Entrevista
Publicado em 11/03/2019 12:00 -
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Talvez o processo de reprimarização da economia que tornou o Brasil refém do agronegócio para manter a estabilidade da balança comercial não seja, tão simplesmente, um acontecimento espontâneo, mas, sim, um projeto político de longo prazo. Voltemos um pouco na história. Desde a primeira metade do século XX, de Cândido Rondon a Getúlio Vargas, a ocupação do Oeste por parte da população branca se tornou um projeto de Estado. Os habitantes do Sul do Brasil foram os escolhidos para ocuparem os territórios. “É importante ter em mente que a concepção de que indivíduos da região Sul do país deveriam ser os alvos do processo de ocupação não nasceu com os projetos de colonização na Ditadura Militar. Anteriormente, na campanha da Marcha para Oeste, Getúlio Vargas manifestou a preferência por colonos do Sul, pois estes possuiriam uma mentalidade mais europeia e empresarial”, salienta Rafael Assumpção de Abreu, professor e pesquisador.
Diferente da narrativa hegemônica, o processo de colonização da região não foi um sucesso instantâneo, tendo sido imprescindível a participação de agências do Estado – Correios, Exército, Embrapa etc. – que deram um suporte essencial para que o atual agronegócio de matriz exportadora desse seus primeiros passos. Entretanto, décadas mais tarde, já na segunda metade do século XX, na virada dos anos 1970 para 1980, o Estado novamente levou migrantes para a região de Mato Grosso, mas sem o suporte dado anteriormente e com a resistência dos antigos migrantes. “Em Lucas do Rio Verde a colonização foi de tipo mista, pois o Incra teve uma atuação importante nesse processo de colonização. Ou seja, nesse caso, o governo da época conseguiu deslocar famílias sem-terra que se encontravam no acampamento Encruzilhada Natalino, no município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul – estamos falando, aqui, dos primórdios do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST”, explica.
O poderio econômico dos fazendeiros mato-grossenses foi se tornando, cada vez mais, capital político. A “bancada do boi”, no Congresso, é a expressão dessa tomada de poder. “Gradualmente, grupos da região Sul passaram a se destacar economicamente e, consequentemente, politicamente, o que acabou por produzir uma reorganização político-econômica no estado. Uma nova elite emergiu desse processo e substituiu, mesmo que de forma negociada, as oligarquias tradicionais do Mato Grosso. Esses novos atores, principalmente vinculados ao agronegócio, passaram a ocupar cadeiras no legislativo e executivo nacional. Esse fenômeno, que não ocorreu apenas no Mato Grosso, é um dos principais capítulos da política brasileira após a redemocratização”, avalia Abreu.
Na sua tese de doutorado intitulada A boa sociedade: história sobre o processo de colonização no norte de Mato Grosso durante a ditadura militar, o senhor analisa o processo de colonização na região nos anos 1970 e 1980. Que tipo de reconfiguração se deu na região nesse período em comparação com o processo de colonização anterior?
O Estado brasileiro, desde o século XIX, foi permeado por um projeto de “civilizar” os chamados “espaços vazios”. Ocupar/colonizar, nesse caso, representaria uma vertente importante de um processo civilizador – para lembrarmos da expressão utilizada por Norbert Elias – pelo qual deveriam passar as regiões distantes dos centros mais modernos, geralmente identificados com espaços que se desenvolveram a partir das regiões litorâneas. Em primeiro lugar, esse tipo de argumento defendeu que as regiões “distantes” deveriam ser ocupadas pelas instituições do Estado Central. Este é o cerne, por exemplo, do embate contra as ideias federalistas, conforme foi desenvolvido pelo político e publicista conservador Visconde do Uruguai, no Brasil Império, em defesa de um Estado centralizado como único ente capaz de introduzir lentamente a civilização nos sertões brasileiros, tema desenvolvido na tese de Ivo Coser, publicada em 2008, Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil – 1823-1866 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008).
