Constitucional Lenio Luiz Streck não acredita em pedido de prisão do ex-presidente. “Enquanto não houver uma resposta efetiva da Justiça em relação aos atos do Bolsonaro e tudo o que ele fez, ele está livre. Ele sequer é processado, é só um investigado”, diz. “Só se tivesse um fato novo. Se não pediram prisão até agora e nem sequer tem ação penal, por que mandariam prender agora? Chance nenhuma”, acrescenta. Em sua opinião, ante o fato da volta de Bolsonaro ao país trazendo ameaças na bagagem, o sistema de Justiça falhou.

Justiça eleitoral e episódio dos embaixadores

Fora as ações passíveis de punições na área penal, a disseminação de mentiras para tirar a credibilidade do processo eleitoral ensejam ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São nada menos do que 16 Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes) contra Bolsonaro no TSE.

Nessa esfera, a Aije mais adiantada e mais próxima de transformar Bolsonaro em inelegível é o episódio dos embaixadores. Em 18 de julho do ano passado, o então presidente reuniu dezenas de embaixadores de vários países no Palácio da Alvorada para falar de “transparência das eleições”.

Ameaçou a democracia, atacou as urnas eletrônicas, tribunais e ministros das cortes e literalmente desenhou o roteiro de um golpe. Ele declarou que falhas no sistema eleitoral podiam ser “corrigidas” antes do pleito e, se não fossem, era porque as autoridades não queriam, a começar do então presidente do TSE, Edson Fachin, e do vice naquele momento, Alexandre de Moraes, que hoje preside o tribunal.

Bolsonaro definiu Fachin como “o homem que tornou Lula elegível”. Sobre Moraes, declarou que era “quem define o que é fake news”.

Imitador de Trump

À época, a pesquisadora em relações internacionais Miriam Gomes Saraiva, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirmou que os atores internacionais acreditavam que Bolsonaro tentava repetir Donald Trump e poderia tentar um golpe.

No evento no Alvorada, o ex-presidente teria praticado abuso de poder político. Além de usar indevidamente os meios de comunicação estatais, pois a “recepção” aos embaixadores teve divulgação pela TV Brasil.

A minuta golpista

Posteriormente, o corregedor-geral eleitoral no TSE, ministro Benedito Gonçalves, incluiu a chamada minuta golpista na ação referente aos embaixadores. Tratava-se de um decreto, encontrado na casa de Anderson Torres – ex-ministro da Justiça, hoje preso – que permitiria instaurar estado de defesa na sede do TSE. Na prática, uma intervenção militar para anular a eleição.

A “revelação” do senador Marcos do Val (Podemos-ES), que afirmou ter participado de uma reunião com Bolsonaro para discutir a anulação dos resultados da eleição de outubro, se inseriu nesse contexto.

Crimes segundo CPI da Covid

Apenas segundo a CPI da Covid, em 2021, que apurou delitos praticados durante a pandemia, Bolsonaro incorreu em nove crimes, mas a Procuradoria-Geral da República, sob comando de Augusto Aras, nunca deu andamento ao relatório da comissão.

O então presidente teria incorrido em prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade.

Nesta terça-feira (28), o Brasil superou a marca de 700 mil mortos pela covid-19. A maioria delas poderia ter sido evitada, como retrata o filme Eles poderiam estar vivos.

O escândalo das joias

No mais recente caso, o do escândalo das joias recebidas como presente da Arábia Saudita, o advogado criminalista Leonardo Yarochewsky afirmou no início do mês que, em tese, existe materialidade dos crimes de descaminho e peculato.

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, não foram duas, mas até o momento são três as caixas de joias sauditas que envolvem o nome do ex-presidente.

Algumas peças do tesouro árabe saíram dos palácios do Planalto e da Alvorada e teriam feito um pit-stop em fazenda do amigo Nelson Piquet antes de irem parar no cofre pessoal do ex-presidente. Mas parece que a operação queimou a largada.


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