03/05/2024 - Edição 540

Entrevista

Falácia de censura prévia de Musk contra TSE fez eco no Brasil, diz jurista

Para Fernando Neisser, uma parte da imprensa comprou a tese de que a suspensão de perfis e contas das redes sociais por determinação do TSE e STF representam "censura prévia"

Publicado em 23/04/2024 9:23 - Leonardo Sakamoto (UOL) – Edição Semana On

Divulgação

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“Se, em um primeiro momento, parte substancial da imprensa séria sentiu cheiro de armadilha [quanto às ações de Elon Musk contra o TSE e o STF], foi só lançar a isca da ‘censura prévia’ que a coisa degringolou. Do dia para a noite, os mesmos veículos que reconheceram o valioso trabalho da Justiça Eleitoral na proteção da democracia brasileira, passaram a ver no TSE a fonte de todo autoritarismo.”

A avaliação é do professor de Direito Eleitoral da FGV-SP e um dos fundadores da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) Fernando Neisser em entrevista ao jornalista Leonardo Sakamoto, do UOL. Para ele, uma parte da imprensa comprou a tese de que a suspensão de perfis e contas das redes sociais por determinação do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal representam “censura prévia”. E, dessa forma, teriam caído no jogo do bilionário dono do X/Twitter, que vem atacando as instituições.

“Na raiz dessa mudança, a estratégia bem lançada por Musk e sua equipe, de embrulhar a história no papel de presente da censura prévia. Ora, se um perfil de rede social é suspenso, então aquela pessoa está sendo impedida de falar, não? Censura prévia! Nada pode ser mais falacioso”, afirma.

“A liberdade de expressão está garantida por muitos canais, apenas não por aqueles em que crimes estejam sendo supostamente cometidos. Pode-se dar entrevistas, falar em eventos, palestras ou comícios. Escrever artigos e debater com a sociedade. Mas seria ingênuo por parte da Justiça permitir que o meio usado para praticar crimes até então siga sendo utilizado”, diz.

Neisser avalia que “era de se esperar que a imprensa, instituição essencial à democracia, agisse com mais racionalidade e, antes de clicar no compartilhar daquela fake news pelo pânico da ‘censura prévia’, parasse para refletir um pouco”.

Perfis em redes sociais foram suspensas por determinação do Tribunal Superior Eleitoral em meio ao processo eleitoral de 2022 sob justificativa de que difundiam desinformação. Isso não caracteriza censura prévia?

Não. Dizer que a suspensão de perfis em redes sociais configura censura prévia é falso e se baseia em argumentos jurídicos frágeis. Liberdade de expressão não é a mesma coisa que ter perfis nesta ou naquela rede social. Se alguém está cometendo crimes por um determinado meio, o correto é que o Poder Judiciário decrete uma medida cautelar para evitar a continuidade dos atos delitivos. A lei permite, inclusive, a prisão provisória. Mas é preferível que sejam determinadas medidas mais brandas e eficazes.

Isso não restringe a liberdade de expressão do indivíduo?

Se alguém está toda semana sendo pego tirando racha em uma avenida, o mais correto é determinar a apreensão da CNH. Ninguém diria que isso impede o exercício do direito de ir e vir desta pessoa. É só uma medida mais branda do que a prisão provisória, que tenta impedir que siga cometendo crimes por aquele meio. Se alguém briga todo final de semana na noite, o juiz criminal pode – e deve – determinar que não possa frequentar bares enquanto seguem as investigações. Tampouco está sendo limitado o direito de ir e vir com isso.

Com as redes sociais é a mesma coisa. A liberdade de expressão está garantida por muitos canais, apenas não por aqueles em que crimes estejam sendo supostamente cometidos. Pode-se dar entrevistas, falar em eventos, palestras ou comícios. Escrever artigos e debater com a sociedade. Mas seria ingênuo por parte da Justiça permitir que o meio usado para praticar crimes até então siga sendo utilizado.

Críticos das ordens do TSE e do STF que suspenderam contas e conteúdos, reveladas pela divulgação de documentos entregues pelo X/Twitter ao Comitê de Asssuntos Jurídicos da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, dizem que faltou fundamentação nas justificativas.

A mesma lógica falaciosa do que eu estava dizendo permeia a discussão sobre a suposta falta de fundamentação das decisões. A plataforma X ou qualquer outra é, nesses casos, apenas uma intermediária a quem cabe cumprir as ordens que recebe. Não é parte do processo, não é ré. Nem mesmo recebe cópia da decisão, até porque, muitas vezes, processos devem mesmo correr em sigilo até determinado momento, mas apenas um ofício dizendo o que deve ser cumprido.

É lógico, neste sentido, que a plataforma não tem acesso à decisão. Assim como não tem o gerente do banco que recebe uma ordem judicial para bloquear uma conta. Imaginemos se os bancos resolvessem discutir se a ordem tem fundamento ou não, ameaçando descumpri-la. Pior, se cometessem o crime de violação de sigilo, expondo ordens judiciais em processos sob segredo de Justiça, por discordarem da possibilidade de que seus clientes tenham contas bloqueadas.

Na sua avaliação, qual o impacto do relatório divulgado pelo comitê da Câmara dos EUA, comandado pelo trumpista Jim Jones?

A imprensa costuma ser tudo, menos ingênua. Jornalistas são treinadas e treinados para ler nas entrelinhas, entender o que está além dos fatos aparentes. Parte do seu valor para a sociedade está, exatamente, nesta capacidade de interpretar os fatos e torná-los história, dando a nós a capacidade de entender o que se passa. Mas, assim como cada uma e cada um de nós têm seus vieses, a imprensa também sofre, por vezes, com suas próprias distorções de análise. Poucas vezes isso ficou tão claro quanto na cobertura atual sobre a divulgação de relatório por comissão do Congresso norte-americano, trazendo ao conhecimento público ordens encaminhadas pelo Poder Judiciário para cumprimento pelo X.

Na sua opinião, parte da imprensa comprou a tese de Elon Musk?

Se, em um primeiro momento, parte substancial da imprensa séria sentiu cheiro de armadilha, foi só lançar a isca da “censura prévia” que a coisa degringolou. Quando a ela se soma a ideia de decisões sem fundamentação, não há espírito crítico que resista. Do dia para a noite, os mesmos veículos que reconheceram o valioso trabalho da Justiça Eleitoral na proteção da democracia brasileira, passaram a ver no TSE a fonte de todo autoritarismo. Na raiz dessa mudança, a estratégia bem lançada por Musk e sua equipe, de embrulhar a história no papel de presente da “censura prévia”. Ora, se um perfil de rede social é suspenso, então aquela pessoa está sendo impedida de falar, não? Censura prévia! Nada pode ser mais falacioso.

Vivemos na época da exploração em escala industrial dos vieses cognitivos. A desinformação flui exatamente porque se aproveita do nosso instinto de propagar, sem olhar crítico, notícias que se ajustam ao que pensamos. Produtos encontram seus compradores pois, com base nos dados que fornecemos, nos tornamos transparentes e essa fragilidade é aproveitada. Era de se esperar, contudo, que a imprensa, instituição essencial à democracia, agisse com mais racionalidade e, antes de clicar no compartilhar daquela fake news pelo pânico da “censura prévia”, parasse para refletir um pouco. Ainda há tempo.


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