De modo geral, esse ideal perpassa a Primeira República, quando se produz, por meio das ações de Rondon e dos higienistas, um conhecimento científico sobre os territórios “distantes” – atrasados, incomunicáveis, suscetíveis a doenças etc. No período do Estado Novo, pode-se dizer que o ideal “ocupar para civilizar” e o acúmulo de conhecimento de períodos anteriores decantam em um projeto mais efetivo, batizado de “Marcha para Oeste” – que, nas palavras de Cassiano Ricardo, combinaria o espírito aventureiro dos bandeirantes com a racionalidade estatal. Assim, Getúlio Vargas criou algumas colônias na região sul do estado de Mato Grosso do Sul (lembrando que a divisão do estado é posterior, de 1977). Além disso, por meio da criação da Fundação Brasil Central, uma iniciativa desenvolvida no interior da Expedição Roncador-Xingu, colonizou algumas poucas áreas em Mato Grosso e Goiás, e passou a exercer um controle mais efetivo sobre as populações indígenas. Não podemos nos esquecer, também, da construção de Brasília, que concretizou um antigo projeto também amparado no binômio civilizar-ocupar, durante o governo de JK.
O processo de colonização no Mato Grosso, nas décadas de 1970 e 1980, sobretudo nas regiões centro-norte e norte, certamente é devedor da produção de conhecimento e dessas experiências anteriores. No entanto, o projeto de ocupação na Ditadura Militar assumiu características mais ambiciosas, principalmente pelas ações direcionadas à Amazônia Legal, bem como uma efetividade ainda maior, se compararmos com a marcha getulista, ao mudar a fisionomia do interior do Mato Grosso, por meio de um intenso processo de urbanização e modernização agrícola. Para tanto, seguindo as diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Terra de 1964, as empresas de colonização assumiram um importante papel, como no caso de Sinop, em uma aliança original com o Estado brasileiro no desenvolvimento e implementação de uma tecnologia para o planejamento de cidades – embora, do ponto de vista estadual, experiências anteriores já tivessem sido realizadas, como no caso da construção de cidades no Paraná das décadas de 1930, 1940 e 1950. Um outro ponto importante reside no fato de que os projetos de colonização figuraram como elementos centrais, durante o regime militar, para o enfrentamento conservador dos conflitos agrários que permeiam a história do Brasil.
A sua tese menciona três atores centrais no processo de colonização na região: o Estado, a empresa colonizadora e os migrantes, que eram oriundos da região Sul do Brasil. Qual foi o papel desempenhado por cada um desses atores no processo de colonização?
Na minha pesquisa, ao analisar o empreendimento que deu origem à cidade de Sinop (realizada por uma empresa de mesmo nome), foi possível perceber uma associação entre o que chamei de “os três eixos da colonização”: a atuação de agências e agentes do Estado, a implementação do projeto da empresa colonizadora, que incluiu o planejamento do perímetro urbano e rural, e as ações daqueles que migraram da região Sul do país (e, em menor quantidade, da região Sudeste) para os espaços de colonização no norte de Mato Grosso. Em Sinop, a maioria dessas pessoas eram provenientes do estado do Paraná. Mas em outros casos, como em Lucas do Rio Verde, um tipo de colonização mista, que envolveu o Incra e uma Cooperativa de Holambra-SP, a grande maioria era de gaúchos.
Voltando ao caso de Sinop, o Estado brasileiro não apenas contribuiu para o processo de legalização da aquisição das terras pela empresa, mas atuou em conjunto ao estabelecer suas agências no local de colonização, como no exemplo da Companhia Brasileira de Alimentos – Cobal e na implementação de uma rede de comunicação – Correios, Rádio e TV, por exemplo. Além disso, Sinop e outras áreas de colonização contaram com acesso ao sistema de crédito agrícola de bancos públicos, sobretudo aqueles oriundos do Banco do Brasil. Outro aspecto central foi a contribuição estatal, como no caso da Embrapa, para as experimentações em uma região sobre a qual não se tinha muito domínio do ponto de vista de uma produção agrícola.
Por outro lado, um ponto que tentei ressaltar na tese foi o de demonstrar importantes aspectos simbólicos que deram sentido a essas ações estatais. O exército brasileiro esteve presente na região desde o início da construção da BR-163 e, muitas vezes, auxiliaram a empresa e os novos moradores, como nos períodos de chuva intensa. O dono da Sinop, Enio Pipino, gozava de prestígio no governo militar e era próximo do presidente Figueiredo, que visitou a cidade em duas ocasiões. Esses eventos acabaram por intensificar uma proximidade do governo militar, não apenas com a empresa colonizadora, mas também com parte daqueles que migraram para região. Obviamente, outros eventos durante o processo de colonização no Mato Grosso, como no caso marcante de Lucas do Rio Verde, revelam a faceta repressiva do regime militar em sua relação com aqueles que se deslocaram para a região. No entanto, é importante não ignorar os vínculos simbólicos estabelecidos por parte desses indivíduos com os agentes estatais naquele período. Por outro lado, considero que compreender essas relações nos ajudam a entender a legitimidade concedida, por parte da população brasileira, às forças armadas – aspecto importante, inclusive, para a compreensão do cenário político nacional contemporâneo.
A empresa Sinop, por sua vez, foi responsável pela aquisição das terras e por todo o projeto que envolveu a construção da cidade planejada – que abarcava, também, sua área rural. No Mato Grosso, projetos semelhantes foram realizados em Alta Floresta, Nova Canaã do Norte, Sorriso, entre outras. A empresa de Ênio Pipino, por sua vez, levou para Mato Grosso uma tecnologia desenvolvida no norte paranaense, quando realizou cerca de 18 empreendimentos semelhantes, inspirados nos projetos que construíram as cidades de Londrina e Maringá, por exemplo. Com o apoio do Estado brasileiro, no Mato Grosso, a empresa Sinop desenvolveu diversos experimentos na tentativa de descobrir quais culturas e de que modo seria possível uma produção agrícola satisfatória, tendo em vista que o cerrado mato-grossense possui características muito distintas da terra roxa paranaense. É importante mencionar, no entanto, que o projeto da empresa Sinop não navegou em mares tranquilos, tendo que ser modificado e adaptado em diversas situações. Esse foi um dos problemas que identifiquei na bibliografia que analisou esses programas de colonização: muitas vezes, desconsideram as dificuldades enfrentadas e os fracassos acumulados pelos líderes colonizadores e suas empresas, algo que nos remete diretamente ao terceiro eixo, os migrantes sulistas.
Ao abordar a história da colonização, tornou-se central para a pesquisa demonstrar de que modo, portanto, a empresa, e seu líder colonizador, tentou impor diretrizes para a reprodução da vida econômica dos indivíduos migrantes, no sentido de obter sucesso no desenvolvimento de um mundo rural no cerrado mato-grossense. Essa contextualização, por um lado, permite entender os primeiros passos do processo de modernização agrícola na região, por meio dos documentos que comprovam a realização de experiências para o plantio de diversas culturas, conforme mencionei acima. Mas, por outro, ajuda a perceber que os objetivos da empresa foram limitados pelas condições da época e por erros cometidos, como no exemplo da criação de uma usina de álcool de mandioca. Neste último caso, o fracasso seria determinado, inclusive, pela não adesão dos migrantes-produtores rurais.
Esta reconstrução, portanto, permitiu compreender de que modo os fracassos acumulados, no âmbito rural, acabaram por estabelecer um protagonismo dos migrantes que atuavam economicamente a partir da cidade – madeireiros e comerciantes, por exemplo. Estes indivíduos, majoritariamente de origem sulista, não apenas aderem aos pressupostos da colonização, mas, também, determinam os seus rumos, tanto do ponto de vista material quanto na dimensão dos valores sobre os quais a cidade é construída.
Que tipo de fluxos migratórios ocorreram na região por conta da migração de sulistas para o norte de Mato Grosso?
É importante ter em mente que a concepção de que indivíduos da região Sul do país deveriam ser os alvos do processo de ocupação não nasceu com os projetos de colonização na Ditadura Militar. Anteriormente, na campanha da Marcha para Oeste, Getúlio Vargas manifestou a preferência por colonos do Sul, pois estes possuiriam uma mentalidade mais europeia e empresarial. Aliás, essa ideia é muito difundida não apenas no imaginário sulista, mas em grande medida no imaginário nacional brasileiro. Agora, em relação à origem dos fluxos migratórios sulistas no processo colonizador durante as décadas de 1970 e 1980, cada ocupação possuiu a sua singularidade.
No caso de Sinop, principalmente em seu início, grande parte se deslocou do Paraná – mas não apenas, é importante frisar –, por conta do fato de que a empresa colonizadora era do mesmo estado. A propaganda de vendas de terras, portanto, foi mais intensa no estado paranaense. Algo semelhante aconteceu em Alta Floresta, cuja colonização fora realizada pela empresa Indeco, que já havia realizado empreendimentos semelhantes no Paraná. Lucas do Rio Verde, em um outro exemplo, possui um histórico de ocupação diferente: a região já era habitada por posseiros-fazendeiros gaúchos, quando uma cooperativa paulista ocupou aquele território. No entanto, em Lucas a colonização foi de tipo mista, pois o Incra teve uma atuação importante nesse processo de colonização. Ou seja, nesse caso, o governo da época conseguiu deslocar famílias sem-terra que se encontravam no acampamento Encruzilhada Natalino, no município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul – estamos falando, aqui, dos primórdios do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST. Para levar famílias gaúchas para Lucas do Rio Verde, agentes estatais não se furtaram em utilizar, por exemplo, discursos ameaçadores. Boa parte desse grupo de Ronda Alta, no entanto, não conseguiu se adaptar a Mato Grosso, ou se endividaram sem conseguir uma produção agrícola satisfatória. Casos como esse em Lucas acabaram por estabelecer a categoria “retornados”: migrantes sulistas que, por vários motivos, não conseguiram se estabelecer nos espaços de colonização e retornaram ao seu local de origem – em alguns casos, esses indivíduos e/ou famílias arriscavam a sorte nas regiões Centro-Oeste ou Norte.
Em relação aos habitantes que ocupavam as regiões de colonização anteriormente, existem inúmeros relatos, inclusive registrados em pesquisas acadêmicas, que mencionam a expulsão de populações indígenas ou não-indígenas. Entretanto, não é tarefa fácil encontrar registros históricos que comprovem a expulsão desses grupos das terras colonizadas. Por outro lado, moradores dessas cidades que participaram dos primeiros momentos da colonização, geralmente manifestam uma forte resistência em abordar esse tema.
Mas, do ponto de vista dos deslocamentos populacionais para o Mato Grosso, existem dois pontos que são centrais para o argumento que desenvolvi na tese:
1) gradualmente, grupos da região Sul passaram a se destacar economicamente e, consequentemente, politicamente, o que acabou por produzir uma reorganização político-econômica no estado. Uma nova elite emergiu desse processo e substituiu, mesmo que de forma negociada, as oligarquias tradicionais do Mato Grosso. Esses novos atores, principalmente vinculados ao agronegócio, passaram a ocupar cadeiras no legislativo e executivo nacional. Esse fenômeno, que não ocorreu apenas no Mato Grosso, é um dos principais capítulos da política brasileira após a redemocratização, mas, infelizmente, é pouco estudado por nossa ciência política;
2) as duas décadas da colonização animaram outros movimentos migratórios, das regiões Sul e Sudeste para o Mato Grosso, mas que não ficaram restritos aos espaços de colonização.
Cidades históricas, como no exemplo da capital Cuiabá, tornaram-se, também, o destino de indivíduos e famílias de fisionomia mais urbana. O contato entre sulistas e paulistas com os mato-grossenses animou uma espécie de conflito identitário, no qual os primeiros propagavam discursos e atitudes que já estavam presentes nos espaços de colonização: os sulistas carregariam um ideal modernizador e um espírito empreendedor, enquanto cuiabanos e outros mato-grossenses seriam mais acomodados. Tal pensamento, portanto, legitimaria, segundo os recém-chegados, uma hierarquização identitária de modo a garantir o desenvolvimento do estado. É importante registrar que antes da minha pesquisa, processo semelhante foi analisado por Rogério Haesbaert em sua tese sobre os gaúchos que migraram para Barreiras, no oeste baiano.
Que tipo de modernização o Estado brasileiro desejava implementar na região com esse processo de colonização? Como o processo de colonização dessa região deu origem ao agronegócio, tal como o conhecemos hoje no país?
Passando por Getúlio Vargas, General Golbery, intelectuais como Guerreiro Ramos, entre outros, integrar as regiões mais distantes e menos desenvolvidas, criar um mercado interno envolvendo outras partes do território nacional e promover as condições para um aumento da densidade populacional em terras pouco habitadas, eram medidas essenciais para um processo de modernização mais efetivo para todo o país. Desse ponto de vista, pode-se dizer que a colonização no norte de Mato Grosso foi bem-sucedida: Sinop se tornou um centro comercial e universitário (seguindo o caminho da cidade-modelo Londrina-PR, inclusive nas formas planejadas de ocultação da desigualdade social); Lucas do Rio Verde e Sorriso, entre outras cidades, ajudaram a consolidar as chamadas cidades do agronegócio no Brasil. Ou seja, são cidades mobilizadas intensamente para a produção da moderna agricultura local exportadora.
Esse último ponto nos leva à segunda parte da pergunta, sobre a relação entre a colonização no norte do Mato Grosso e a emergência do agronegócio. Na minha pesquisa, analisei de modo mais pormenorizado a formação de Sinop. O caso sinopense é a primeira experiência na região, no início da década de 1970. Para a promoção de uma produção agrícola, no desconhecido cerrado mato-grossense, a empresa colonizadora e os migrantes-agricultores encontraram inúmeras dificuldades, levando o projeto a uma dependência dos madeireiros e suas empresas, e dos comerciantes que se instalaram no espaço urbano da cidade. Mas, ao analisar os relatórios e os informativos produzidos pela empresa Sinop à época, foi possível constatar a realização de uma série de experimentações com culturas, sementes, correção do solo etc. A Embrapa, como mencionei anteriormente, atuou também como parceira em experiências e na produção de conhecimento para atividade agrícola posterior. Este é um exemplo, no qual a empresa Sinop operou por meio de tentativas, erros e fracassos, dos primeiros passos da modernização da agricultura em Mato Grosso que deu origem ao agronegócio como conhecemos hoje.
Uma das propostas da sua tese é, como você explica, “mapear e expor os argumentos de dois modelos distintos de interpretação sobre o modo como se formou o novo mundo agrário e urbano nesta região do país”. Pode nos explicar quais são esses argumentos?
No início da pesquisa, a realização de um levantamento bibliográfico sobre pesquisas acadêmicas que versaram sobre os inúmeros projetos de colonização na região norte de Mato Grosso, além de alguns processos que ocorreram em outros territórios no Brasil durante o mesmo período histórico, permitiu estabelecer dois modelos interpretativos:
1) a perspectiva que acentua a dimensão do controle e imposição, por meio do protagonismo do Estado e empresas e
2) a linhagem que prioriza a combinação entre territorialização e a dimensão simbólica animada pela identidade regional – no caso, os migrantes originários da região Sul do país.
No caso da primeira linhagem, notadamente hegemônica entre os especialistas no tema, a colonização seria o resultado de uma política de contrarreforma agrária, expressão eternizada por Octavio Ianni. Assim, para a expansão capitalista na fronteira, o Estado militar teria combinado seu controle com as práticas empresariais. De tal modo, os fluxos migratórios foram determinados pela lógica de dominação, inserida na tecnologia de planejamento das cidades.
O problema identificado neste tipo de abordagem estaria relacionado com o fato de considerar os atores envolvidos nos processos de colonização sempre como seres passivos, incapazes de influenciar na formação desses novos espaços. Os migrantes da região Sul, portanto, protagonistas na formação das novas cidades – desde que não fossem os proprietários dos novos complexos agroindustriais ou líderes colonizadores – seriam, nesta interpretação, modelados por uma mentalidade capitalista e uma lógica modernizadora que lhes seriam exteriores.
No caso do segundo modelo interpretativo – marginal no debate sobre a colonização –, as abordagens não se permitem ignorar a singular participação de grupos regionais específicos na colonização e, consequentemente, a importância de suas visões de mundo, de uma linguagem que assegurou a expansão territorial e as novas configurações sociais. Isso significa afirmar que o processo de territorialização também foi assegurado por formas construídas ou, então, forjadas pelo mundo social, algo que não se poderia apreender, simplesmente, por meio de considerações sobre os mecanismos de controle e imposição manuseados pelas instituições políticas e pelo capital. Esta outra interpretação, ao reconhecer a importância de um “novo ator”, permite compreender o processo de modernização também como fruto de relações mais complexas: não apenas restritas, portanto, aos projetos estatais e do “capital”, ao incorporar ações e valores que são compartilhados/realizados de modo mais difuso.
Quais são as divergências teóricas acerca da colonização da região nesse período evidenciadas na sua pesquisa?
As divergências teóricas, se pensarmos de um ponto de vista mais geral, estão centradas nos modos tradicionais de compreender a relação entre Estado e sociedade no Brasil. A perspectiva que acentua a dimensão do controle e imposição, mencionada na resposta anterior, de alguma forma é orientada por uma clássica interpretação sobre o Estado brasileiro. Segundo esse ponto de vista, o Estado brasileiro, com raríssimas exceções históricas, teria guiado o processo de modernização brasileira – portanto, uma modernização autoritária e conservadora –, se impondo e orientando uma sociedade dispersa, sem coesão e incapaz de abraçar e difundir uma mentalidade capitalista (neste último caso, para alguns, São Paulo seria um caso solitário de sucesso). Para boa parte das análises sobre a colonização, essa é a chave de compreensão do processo.
Sendo assim, ao explicar a consolidação do processo colonizador, os discursos e as ações reproduzidas por aqueles que migraram para esses locais, são entendidos como resultado de uma imposição do Estado, das empresas e de seus donos. Minha discordância fundamental nesse ponto consiste na compreensão de que os ideais que embasam o processo de colonização dialogam com valores compartilhados por aqueles que migram, por crenças, aspectos simbólicos, culturais, que não foram forjados pelo Estado ou pelas empresas. Em Sinop, por exemplo, esses valores e crenças e um processo histórico formativo em torno de concepções identitárias são aspectos centrais na construção da cidade e na legitimação de um certo tipo de modernização.
É certo que muitos migrantes “fracassaram” e tiveram que retornar; outros, figuraram como sulistas de segunda classe diante do sucesso econômico de seus conterrâneos. É daí, inclusive, que surge a categoria pioneiro nessas cidades: aqueles que resistiram e “venceram” tornam-se uma referência local. Mas o ponto aqui é perceber que, na gênese da colonização, determinadas concepções compartilhadas pelos envolvidos no processo forneceram a base para o processo colonizador – e para os diálogos estabelecidos entre migrantes, Estado e empresa. Esses encontros e diálogos, esses pontos em comum, que eu aglutinei na expressão – utilizada provocativamente – “boa sociedade”.
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